O Efeito Placebo dos Stents
Um trabalho científico de qualidade
merece um interpretação científica de qualidade. Não é isso que vem ocorrendo
com o elegante estudo ORBITA, cuja leitura sensacionalista gerou manchetes do
tipo “Stents não aliviam dor cardíaca, mostra estudo” (Folha de São
Paulo) ou “Stents não melhoram sintoma de angina, diz estudo” (Revista Veja).
O ORBITA é
um ensaio clínico inglês, recentemente publicado no prestigioso Lancet. Dentre
os inúmeros ensaios clínicos que comparam angioplastia versus controle,
este é o primeiro a cegar os
pacientes quanto à alocação do tratamento.
Ensaios clínicos prévios, todos
abertos, são consistentes em não demonstrar redução de mortalidade ou
incidência de infarto. Por outro lado, baseado em forte lógica e em observações
abertas, acredita-se que a angioplastia contribui substancialmente no controle
da angina. O ORBITA é o primeiro estudo devidamente preparado a avaliar este
efeito.
Após a coronariografia e demonstração
de lesão funcionalmente importante pelo FFR, pacientes com angina classe II ou
III foram randomizados para angioplastia versus controle,
sendo os dois grupos igualmente sedados para o procedimento. Desta forma,
ficaram cegos os pacientes e seus médicos quanto à verdadeira realização do
procedimento. Este avanço metodológico ajustou o resultado para um esperado
efeito placebo do procedimento.
Coincidindo com a experiência
clínica, o estudo demonstrou que pacientes submetidos a angioplastia
desfrutaram de melhora da angina. No entanto, de forma surpreendente, essa melhora não foi significativamente
superior à melhora obtida pelo fingimento da angioplastia. Subtraindo
um pelo outro, não sobrou um efeito verdadeiramente decorrente da dilatação do
vaso.
Dor (angina) é um tipo de desfecho
reconhecidamente susceptível ao efeito placebo. Mesmo um analgésico que tenha
um mecanismo real oferece um efeito placebo adicional (o que é bom).
Cientificamente, precisamos reconhecer quanto do efeito é placebo e quanto
resulta do mecanismo primário do tratamento (efeito direto).
O estudo ORBITA não detectou efeito
além do placebo.
Mas o que isso quer dizer? Isso prova que a dilatação do vaso e implante de stent não oferecem efeito anti-anginoso direto?
Mas o que isso quer dizer? Isso prova que a dilatação do vaso e implante de stent não oferecem efeito anti-anginoso direto?
Interpretação de Resultado Negativo
Para interpretar um resultado
negativo, devemos partir de uma premissa científica básica: experimentos científicos não se prestam a
provar ausência de um fenômeno. Isso é impossível, por dois
motivos.
Primeiro, a frase “demonstrar que não
existe” é uma armadilha filosófica. Se não existe, não podemos demonstrar.
Segundo, para provar que algo não existe precisaríamos de uma ferramenta
observacional capaz de observar qualquer fenômeno, por menor que seja,
por mais efêmero que dure, por mais escondido que esteja. Isso não é possível.
Por exemplo, não é possível provar
que não existem discos
voadores. Como nenhuma observação tem lente de aumento infinita, o fenômeno
pode ser tão discreto que não está sendo visto. Para demonstrar ausência,
precisaríamos ser capazes de observar o infinito. Ainda não somos …
Sendo assim, o ônus da prova nunca
pode estar na inexistência de um fenômeno, mas sim na existência. Isso explica
a sequência do teste de hipótese. A premissa natural, nossa posição inicial, é
a hipótese nula. Caso se demonstre o fenômeno, rejeitamos a nulidade e adotamos
uma posição a favor da existência. Se o estudo não consregue rejeitar a
hipótese nula, ficamos com a premissa básica = não sei se existe = não existe
até que se prove o contrário.
Portanto, devemos evitar dizer que um
estudo prova que algo não tem benefício.
Mas vamos além nesta discussão.
Quando estamos diante de uma observação negativa, precisamos avaliar qual o
tamanho do fenômeno que a lente de observação do estudo era capaz de
perceber. Pois o estudo é negativo
para este tamanho de efeito, não tendo capacidade de sugerir inexistência de
efeitos menores.
O desfecho primário do ORBITA era
tempo de exercício no teste de esforço, um desfecho que traduz o quanto a
angina limita o paciente. Por ser um desfecho de caráter objetivo, este é muito
utilizado na avaliação de efeito anti-anginoso.
O ORBITA tinha poder para detectar
uma melhora de 30 segundos no tempo de exercício, decorrente da dilatação do
vaso: subtraindo a melhora do grupo angioplastia pela melhora do placebo,
sobraria 30 segundos. Mas o que significa 30 segundos?
Os autores partiram de evidências
prévias de que o uso de drogas anti-anginosas superam o placebo em 55 segundos.
Espera-se que a dilatação do vaso seja mais efetiva do que drogas. Assim, era
provável que o efeito do stent fosse maior que 55 segundos. Mesmo assim, o
estudo se preparou para detectar uma diferença menor que esta, a de 30
segundos. Portanto, o ORBITA tem poder para detectar o benefício típico de
intervenção anti-anginosas e até efeitos menores do que esse.
Assim, o
resultado do ORBITA pode ser resumido em duas frases:
1.
Angioplastia não promove um
efeito anti-anginoso tipicamente esperado.
2.
Por outro lado, o estudo não
prova inexistência de efeitos menos relevantes.
Não seria científico dizer que o
estudo demonstra que “stents não melhoram sintoma de angina”.
Na verdade, o grupo stent apresentou
uma melhora de 28 segundos e o grupo placebo de 12 segundos. Isso gerou um
incremento de 16 segundos com a angioplastia (após subtraída do efeito
placebo). Porém esse pequena melhora não alcançou significância estatística,
portanto não sabemos se é real ou acaso. Mas não deixa de ser um indício de que
pode haver alguma melhora.
Vale salientar que o resultado se
reproduziu de forma negativa em todos os outros desfechos secundários: escore
de angina, classe funcional, qualidade de vida, tempo para surgimento de
isquemia no exercício, escore de DUKE, consumo máximo de oxigênio. É um estudo
consistente.
E essa é uma das utilidades de
desfechos secundários. Mostrar a consistência do resultado primário. Errado é
procurar um resultado positivo em algum desfecho secundário quando o estudo é
primariamente negativo. Mas desfechos secundários podem reforçar o resultado
primário.
De fato, é difícil encontrar algo que
coloque em dúvida o resultado do ORBITA, por mais inquietante que este seja. E
isso fica mais claro quando analisamos com cuidado os detalhes metodológicos.
A Veracidade do Resultado
O ORBITA é um ensaio clínico
randomizado, cego para paciente, médicos e avaliadores dos desfechos, com
número mínimo aceitável de pacientes (200) para gerar homogeneidade de grupos
da randomização, sem potencial de viés de desempenho (cegamento, drogas utilizadas
de forma semelhante), risco baixo de viés de observação (desfecho primário
objetivo, estudo cego), analisado por intenção de tratar. Além destas questões
clássicas, vale salientar cuidados adicionais:
·
Pacientes foram testados quanto à efetividade do cegamento e o índice
foi perfeito (resposta igual entre os dois grupos quando os pacientes eram
perguntados em que grupo estavam).
·
Mesmo sedados, havia um isolamento acústico que reduzia a possibilidade
do pacientes ouvir o som dos procedimentos.
·
Em 69% a obstrução estava na descendente anterior, a mais importante
coronária.
·
Classe funcional III (angina aos mínimos esforços) estava presente em
39% dos pacientes, sendo o restante classe funcional II.
·
Todas as lesões eram confirmadas pelo FFR como hemodinamicamente
importantes e a média de estenose foi 84%.
·
Pacientes que teriam alguma lesão não angioplastada foram excluídos,
evitando angina residual decorrente de outro vaso.
·
O grupo sham também manteve dupla anti-agregação
plaquetária.
Surpreendente?
Na verdade, o resultado não é muito
surpreendente, pois dor é muito susceptível ao efeito placebo e quanto mais
complexo for o procedimento, mais forte será o placebo. Comprimido azul tem
placebo mais forte que comprimido branco, placebo injetável é mais intenso que
placebo oral e placebo caro é mais “eficaz” que placebo barato.
Portanto, o resultado de que stent
tem efeito placebo não é surpresa e de certa forma já havia sido
demonstrado.
Em 1960 foi publicado o primeiro
ensaio clínico da história a utilizar sham no grupo controle
de um procedimento cirúrgico. Coincidentemente, a doença em questão era angina
do peito e o estudo foi publicado no American Journal of Cardiology.
O estudo foi realizado para avaliar se uma popular cirurgia na época (ligadura
da artéria mamária interna) realmente melhorava angina. Na prática, a melhora
da angina relatada pelos pacientes entusiasmava os clínicos. Até que cientistas
(céticos) resolveram testar a verdade. Fizeram um ensaio clínico onde todos os
pacientes recebiam a incisão cirúrgica, mas apenas metade era sorteada para
ligadura da artéria. O resultado? Igual ao estudo ORBITA. A melhora do grupo
cirurgia também ocorreu no grupo sham.
Portanto, já sabíamos que angina é um
sintoma muito susceptível ao efeito placebo de intervenções. Porém esperávamos
um maior efeito direto do stent.
E como fica a prática clínica?
Na prática clínica atual, quando o
paciente tem angina estável, considera-se a intervenção coronária percutânea
como um meio eficaz de melhorar os sintomas, melhor do que o tratamento
clínico. Essa é uma indicação frequente. Isso muda depois do ORBITA?
Para responder a esta questão,
devemos utilizar o pensamento científico bayesiano, calculando o valor preditivo negativo do
ORBITA. Sendo o ORBITA um estudo negativo, qual a probabilidade de inexistência
de um efeito direto minimamente relevante do stent?
Valor preditivo resulta da probabilidade pré-estudo da
hipótese ser verdadeira e da qualidade
do estudo. Antes do estudo, a probabilidade do stent melhorar angina era
alta, com base na lógica e em estudos randomizados não cegos. O ORBITA é um
estudo de boa qualidade, portanto deve ser capaz de promover uma redução desta
probabilidade. Mas como partimos de uma probabilidade pré-estudo alta,
terminamos com uma probabilidade pós-estudo ainda razoável. Devido à
probabilidade pré-teste, o ORBITA não afasta de todo alguma melhora da angina.
Por outro lado, o ORBITA é suficiente
para nos alertar que provavelmente superestimamos o benefício direto do stent
na angina estável. O estudo reduz o “valor” do procedimento, colocando um pouco
menos de peso neste benefício dentro de uma perspectiva econômica (benefício -
custo).
Benefício
= evidência
clínica x preferência do paciente
Custo = custo pessoal do paciente
+ custo monetário do sistema.
Valor = benefício - custo.
Nesta equação, o “valor” do stent
ficará algo menor após o ORBITA, principalmente se a preferência do paciente
pender ao tratamento clínico e/ou se o custo pessoal do paciente for
individualmente grande (risco de complicações, por exemplo).
Há sempre uma questão filosófica
quanto ao placebo, que já abordamos
nesse Blog: se placebo promove uma melhora real, não poderíamos
fazer uso disso? Bem, é interessante desfrutar do placebo quando este
incrementa um tratamento que já tem efeito direto. No entanto, entraremos em um
dilema ético ao propor “simular” para o paciente que algo funciona apenas para
obter um efeito placebo. É uma linha tênue que se desenha entre o adequado e o
inadequado.
Epílogo
A elegância do ensaio clínico ORBITA nos faz lembrar que medicina
baseada em evidências nada mais é do que medicina baseada em humildade. A humildade de reconhecer que muito
do que fazemos possui impacto menor do que imaginamos. Nem por isso fecharemos
com a negação plena do efeito anti-anginoso do stent. Este efeito ainda é
provável.
“Nudge” é um termo proposto pelo
ganhador do prêmio Nobel de economia deste ano. Richard Thaler demonstrou que o
pensamento humano é anti-econômico, superestimando ganho e subestimando custos.
"Nudge" é um empurrãozinho que realoca nosso pensamento em uma
direção menos enviesada. O resultado do ORBITA funciona como um “nudge” na
direção do pensamento clínico racional.
Fonte:http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com/2017/11/o-efeito-placebo-dos-stents.html
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