MUITO ALÉM DO DIVÃ OCIDENTAL – UMA ABORDAGEM BUDISTA DA PSICOLOGIA - CHOGYAM TRUNGPA


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MUITO ALÉM DO DIVÃ OCIDENTAL – UMA ABORDAGEM BUDISTA DA PSICOLOGIA

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                                   Chogyam Trungpa



Trecho do livro “Muito Além do Divã Ocidental: Uma abordagem budista da psicologia” de Chogyan Trungpa Rinpoche.

A ideia de que todos nascemos sadios talvez seja surpreendente. Mas a tradição budista vai ainda além, afirmando que todos nós, na verdade, estamos sãos neste exato momento. Quaisquer que sejam as confusões que possamos experimentar ou as duvidas e ansiedades que possam advir, nossa sanidade fundamental – subjacente a tudo isso, em meio a tudo isso – esta sempre presente. Poderíamos dizer que este livro procura demonstrar como uma afirmação tão ousada pode ser verdadeira. Mas, na verdade, o que este livro apresenta é um meio para que você, leitor, determine a verdade dessa afirmação por conta própria.
Esse meio é a meditação. Como diz Trungpa Rinpoche, meditar é ‘’um meio de elucidar a natureza real da mente e da experiência’’ Na medida em que a psicologia é o estudo da mente, a meditação nos oferece uma pratica psicológica singularmente intima. Não é a experiência de outra pessoa que estudamos, mas nossa própria experiência. Mas, apesar disso, a meditação, como veremos, nos leva a uma intimidade com os outros seres igual a que temos com nós mesmos.

O que é a mente? A mente é tudo. Um sinal disso é a continuidade de nossa experiência. Mesmo durante o sono mais profundo, nossa mente esta ativa, atenta, processando. Quando meditamos, observando-a conscientemente, ela jamais nos abandona, jamais se esgota ou expira. Nossa consciência não apenas cobre uma área imensa, de parede a parede, Omo na verdade ela é essas paredes e tudo o que existe de imaginável ou inimaginável fora delas. Não há um fim, não há uma saída. Quando planejamos uma fuga, ela já esta acontecendo na mente. Quando chegamos ao nosso destino, estamos também ali mentalmente.
Tudo o que conhecemos é a mente. Ela cria nosso mundo. ‘’Quando meditamos, estamos lidando com a mesma mente que inventou nossos óculos e encaixou as lentes nos aros, com a mesma mente que construiu este pavilhão. O fato de termos vindo para cá é produto de nossa mente (…). Portanto, o mundo da mente é um mundo vivo. Quando percebemos isso, a ideia de trabalhar com a mente deixa de ser distante ou misteriosa. Não estamos mais tratando de algo que esta oculto ou em outro lugar. A mente esta aqui mesmo. A mente se manifesta no mundo. É um segredo aberto’’ 
Manifesta, onipresente, não em outro lugar, ilimitada – são inúmeros os seus atributos. Portanto, quando procuramos trabalhar com a mente precisamos de uma disciplina igualmente vasta – e ao mesmo tempo simples. Do contrário, seria como tentar criar um esmerado jogo de travessas de porcelana, jarras de estanho e talheres de prata para servir o mundo inteiro. Jamais existiriam do tamanho certo, o mundo jamais poderia supri-los confortavelmente. Só precisamos, na verdade, de um prato muito, muito grande. A meditação é esse prato: ela acomoda tudo. Assim, capítulo a capítulo, Trungpa Rinpoche nos faz retornar a simplicidade. Precisamos apenas estar aqui, sobre a terra. E respirar. E dar atenção pura a respiração.
Quando nos sentamos para praticar, sem fazer grande coisa, começamos a colidir com nossos processos de pensamento. Num primeiro momento, talvez só notemos suas ‘’valências’’ de ‘’gostar’’, ‘’não gostar’’ e ‘’neutralidade’’. Mas a medida que nos familiarizamos com esse modo de atenção, começamos a perceber a dinâmica mais sutil e complexa da mente. Os capítulos da Parte 2 deste livro tratam destes assuntos: as oito  consciências, os seis reinos, as cinco famílias búdicas, e assim por diante. A pratica da psicologia, nesse sentido, equivale a reconhecer esses padrões a medida que eles começam que eles começam a se manifestar, como a paisagem submarina quando a calmaria dos ventos atinge o fundo do oceano.
Antes mesmo de começarmos a notar essa nitidez, Trungpa Rinpoche nos incita a mergulhar ainda mais fundo em nossa imperfeição: ‘’Não tenha medo de ser tolo – comece como um tolo. O objetivo das técnicas da prática da meditação não é, em absoluto, reduzir os pensamentos ativos. Elas proporcionam um meio de fazermos as pazes com tudo o que se passa dentro de nós (…) Quando começamos a perceber qualidades desagradáveis em nós mesmos, nós as vemos como antiespirituais e tentamos expulsa-las. É o maior erro possível quando trabalhamos com nossos padrões psicológicos básicos’. Aqui a psicoterapeuta encontra seu primeiro cliente: ela mesma. Na prática da meditação sentada, ela não tem compulsão de reduzir, alterar ou rejeitar nada ou ninguém. Todos são bem vindos. Todos são só pensamentos. Podem se manifestar em diversos graus de instensidade ou atratividade e sob infinitos sabores, mas sua natureza é sempre a mesma. São apenas ‘’aquilo, aquilo, aquilo’’ .
Quando nos sentamos com esse ‘’aquilo’’ sem nome, sem fazer absolutamente nada e permitindo que o mistério que somos nós se manifeste cada vez mais, algo acaba se tornando evidente: os pensamentos que pareciam perpetuar nossa existência e definir nosso ser são coisas bem insignificantes. Quando olhamos para eles, diretamente, procurando enxerga-los mais de perto, eles se desfazem diante de nós, se dissipam no nada. Não fizemos nada: os pensamentos se dissolvem por conta própria, sem que nem mesmo os tenhamos examinado. Não os conseguiríamos preservar ainda que quiséssemos. Mas agora que experimentamos sua total transitoriedade, eles revelaram o segredo de sua mortalidade instantânea. Seu poder de persuasão nunca mais será o mesmo.
Com esse reconhecimento, torna-se possível relaxar em nossa gentileza inata. Como já não experimentamos nossa mente como algo ameaçador, podemos, como sempre diz Trungpa Rinpoche, fazer amizade com nós mesmos. Essa amizade é a base de qualquer relação. É o modelo, em especial, da conduta da psicoterapia:
‘’Isso significa trabalhar, em primeiro lugar, nossa capacidade natural para o calor humano. Mais que tudo, podemos desenvolver um calor humano para com nós mesmos, expandindo-o para os outros em seguida. Isso proporciona uma base para se relacionar com pessoas com distúrbios, uns com os outros e com nós mesmos, tudo dentro do mesmo quadro (…). Os pacientes devem perceber um senso de sanidade vibrando em você. (…) A terapia deve se basear em apreço mútuo. (…) Você precisa eliminar sua própria impaciência e aprender a amar as pessoas. É assim que se cultiva a sanidade fundamental nos outros’’
Esse reconhecimento de nossa sanidade fundamental é o que distingue a psicologia budista de todas as outras que conheço. Com a pratica da meditação sentada, em meio ao processo de observar nossos pensamentos se dissolvendo, em nossa incapacidade mesma de sustentar uma narrativa sobre nós próprios ou sobre qualquer outra coisa, chegamos, obliqua ou diretamente, a algo que sempre esteve lá. Trungpa Rinpoche dá a esse algo o nome de bondade fundamental. É também conhecido como natureza búdica, pureza primordial, verdadeira natureza da mente, essência do dharma. É a sanidade com que nascemos.
A meu ver, muitos de nós somos trazidos para a psicologia por pressentir que alguma coisa, de algum modo, deve estar errada. Nossa curiosidade sobre a mente humana não é imotivada. Embora possamos ter repulsa a ideia de pecado original, a experiência de nossos estados mentais ainda não a excluiu de uma maneira definitiva. Mas a pratica da meditação, com sua investigação destemida e aceitação incondicional de todas as formas de consciência, nos leva inevitavelmente a um conhecimento mais profundo. Temos uma experiência real da pureza fundamental da mente – de nossa mente. Não é uma questão de fé ou doutrina nem algo que possamos produzir, se tentarmos. Mas também não podemos ignora-la quando surgem em nossa experiência. E aos poucos podemos desenvolver confiança em sua presença constante, do mesmo modo como sabemos que nossos pulmões encontrarão ar para respirar. Isso não exige de nós nenhuma reflexão.
Nesse ponto, não podemos mais afirmar que nós, ou quaisquer outras pessoas, temos um núcleo lesado. Na verdade, ‘’o mundo em que vivemos é fabuloso. É plenamente viável. (…) Deveríamos perceber que não há paixão, agressão, ou ignorância no que vemos (…) Tudo o que fazemos é sagrado’’.
Essa fabulosa sacralidade indica que a psicologia budista não tem um conceito de cura ou terapia. Nos contos de fadas, o sapo se transforma em principie quando beijado. Mas, no budismo, o sapo é coroado como sapo. A folha lótus em que ele se senta é um trono. ‘’Percebe-se que se pode sentar como um rei ou rainha num trono. O caráter régio da situação revela a dignidade que provém de ser sereno e simples’’. ‘’Você começa a perceber, sem egocentrismo, que é o rei do universo. Como atingiu a compreensão do que é impessoalidade, pode se tornar uma pessoa.. Esse estágio é chamado de iluminação’’.
Nesse ponto, nossa concepção da existência se inverte. Deixamos de partir da experiência e de perscrutar seus desnorteantes desdobramentos em busca de profundidade, de clareza ou de Buda. Passamos, em vez disso, a repousar na bondade fundamental, e nossas experiências passam a se manifestar continuamente a partir dela. Não há necessidade de liberta-la a força de dedos ávidos ou de um coração cúpido. Podemos partir de um amor aberto, que sabe o momento de reter e de soltar. Como isso é intimamente impessoal, podemos nos tornar – e deixar de ser – pessoas.
Por isso, quando indagado sobre a diferença entre meditação e psicoterapia, Trungpa Rinpoche respondeu ‘’A diferença esta na atitude da pessoa ao submeter-se as disciplinas da meditação e da psicoterapia. No estilo popular de terapia, a atitude da pessoa é de quem esta tentando se recuperar de alguma coisa. Ela busca uma técnica que ajude a se livrar de seu problema ou supera-lo. A atitude meditativa é aceitar, em certo sentido, que você é o que é. ‘’Desse ponto de vista, pode-se dizer que a meditação não é terapia. Quando há alguma ideia de terapia envolvida na jornada espiritual ou numa disciplina espiritual de qualquer espécie, ela se torna condicionada. A pratica da meditação é a experiência da totalidade. É impossível compara-la com qualquer coisa, mas ela é completamente universal.
Então, deveria o psicólogo autentico torna-se budista? É claro que não. E podemos acrescentar: o psicólogo autentico deve ‘’deixar’’ de ser budista, ocidental ou qualquer outra coisa baseada num conceito, doutrina, ou desígnio. Portanto, ‘’psicologia budista’’ é uma expressão estranha. Na verdade, não somos psiquismo, de modo algum, não há lógica nisso e não existe budismo. ‘’Em essência, existe apenas um espaço aberto – a base primordial, o que realmente somos. Nosso estado mental mais fundamental, anterior a criação do ego, é de tal sorte que há uma abertura fundamental, uma liberdade fundamental e uma espaciosidade. E essa abertura, nós a temos agora e sempre a tivemos. Nós somos esse espaço, nós somos um com ele.
Isso são apenas palavras. Indicam a verdade? Cabe a você, leitor, decidir. Não falta a você nada de que precise para determinar isso.
Chogyam Trungpa Rinpoche é meu mestre. Posso escrever este prefácio porque tenho a mesma mente que ele. E, se você é capaz de lê-lo, é por que também tem essa mente. É a base da sanidade, da qual emerge, a cada instante, todo este nosso mundo maravilhoso, ridículo e transbordante.
Meu caminho individual segue, de certo modo, as linhas gerais que indiquei acima. Descobri serem a meditação e a psicoterapia duas praticas de libertação intimamente ligadas, e uma é necessária a outra. Elas trabalham a mente com uma precisão indescritível, emancipando suas atividades de dentro para fora.  
Talvez alguns episódios pessoas ajudem a exemplificar isso. Durante anos, sempre que vinha o caos, eu me transformava num terrier investigador fuçando num canteiro de flores para pegar o culpado. Mas, em minha almofada de meditação e em meu divã psiquiátrico, aprendi a repousar no próprio caos. ‘’Ela me odeia porque..’’ e retornava a dor simples.. ‘’Eu a odeio porque..’’ retornava a ira simples, que retornava a dor simples. Nessa dor, não havia justificativa, explicação racional, reação apropriada, inculpação justa ou tentativa de perdão – não havia, na verdade, nada de significativo. Especialmente, não havia cura. Existia apenas dor. Descobri que era capaz de suportar a dor, que ela apenas doía muito. E depois deixou de doer tanto..
Isso me tornou capaz de adotar minhas emoções como se fossem minhas filhas – vivazes, adoráveis, impulsivas, convincentes e com uma intuição infalível quanto ao seu mundo. Mas era eu, como um bom pai, quem decidia qual curso de ação tomaríamos juntos.
Tentei fazer isso também com outras pessoas, quando me vinham a mente. Quando digo ‘’eu te amo’’, de quem é essa energia? O que é esse ‘’eu’’? Minha forte sensaão de seru eu, insistentemente individual e separado, foi se moderando. O dentro e o fora se tornaram mais difíceis de distinguir. E a bondade fundamental começou a se infiltrar nas coisas… Embora os padrões do ego sejam inumeráveis em sua complexidade, há momentos em que estamos são o bastante. Nesses momentos, nossa psicologia não difere muito do tempo: quando chove, podemos usar chapéu e capa ou correr nus por ai, mas, em ambos os casos, dificilmente encaramos a chuva como algo muito pessoal – ou como algo muito sério. Isso libera uma enorme energia para os outros e mostra nossa existência como um espaço para um jogo amoroso e sem objetivo.
A psicologia e a meditação tem um modo particular de trabalhar com a mente. Se praticada com habilidade, a psicoterapia desvenda os complexos disfarces com que vestimos nossos pensamentos e emoções, revelando as antigas queixas que eles foram obrigados a representar. Quando trazidos a luz, esses padrões se tornam transparentes – é possível enxergar o que esta por trás deles, e, com isso, trata-los com cortesia ligeiramente distante.
A meditação nos introduz a registros cada vez mais profundos da mente. Num primeiro momento, pode ser suficiente perceber que temos uma mente, que somos uma mente. Mas, aos poucos, em flashs instantâneos, constatamos que não somos exatamente os pensamentos e emoções que nos ocupam o tempo todo e que pareciam nos definir. Existe um espaço em torno deles – ou melhor, nós somos esse espaço, e os pensamentos e emoções entram nele como convidados nossos. Na verdade, porém, esse espaço é a própria sabedoria, e nossos pensamentos e emoções, sua inteligência manifesta. Podemos relaxar nesse vibrante vazio. Isso é todo o caminho – esse relaxamento, essa dissolução na sanidade fundamental.
‘’Muito Além do Divã Ocidental: Uma abordagem budista da psicologia’’  reúne textos do mestre tibetano budista Chogyan Trungpa Rinpoche. Apresenta ideias sobre meditação, mente e psicologia que o autor compartilhou com psicológicos, psicoterapeutas e estudantes nos Estados Unidos entre 1970 e 1980. Em sua discussão da psicologia budista, o autor trata também dos problemas e necessidades específicos das pessoas com distúrbios psicológicos profundos. Responde também as indagações dos psicoterapeutas e outros profissionais da saúde que trabalham com os estados mentais de seus clientes e seu bem estar físico.
Embora o autor reconheça a necessidade que muitas pessoas tem de assistência psicológica profissional e a importância de proporcionar para alguns pacientes comunidades e ambientes terapêuticos apropriados, a premissa deste livro é que todos os seres humanos tem dentro de si recursos para curar a si mesmos num nível profundo. Trungpa Rinpoche proclama repetidamente que todos nós nascemos com uma sanidade fundamental, que ele descreve também como bondade, saúde e atitude desperta fundamentais. Ajudar a nós mesmos e aos outros a entrar em contato com essa base de sanidade e saúde é ao mesmo tempo o caminho e a meta da psicologia budista apresentada neste livro. Como diz o autor em ‘’Criando um ambiente de sanidade’’:
Vocês devem procurar saber de onde vem a saúde do paciente. (…) Ele pode estar agindo de modo paranóide e analítico – mas de onde vem essa precisão? Ele pode ser extremamente neurótico e destrutivo – mas onde esta o exato cerne dessa energia? Se você conseguir enxergar as pessoas deste ponto de vista – do ponto de vista da bondade fundamental – certamente poderá fazer alguma coisa para ajudar os outros.
Chogyam Trungpa dedicou a vida inteira a trabalhar com outras pessoas e auxilia-las. A tradição budista mahayana, que foi a base de sua formação, fala da responsabilidade de libertar todos os seres senescentes, que cada um de nós deve assumir finalmente – começando por si mesmo, para que se possa ser útil para os outros. Isso é trabalhar para o bem dos outros numa dimensão muito elevada.
Trungpa Rinpoche trabalhava com pessoas diariamente. Apresentou a dezenas de milhares de pessoas a pratica da meditação sentada e conduziu milhares de entrevistas individuais e em grupo com seus alunos. As pessoas recorriam a ele em busca de conselhos sobre suas praticas de meditação, mas também conselhos sobre como conduzir suas vidas: com quem casar, que emprego aceitar, se era melhor procurar trabalho ou retomar estudos.. As pessoas recorriam a ele quando deprimidas, quando casamento terminava, em praticamente qualquer circunstância ou estado mental.. Embora ninguém pudesse afirmar que ser mestre budista é o mesmo que ser psicólogo, um mestre budista – especialmente no Ocidente – é consultado sobre boa parte dos problemas apresentados aos psicólogos clínicos. Trungpa disse ‘’Vocês não devem encarar o que fazem como um trabalho médico comum, vocês, como psicoterapeutas, devem dar mais atenção aos seus pacientes e participar da vida deles. Esse tipo de amizade é um compromisso de longo prazo. É quase como a relação entre mestre e discípulo no caminho budista. Vocês deveriam se orgulhar disso’’.

MEDITAÇÃO

Quem sou eu? O que sou eu? Por que sou eu? Os seres humanos se fazem essas perguntas há vários milhares de anos. Ao longo do tempo, nossa espécie elaborou várias respostas, mas cada pessoa ainda tem de lutar individualmente com essas preocupações. As respostas pré formuladas parecem nos deixar insatisfeitos, tamanha é a centralidade dessas perguntas na condição humana. Em vez de nos oferecer artigos de fé, a pratica da meditação da tradição budista nos permite investigar essas questões em primeira mão, como experiência.
A meditação é uma técnica antiga, mas surpreendentemente aplicável e apropriada para lidarmos com nossa situação contemporânea. Ela encontra ressonância em várias descobertas dos psicólogos ocidentais no últimos século. A meditação budista nos incentiva a começar com nossa experiência de nossa própria mente e a usar a experiência adquirida na meditação para investigar o que somos ou parecemos ser. Os ensinamentos budistas sugerem que precisamos examinar mais atentamente nossos padrões habituais de pensamento e o modo como condicionam nossa experiência. Investigar quem somos pela pratica da meditação pode nos ajudar a nos libertar da bagagem mental desnecessária e a seguir com nossa vida de uma maneira real. Não é que nos libertaremos necessariamente de todos os nossos problemas, mas, se começarmos a observar como frequentemente sentimos um mal estar, sofremos ou ficamos insatisfeitos e ansiosos, começaremos a ver também como superar ou dissolver essas situações difíceis.
Existem diversos métodos de meditação, mesmo dentro da tradição budista. Existem variações significativas de técnicas e modos de aplica-las, o que afeta a experiência pessoal da meditação e as conclusões a que se pode chegar sobre a natureza da mente e da realidade. Pode-se dizer que essas diferenças são parecidas com a observação do mundo por lentes diversas. Podemos vê-lo a olho nu; podemos usar óculos para corrigir a miopia ou a hipermetropia, podemos olha-lo com um microscópio, podemos usar um telescópio para observar o espaço exterior. Cada um desses métodos nos dará uma visão diferente. Algumas dessas visões favorecem uma interpretação costumeira da realidade; outras nos mostram um aspecto do mundo radicalmente diferente do que poderíamos esperar. Galileu foi estigmatizado como herético por descrever o que viu ao apontar seu telescópio para o firmamento. A meditação pode nos proporcionar uma visão igualmente revolucionária.
No entanto, qualquer ferramenta, incluindo a meditação, pode ser usada apenas para confirmar aquilo em que já acreditamos, ignorando tudo o que não se encaixa em nossas visões da realidade – ou pode ser usada para explorar o território com a mente aberta, o que vai nos proporcionar insights novos. A abordagem de Chogyam Trungpa era a do explorador. A técnica que ele ensinava nos incentiva a suspender nossa crença e seguir em frente, deixando de lado a maioria de nossas pressuposições e continuar sem tirar muitas conclusões. Simplesmente ser. Simplesmente sentar-se. Ver o que acontece. Essa era sua prescrição.
Ao mesmo tempo, sendo alguém que já empreendeu extensas explorações e consultou o trabalho de outros exploradores, ele compartilha conosco a sinalização que podemos encontrar no caminho. Além disso, em vez de simplesmente nos deixar a solta, sem rumo, para abrirmos o caminho por nós mesmos através do agreste, ele nos dá um modo de começar e um modo de continuar. Fornece-nos os instrumentos necessários a jornada. Esses instrumentos são, muito simplesmente, nosso corpo e nossa postura, como uma maneira de nos orientarmos e expressarmos nossa atitude desperta e dignidade humanas básicas, nossa respiração, como foco na atenção pura, como lembrete de que estamos vivos e, num sentido mais profundo, com meio de unir nossa mente ao espaço, e as técnicas de rotular nossos pensamentos – ao reconhecermos que estamos pensando – e adotar um senso sutil de esforço, para que possamos permanecer no presente e nos conectar com o agora da experiência. Ele nos incentiva a trazer para a almofada de meditação tudo o que somos e tudo o que experimentamos. Trazer o caos, trazer a confusão, trazer a bagagem. Não deixar nada de lado, não afastar nada. Trazer tudo. Não se apegar a nada, mas deixar estar. Ver o que acontece.
A abordagem de Chogyan Trungpa à meditação – um método sem orientação para um objetivo – é uma recomendação bastante radical de como viver a vida. A técnica que ele ensinava se baseia em desenvolver o gosto pelo agora, por meio de um foco num senso ilimitado de ser. Esse método não se baseia em desenvolver concentração, embora estimule a consciência desperta. Não é uma técnica de relaxamento, embora leve ao desenvolvimento de um senso de paz, pela aceitação de quem somos.
Também não é, essencialmente, uma maneira de superar problemas ou de mudar aquilo de que não gostamos em nós mesmos. Mas é um método que engloba a riqueza e a complexidade – e mesmo o caos – de nossa experiência. É baseado na abertura para si mesmo, e não em tentar suprimir ou mudar alguma coisa. Chogyam Trungpa se referiu a meditação, em várias ocasiões, como fazer amizade consigo mesmo.
Pode-se dizer que, como nada muda com a pratica da meditação tal como ele a apresentava, tudo se transforma. Quando paramos de nos punir e pensar que algo esta errado em nós, isso proporciona uma libertação fundamental e alivia o sofrimento e a ansiedade. Em vez de elaborar um meio de superar a confusão, a meditação nos permite entrar em contato com a sanidade e o caráter desperto da nossa experiência. Por isso, embora a meditação possa nos ajudar a perceber que muitos de nossos conceitos fixos sobre nós mesmos e nosso mundo são questionáveis, ela não é uma técnica que deva basicamente nos desencorajar, nos deprimir ou nos enfraquecer. É antes um modo de valorizar nossa vida, a nos mesmos e aos outros.
Também não é, essencialmente, uma maneira de superar problemas ou de mudar aquilo que não gostamos em nós mesmos. Mas é um método que engloba a riqueza e a complxidade – e mesmo o caos – de nossa experiência. É baseado na abertura para si mesmo, e não em tentar suprimir ou mudar alguma coisa. Chogyam Trungpa se referiu a meditação, em varias ocasiões, como fazer amizade consigo mesmo.
Pode-se dizer que, como nada muda com a pratica da meditação tal como ele a apresentava, tudo se transforma. Quando paramos de nos punir e de pensar que algo está errado em nós, isso proporciona uma libertação fundamental e alivia o sofrimento e a ansiedade. Em vez de elaborar um meio de superar a confusão, a meditação nos permite entrar em contato com a sanidade e o caráter desperto da nossa experiência. Por isso, embora a meditação possa nos ajudar a perceber que muitos de nossos conceitos fixos sobre nós mesmos e nosso mundo são questionáveis, ela não é uma técnica que deva basicamente nos desencorajar, nos deprimir ou nos enfraquecer. É antes um modo de valorizar nossa vida, a nós mesmos e aos outros.
As vezes, na pratica da meditação, podemos confrontar-nos com fatos difíceis que se referem a nós. Porém, é preciso reconhecer que é somente a inteligência essencial que nos permite observar e examinar nossa vida de alguma maneira. Sem ela, não poderíamos fazer perguntas. Essa ideia pode ser nosso primeiro vislumbre verdadeiro da sanidade essencial. Quando passamos a dar valor a nossa atitude desperta, começamos a perceber que existe algo de poderoso e sagrado na vida humana como um todo. Essa conexão com um mundo maior é a base para ter apreço pelos outros e com isso ajuda-los verdadeiramente.
Trungpa Rinpoche acreditava que os praticantes ocidentais da meditação, como também os terapeutas e terapias ocidentais, frequentemente eram afetados por uma sutil – ou não tão sutil – dor de cabeça remanescente da crença no ‘’pecado original’’. Ele falava sobre isso como uma preocupação com a culpa e uma sensação de estar condenado – por sentirmos ter feito ou estar fazendo algo de mau. Ou acreditarmos que algo de mau nos foi feito, o que seria a fonte de nossos problemas. Em contraposição a essa sensação de culpa – que ele julga inteiramente estranha ao budismo – ele falava de ‘’bondade fundamental’’, como o alicerce da experiência e da pratica da meditação. A bondade fundamental é bem sem referencia a um mal, a bondade como base da experiência antes de ter ocorrido qualquer dualismo de bem e mal. Desse ponto de vista, um pecado ou rime não é a raiz fundamental de nossos problemas, embora possa ser um fator agravante. Não precisamos ter medo de vir a descobrir, se nos abrirmos, alguma imperfeição ou segredo terrível sobre nós mesmos. Quando dispersamos a nevoa da confusão, constatamos que simplesmente houve um mal entendido, que por sua vez, se revela como nossa crença errônea num eu ou ego sólido. Descobrimos que nossa natureza é como o Sol a brilhar no céu: luminosa e essencialmente desobstruída. A descoberta do ‘’mito’’ do ego nos lega a segunda seção do livro:

Mente
Enquanto a psicologia clinica ocidental frequentemente inicia sua investigação partindo de  pensamentos, emoções e estados de espírito já inteiramente formados, a visão budista  parte de um nível mais fundamental, observando os elementos constitutivos e as  faculdades básicas da mente, do intelecto e do eu. Na visão apresentada por Trungpa  Rinpoche, começamos pelo espaço essencial, o espaço aberto relacionado ao estado  intrínseco de inteligência e vigilância subjacente a toda nossa experiência. Os diversos  componentes do que normalmente concebemos como nosso eu ou ego nascem dessa base  primordial, ou em meio a ela. Quando sentimos medo – como reação ao aspecto  desestabilizador da abertura – procuramos solidificar essa base de abertura e criamos o  mundo da dualidade, o mundo do ego.  Nos ensinamentos budistas, o ego é visto como uma  invenção desnecessária e ambígua, como uma autoconsciência dualista que nos impede de  adquirir um gosto verdadeiro pela vida. Ele é visto como uma colcha de retalhos sem solidez real, sem existência efetiva. É esburacado como um queijo suíço, e o próprio queijo não tem consistência nenhuma. Embora a ideia possa parecer estranha a certas concepções ocidentais, tem muito em comum com as abordagens psicoterapêuticas que enfatizam as vantagens da aceitação da mudança, da flexibilidade e da vulnerabilidade. O outro aspecto de admitir a existência do mito do ego é se reconectar com a base aberta, reconhecendo esse estado de não-ego como saúde essencial, como estado de ser intrínseco que todos nós possuímos.
Alguns psicólogos ocidentais me (Chogyam Trungpa) perguntaram se a experiência direta da pratica da meditação é realmente necessária… Queriam saber se o ‘’treinamento interpessoal’’ não é suficiente. A isso eu responderia que o treinamento interpessoal não basta em si mesmo. Primeiro, é necessário estudar e vivenciar a própria mente. Só então se pode estudar e vivenciar a mente com precisão nas situações interpessoais.
Isso pode ser percebido no modo como funciona a tradição budista do abhidharma. Primeiro, há uma investigação de como a mente evolui em si mesma e como ela funciona. A expressão disso é a primeira metade do abhidharma. A segunda metade, diz respeito ao modo como essa mente começa a reagir o que é externo a ela. É análogo ao modo como uma criança se desenvolve. No início, ela se preocupa sobretudo consigo mesma. Mais tarde, na adolescência, seu mundo vai se tornando cada vez maior.
Para entender a situação interpessoal corretamente, deve-se em primeiro lugar conhecer a si mesmo. Depois que se conhece o estilo da dinâmica da própria mente pode-se começar a ver como esse estilo funciona nas relações com os outros. E, na verdade, havendo a base do autoconhecimento, o conhecimento interpessoal é uma consequência natural. Descobre-se que o outro desenvolveu sua própria mente. Com isso se pode experimentar o modo como essas duas mentes interagem. Isso leva a descoberta de que não existe algo como uma mente exterior e uma mente interior. ‘’Mente’’ passa a significar, na verdade, duas mentes se encontrando – o que, em certo sentido, significa uma só mente.
Portanto, quanto mais se aprende sobre a própria mente, mais se aprende sobre a mente dos outros. Começa-se a ter apreço por outros mundos, pelas situações de vida das outras pessoas. Aprende-se a estender a visão para além do que há apenas na situação imediata, e com isso a própria mente se abre muito mais.
Isso se reflete em seu trabalho com os outros. Torna você mais hábil no que faz e lhe proporciona também um sentimento maior de cordialidade e compaixão, e com isso você se torna mais afável com os outros. 

O PONTO DE VISTA DA SANIDADE: PECADO ORIGINAL?

Pecado
“Já que o potencial para a realização do estado búdico está presente em todos os seres sencientes, o método budista está, portanto, mais próximo da idéia de bondade original do que de idéia de pecado original. Essa bondade primordial, a natureza búdica, é a natureza suprema da mente.”
A psicologia budista se baseia na ideia de que os seres humanos são fundamentalmente bons.    Suas qualidades mais essenciais são positivas: abertura, inteligência e cordialidade. Esse ponto  de vista tem é claro, suas expressões filosóficas e psicológicas em conceitos como bodhichitta  (mente desperta) [..]. Mas a idéia tem sua origem, em ultima análise, na experiência – a  experiencia da bondade e da dignidade em si mesmo e nos outros. Entender isso é fundamental  e é a inspiração básica da pratica e da psicologia budistas.
Como vim de uma tradição que dá ênfase na bondade humana, foi uma espécie de choque para mim quando descobri a tradição ocidental do pecado original. Quando estava na universidade de Oxford estudei as tradições religiosas e filosóficas ocidentais com muito interesse, e a noção de pecado original me pareceu prevalecente. Uma de minhas primeiras experiências na Inglaterra foi participar de um seminário com o arcebispo Anthony Blum. O seminário era sobre a noção da graça, e entramos numa discussão sobre o pecado original. A tradição budista não considera essa noção necessária em absoluto, e eu expressei esse ponto de vista. Fiquei muito surpreso com o quanto os participantes ocidentais se irritaram. Mesmo os ortodoxos, que talvez não enfatizem o pecado original tanto quanto as tradições ocidentais, tem esse conceito como uma pedra angular de sua teologia.
No quadro desta nossa discussão, parece que a noção de pecado original não apenas permeia as ideias religiosas ocidentais como, na verdade, parece estar presente em todo o pensamento ocidental, especialmente no psicológico. Parece existir, tanto entre os pacientes quanto entre os teóricos e terapeutas, uma grande preocupação com a ideia de algum erro original que seja causa do sofrimento posterior – uma espécie de punição por esse erro. Descobre-se que há uma noção de culpa ou chaga que é predominante. Acreditem realmente ou não na ideia de pecado original – ou mesmo em Deus -, as pessoas parecem verdadeiramente acreditar que fizeram algo de errado no passado e agora estão sendo punidas por isso.
Parece que esse sentimento de culpa fundamental vem sendo transmitindo de uma geração para a outra e permeia vários aspectos da vida ocidental. Os professores, por exemplo, frequentemente pensam que, se as crianças não se sentirem culpadas, não vão estudar com propriedade e por isso não vão se desenvolver como deveriam. Com isso, muitos professores acreditam que precisam exercer alguma pressão sobre as crianças, e a culpa parece ser uma das principais técnicas adotadas. Isso acontece até mesmo no nível em que se procura melhorar o desempenho na leitura ou na redação. O professor procura pelos erros: ‘’Veja, você cometeu um erro. O que vai fazer quanto a isso?’’. Do ponto de vista da criança, aprender se torna algo baseado em não cometer erros, em tentar provar que, na verdade, você não é mau. É inteiramente diferente quando você aborda a criança de modo mais positivo: ‘’Veja o quanto você já melhorou, agora podemos ir ainda além’’. Neste ultimo caso, o aprendizado se torna uma expressão da nossa sanidade e de nossa inteligência inata.
el_pecado
”Parece que esse sentimento de culpa fundamental vem sendo transmitindo de uma geração para a outra e permeia vários aspectos da vida ocidental.”
O problema com essa noção de pecado ou erro original é que ela funciona praticamente como um obstáculo para as pessoas. É claro que em algum momento é necessário percebermos nossas deficiências. Mas, quando vamos longe demais, isso elimina qualquer inspiração e destrói também nossa visão. Desse modo, aquela noção não é muito útil, e na verdade parece desnecessária. Como já mencionei, no budismo, não há ideias comparáveis as noções de pecado e culpa. É claro que existe a ideia de que se deve evitar erros. Mas não há nada que seja comparável ao peso e a inexorabilidade do pecado original.
De acordo com a perspectiva budista, os problemas existem, mas são impurezas temporárias e superficiais que encobrem nossa bondade fundamental (tathagatagarbha). É um ponto de vista positivo e otimista. Mas é preciso salientar mais uma vez que não é um ponto de vista puramente conceitual. Baseia-se na experiência da meditação e da sanidade que ela promove. Existem padrões neuróticos habituais temporários que se desenvolvem com base nas experiências passadas, mas é possível enxergar o que há por trás deles. É exatamente o que se estuda no abhidharma: como uma coisa sucede a outra, como a ação volitiva se origina e se perpetua, como as coisas se desencadeiam e crescem como uma bola de neve. E acima de tudo, o abhidharma estuda como esse processo pode ser superado pela pratica da meditação.
A atitude resultante da concepção e da pratica budistas é bem diferente da ‘’mentalidade do erro’’. Vivencia-se a mente como algo essencialmente puro, ou seja, saudável e positivo, e os ‘’problemas’’ como imperfeições temporárias e superficiais. Esse ponto de vista não significa exatamente ‘’livrar-se’’ dos problemas, mas mudar de foco. Os problemas são vistos no contexto muito mais amplo da saúde: começamos a deixar de nos apegar a nossas neuroses e a superar nossa obsessão e identificação com elas. A ênfase não está mais nos problemas em si, mas na base da experiência, pelo dar-se conta da natureza da mente em si mesma. Quando os problemas são vistos dessa maneira, diminui o pânico e tudo parece mais exequível. Quando os problemas surgem, em vez de serem vistos como simples ameaças, tornam-se situações de aprendizado, oportunidades de descobrir mais sobre nossa própria mente e de prosseguir em nossa jornada.
Por meio da pratica, que é confirmada pelo estudo, a sanidade intrínseca de sua mente e da mente dos outros é vivenciada repetidas vezes. Você percebe que seus problemas não são tão arraigados. Você se percebe capaz de fazer um progresso real. Você se percebe tornando mais atento, consciente, desenvolvendo um senso maior de sanidade e clareza a medida que prossegue – o que é tremendamente encorajador.
Finalmente, essa ênfase na bondade e na sanidade provem da experiência de ausência de ego, ideia com que os psicólogos ocidentais tem uma certa dificuldade. ‘’Ausência do ego’’ não significa, como pensam alguns, que nada existe, uma forma de niilismo. Significa que você pode abandonar seus padrões habituais – e, quando abandona, abandona de verdade. Você não recria nem reconstrói, imediatamente depois, um novo casulo. Ao abandona-los, você não começa simplesmente tudo de novo. Suspender o ego é ter a confiança de que você não vai reconstruir nada, vai vivenciar a sanidade psicológica e o frescor que acompanha esse não reconstruir. A verdade da ausência do ego só pode ser experimentada plenamente com a pratica da meditação.
A experiência da ausência de ego estimula uma empatia real e genuína com os  outros. Você não pode ter uma empatia genuína com o ego, porque sua empatia  viria acompanhada de algum tipo de mecanismo de defesa. Ao trabalhar com  alguém, por exemplo, você poderia procurar atrair tudo para seu próprio  território se seu próprio ego estivesse em jogo. O ego interfere na comunicação  direta, que é obviamente essencial ao processo terapêutico. Por outro lado, a  ausência do ego permite que todo o processo de trabalho com os outros seja autentico, generoso e espontâneo. É por isso que na tradição budista se diz que, sem ausência de ego, é impossível desenvolver uma compaixão verdadeira.
O ponto de vista budista enfatiza a impermanencia e a transitoriedade das coisas. O passado já passou e o futuro ainda não aconteceu, por isso, trabalhamos com o que esta aqui, a situação presente. Isso nos ajuda, na verdade, a não categorizar nem teorizar. Há sempre uma situação nova e viva acontecendo o tempo todo, agora mesmo. Essa abordagem de não categorizar resulta de se estar plenamente aqui, em vez de se ficar mantendo o contato com algum evento passado parar examinar suas possíveis consequências. Não precisamos olhar para o passado para descobrir o que nos ou as outras pessoas fomos feitos. As coisas falam por si mesmas, aqui mesmo, agora mesmo.
Durante minha estada em Oxford e desde então, sempre me impressionei com alguns dos verdadeiros pontos fortes da psicologia ocidental: ela é aberta a novos pontos de vista e novas descobertas. Preserva uma atitude critica em relação a si mesma e é a mais experimental das disciplinas intelectuais ocidentais.
Mas, ao mesmo tempo, vista da perspectiva da tradição psicológica budista, há, definitivamente, alguma coisa faltando na abordagem ocidental. O elemento que falta, como já sugerimos ao longo dessa introdução, é o reconhecimento da primazia da experiência imediata. É nesse aspecto que o budismo representa um desafio fundamental a terapêutica do Ocidente e oferece um ponto de vista e um método que poderiam revolucionar a psicologia ocidental. 


Chogyam Trungpa Rinpoche (1939 – 1987) foi um dos mestres budistas mais dinâmicos do século XX. Foi um dos pioneiros em trazer os ensinamentos budistas do Tibete para o Ocidente, e a ele se deve a introdução de muitos conceitos budistas na língua inglesa e no psiquismo, de uma maneira nova e única. Ao definir o verbete ego, por exemplo, o dicionário inglês da Universidade de Oxford passou a consignar também a acepção utilizada por Chögyam Trungpa Rinpoche. Fundou a Universidade Naropa, primeira instituição de ensino superior de inspiração budista das Américas, assim como uma rede de mais de uma centena de centros de meditação pelo mundo todo. Escreveu muitos livros sobre meditação, budismo, poesia, arte e sobre o caminho Shambhala da condição guerreira. Numerosos grandes mestres detentores de linhagens tibetanas foram por ele trazidos, pela primeira vez, para ensinar nos Estados Unidos e no Canadá. Os milhares de estudantes por ele atraídos continuam a propagar seus ensinamentos e seu legado neste novo milênio.  
No fim da década de 70, Chögyam Trungpa realizou um desejo havia muito acalentado, de apresentar a prática contemplativa aos que não estivessem necessariamente interessados em estudar o budismo. Ele desenvolveu um programa chamado de Aprendizado Shambhala, inspirado no legendário reino iluminado de mesmo nome.
Reconhecido como o décimo-primeiro tulku Trungpa, foi um dos primeiros professores a divulgar os ensinamentos Vajrayana no Ocidente e fundou diversos centros de prática, como a Naropa University.
Há 28 anos, em abril de 1987, o parinirvana de Rinpoche foi marcado por uma longa cerimônia em Vermont, local de seus primeiros ensinamentos no Ocidente.

Muito além do divã ocidental: uma abordagem budista da psicologia éuma coletânea de textos do mestre tibetano de meditação budista Chögyam Trungpa Rinpoche. Apresenta as idéias sobre meditação, mente e psicologia que o autor compartilhou com psicólogos, psicoterapeutas e estudantes ocidentais de meditação budista nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980. Em essência, é um livro sobre como todos podemos trabalhar conosco e com os outros de modo sadio e gentil. Além disso, ao discutir a psicologia budista, o autor trata também dos problemas e necessidades específicos das pessoas com distúrbios psicológicos profundos. Responde também às indagações de psicoterapeutas e outros profissionais da saúde mental que trabalham com os estados mentais de seus clientes e seu bem-estar físico.
Embora o autor reconheça a necessidade, para muitas pessoas, de assistência psicológica profissional e a importância, para alguns pacientes, de proporcionar ambientes e comunidades de terapia adequados, a premissa deste livro é de que todos os seres humanos têm dentro de si os recursos para curar a si mesmos num nível profundo. Trungpa Rinpoche proclama repetidamente que todos nós nascemos com uma sanidade essencial, que ele descreve também como bondade, saúde e vigilância essenciais. Ajudar a nós mesmos e aos outros a entrar em contato com essa base de sanidade e saúde é, ao mesmo tempo, o caminho e a meta da psicologia budista apresentada neste livro.

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