A Tentação pelo Poder Espiritual
Não são poucos os que procuram o ocultismo em busca de poder. Muitas vezes é um desejo de poder sobre as coisas do mundo: ter mais dinheiro, curar doentes, curvar colheres ou reviver os mortos. Outras vezes, busca-se dominar estados mentais: ter menos ansiedade, mais coragem, menos raiva. Finalmente, há um anseio de controlar também o mundo dos espíritos, buscando o êxtase dos estados alterados de consciência, contato com entidades e a obtenção de poderes psíquicos.
Frequentemente esse desejo desenfreado por poder está mascarado. Por um lado, há pessoas que de forma muito direta e sincera simplesmente declaram que, sim, elas querem ter poder sobre o mundo material e espiritual e não enxergam nenhum mal nisso. Ou, mesmo que houvesse um mal, elas não se envergonhariam de realizar esse mal, principalmente se fosse para ajudar a si mesmas ou a pessoas que amam.
E isso nos leva ao próximo ponto, que é a busca por poder sob a justificativa de ajudar alguém, que muitas vezes toma a forma de “os fins justificam os meios”. Quando alguém declara que está buscando desenvolver poderes psíquicos para curar doentes, a princípio nos parece muito nobre, mas às vezes devemos tomar cuidado para não cair nessa armadilha que preparamos em nossa mente.
É muito mais comum que desejemos o poder pela sede de poder. Quando não queremos admitir isso para nós mesmos, podemos alegar que nosso objetivo é maravilhoso, como ajudar outras pessoas ou o meio ambiente. Queremos tornar o mundo um lugar melhor, queremos tornar os outros melhores, essas pessoas que enxergamos como tão egoístas e corrompidas pelo poder. No entanto, nós não nos olhamos no espelho para notar que, da mesma forma que os outros, buscamos solucionar esse anseio de controlar as pessoas e o mundo fazendo exatamente isso.
De onde vem esse desejo de poder? Da nossa incapacidade de aceitar as coisas como elas são. De forma mais direta, nós não suportamos o fato de não sermos perfeitos. Ninguém é perfeito, o mundo é imperfeito e isso nos causa muito sofrimento. É ilusão pensar que se X ou Y fosse diferente tudo automaticamente se tornaria ótimo. Em vez disso, uma vez que X e Y fossem resolvidos, iríamos encontrar mais defeitos, numa busca sem fim.
Buda resumiu essa situação de forma muito simples: a vida é sofrimento, os desejos causam sofrimento, livre-se dos desejos e livre-se do sofrimento.
Então você pensa: “achei a solução! Vou me desapegar das coisas materiais e me focar apenas no meu desenvolvimento espiritual”. A partir daí, uma nova batalha pelo poder se inicia. Em vez de frear a sua sede por poder, você apenas troca um desejo de poder por outro.
Você passa a se achar muito nobre porque não está mais interessado em obter essas “quinquilharias mundanas” compradas pelo dinheiro. Em vez disso, passa a usar seu tempo para comprar outro tipo de prazer: o êxtase espiritual, sem perceber que aquilo é prazer igual, mas com um nome mais sofisticado.
Na vida, usamos nosso tempo e dinheiro para comprar prazer e fugir da dor, um tipo de jogo sem objetivo aparente, além da mera diversão que teremos até o jogo acabar. O jogo espiritual é bem parecido. Sente-se para meditar para obter prazer ou tranquilidade, seja corporal ou mental. Levante-se da meditação quando houver dor ou desconforto, ou use uma almofada mais macia e uma música mais inspiradora.
Até quando meditamos ou realizamos outra atividade espiritual, o desejo por poder continua. Queremos fazer parar as dores que sentimos, controlar nossos estados mentais e buscar desesperadamente pelos estados alterados de consciência que nos geram prazer. Quando obtemos tais estados alterados, temos a sensação de que somos seres muito elevados, acima de mortais comuns, mas estamos apenas enganando a nós mesmos. Muitas vezes, estamos apenas viciados na sensação incrível que sentimos, como viciados em drogas.
Nada melhor do que realizar um feitiço para controlar o mundo ao seu redor. Usar métodos divinatórios para tentar desvendar o futuro é nossa tentativa de controlar o tempo e ter poder sobre ele. Vista-se com um manto negro, trace um círculo mágico no chão e use uma espada para controlar entidades. Domine seus próprios estados mentais para mostrar quem manda.
Afinal, o mundo é um lugar difícil. Eventualmente nos damos conta de que não seremos milionários para dominar o mundo com dinheiro, nem presidentes, nem a Miss Universo, então, que diabos, vamos dominar o mundo espiritual! Lá não é preciso ter uma conta bancária, um carro de luxo e ser famoso no Facebook. E de que servem essas coisas tão pequenas se você pode domar todos os demônios dos grimórios medievais e arrastá-los como cachorrinhos na coleira?
Caso não curta muito essas paradas mais sinistras, vamos nos ater ao básico: obter estados alterados de consciência e nesses estados conquistar alguns poderes psíquicos que te permitam fazer copos levitar e curvar colheres. Afinal, nem você e nem ninguém que você conhece tem mãos para pegar copos. Ainda não inventaram controle remoto para copos. Sendo assim, é um objetivo muito útil pelo qual vale a pena dedicar a vida.
Mas você não é desses. Você é uma pessoa superior, que se dedica a magias de cura e ressurreição dos mortos. Os médicos ainda não inventaram curas para todas as doenças e para a morte, então vale a pena apostar no poder espiritual para complementar o poder científico sobre a natureza, certo? Talvez.
Buda iniciou sua jornada para encontrar uma solução para velhice, doença e morte. Ele conseguiu, mas o que ele encontrou não foi nenhuma pílula que te impede de envelhecer, adoecer e morrer. Ele descobriu que se enxergasse tanto dor e alegria como iguais, e tanto doença e saúde como iguais, não desejando nem um e nem outro, o que acontecia lá fora já não importava tanto. O sofrimento físico continuaria, mas a sua paz mental em relação a essas situações seria muito maior. Ele até mesmo poderia ficar em paz com o fato de que não conseguiria controlar suas sensações mentais todas as vezes. Ele não precisava mais controlar e sim soltar. Apenas observar. Dor é apenas dor. Morte é apenas morte.
Iluminação é apagar. É morrer para seu eu cheio de desejos. Quando você morre para seu ego, não há mais nada para ferir e matar. Você simplesmente não pode mais ser ferido ou morto, porque não há mais nada lá. Você ainda sente a dor física e mental, mas não se identifica com elas. Seus julgamentos em relação a elas são ilusórios. Essas coisas não são mais o centro de seu mundo, sobre as quais se apoia sua esperança de felicidade.
Buda encontrou muitos poderes e êxtases mentais em suas meditações, mas não se apegou a eles. Apenas observou-os e deixou-os passar, como todo o resto, sem tentar domá-los ou fazer deles seu objetivo final.
Jesus realizou muitos milagres, mas não veio a esse mundo para curar os doentes e reviver os mortos, por mais nobre que isso seja. Ele veio para algo ainda mais importante: morrer. Assim como Buda, ele morreu para seu eu.
Em outras palavras, você não veio ao mundo para buscar o prazer e fugir da dor. E nem para ter mais saúde e prolongar sua vida (para assim ter mais tempo para ter prazer). É claro que podemos fazer tudo isso de forma temporária e ninguém deve ser condenado por agir dessa forma. O problema é tornar apenas isso o centro de sua existência e assim cair em desespero. O desespero vem porque quando acreditamos que a vida é apenas tentar escapar da morte, não parece fazer sentido.
Dizer que viemos ao mundo não para ter alegrias, mas para sofrer e morrer, pode soar muito pessimista. É claro que ter alegrias é bom e não é errado, mas nós também estamos aqui para aprender a sofrer e morrer.
Não costuma ajudar muito nesse aprendizado ser um magista mimado que deseja que o mundo ou seus próprios estados mentais estejam a seus pés a todo o momento.
A Magia do Caos é um tipo de magia experimental que muitas pessoas reduziram a apenas lançar sigilos e servidores para brincar e satisfazer todas as minhas vontades o mais rápido possível como se eu fosse um rei ou uma criança. Não há nada de errado em se divertir de vez em quando, mas permanecer apenas no paradigma “bater punheta para sigilo trazer meu amor de volta” é quase um insulto às vastas possibilidades que o caoísmo oferece.
Que tal tentar o paradigma do morto-vivo: “vou fingir que estou morto essa semana” e tentar passar esse período sem realizar nem mesmo uma única ação para benefício próprio, mas sempre que isso vier à sua mente mudar de atividade ou incluir outra pessoa junto? Ou quem sabe você tenta o paradigma da lesma: “sou uma lesma nojenta e detestável” e passa uma semana sem se orgulhar de si mesmo, apenas diminuindo a si mesmo e falando mal dos próprios atributos? Anote e veja os resultados até a próxima experiência. Em vez de fazer um sigilo que te traga um ganho, faça um que te traga um “sofrimento que te faça crescer espiritualmente”. Alimente um Servidor da Morte, que faça um ferimento profundo no seu ego uma ou duas vezes por dia.
Existem muitas maneiras diferentes de viver, então não queira reduzir seu mundo, sua vida e seus desejos a apenas uma delas, mudando só a embalagem. Quem deseja obter uma maturidade espiritual genuína, e não apenas trocar a busca de poder mundano por desejo de poder espiritual, fará bem em notar que vida e morte não são estados estáticos, mas dinâmicos. Todo ocultista sabe que para renascer primeiro você precisa morrer para seu eu antigo. E isso não é apenas uma metáfora. Para crescer precisamos aceitar e tentar entender alguns dos sofrimentos e pequenas mortes do ego pelas quais passamos ao longo do dia e da vida, em vez de apenas negá-los e tentar se livrar deles.
Aquele que quer apenas continuar a fingir ser o rei do universo, brincando de senhor do mundo, como se fosse todo poderoso e imortal, cedo ou tarde irá descobrir que no fundo era apenas um escravo dos desejos. Ou, como bem colocou Thomas Merton em seu livro “A experiência interior”:
“Quem é escravo de seus próprios desejos necessariamente explora os outros para pagar o tributo ao seu próprio tirano interior”
O que chamamos de “defeitos” do mundo e da natureza que precisam ser imediatamente modificados por magia, muitas vezes são exatamente os instrumentos necessários para nos fazer amadurecer de forma moral e espiritual. Uma vida fora da proteção da nossa bolha pode ser mais dolorosa, mas também é mais real. Quem vive uma vida de plástico, no fundo nunca viveu e por isso não saberá morrer. Somente quem sai do casulo e vive de verdade entenderá que a existência da dor e da morte são tão necessários para uma vida plena quanto a respiração.
E para finalizar, mais um pouco de Thomas Merton, em “A sabedoria do deserto”:
“O abade João orara ao Senhor, que o livrara de todas as paixões, tornando-se assim impassível. Nessa condição, foi até um dos anciãos e disse: ‘Você tem diante de si um homem que está em pleno descanso e livre de todas as tentações’. O ancião disse-lhe: ‘Vá e reze ao Senhor para que lhe envie alguma luta a ser travada dentro de si, porque a alma é amadurecida somente por meio de batalhas’. Então, quando as lutas começaram a aparecer novamente, ele não pediu para que fossem afastadas de si, apenas disse: ‘Senhor, dê-me força para resistir à luta'”.
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