Mistério marca relação entre cura e fé
Doutor Fritz opera na Capital. Inconclusividade científica, fé e merecimento dão o tom do evento
"A cura já não está ao meu dispor. Agora, estou correndo atrás de um milagre”. A afirmação do aposentado Herno Campos, 54 anos, é recorrente entre as motivações de quem procura a cura espiritual. Muitas pessoas buscam na medicina alternativa a solução para as suas doenças. Apesar da ciência tradicional se apropriar de certas técnicas singulares, como a acupuntura, algumas delas continuam baseadas apenas na fé.
Deste o Egito Antigo, onde a terapia chegava através do Seichim (acesso e canalização das energias cósmicas radiantes), os tratamentos espirituais estiveram presentes no cotidiano das pessoas. Antes, como um dos poucos caminhos viáveis. Hoje, como o último ato de fé na batalha contra um mal invencível. Contudo, esse aspecto da medicina alternativa permanece parcialmente ignorado do ponto de vista científico.
Herno Campos chegou, em uma fria tarde de junho, ao ginásio da Mocidade da Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, à procura da cura para um gliobastoma de nível 4. O tumor, localizado em seu cérebro, é considerado extremamente agressivo. “Faz dois anos que estou me tratando. A expectativa dos médicos era que eu vivesse apenas um”, disse. Porém, a agressividade do tratamento de químioterapia e radioterapia fez com que Herno procurasse a alternativa ascética.
O folder de apresentação do Instituto Espírita André Luiz, que realiza cirurgias espirituais, afirma que o corpo sofre de doenças geradas por reflexos de alterações no espírito. As enfermidades são causadas por ações equivocadas em um âmbito moral e por modificações no plano emocional do ser humano. A cura espiritual age no perispírito, que seria a camada intermediária que liga o corpo (físico) e a alma (abstrata). Para isso, o médium encarna o espírito de um médico e assume o tratamento.
A operação de Herno seria realizada pelo Doutor Adolf Fritz, por intermédio através do médium Mauro Vieira. Era a primeira vez que Fritz operava na capital gaúcha. Ele obteve fama mundial através da mediunidade de José Pedro de Freitas (José Arigó), a partir do final da década de 1950, no Brasil. Diversos médiuns em todo o país e na Europa já afirmaram manifestar o espírito de Fritz.
De acordo com a edição 56 da Revista UFO, publicada em novembro de 2007, Adolf Friedrick Fritz nasceu na Alemanha e formou-se em medicina na Faculdade de Yverdun, na Suíça. Com 61 anos, foi mandado para o front da Primeira Guerra Mundial, como médico cirurgião. Lá, especializou-se em realizar cirurgias com poucos recursos. Fritz teria falecido quatro anos depois, após ser atingido por um estilhaço de explosão de granada. Apesar da riqueza de detalhes da história, a vida terrena de Adolf Fritz não foi documentada.
O protocolo de início da cerimônia de cura espiritual inicia com uma corrente de 25 pessoas, vestidas de branco, no centro do local. De mãos dadas, fazem orações como o Pai Nosso e a Ave Maria. Em seguida, uma enfermeira dá as instruções: é proibido cruzar pernas e braços, e os celulares devem ser desligados. Enquanto isso, o médium se prepara para começar as operações.
Quem frequenta, por algum motivo, não consegue evitar o questionamento entre crença e razão. Apesar de não conseguir mergulhar cegamente na fé que inebria o ar, os acontecimentos são perceptíveis aos sentidos humanos: como explicar a ausência de dor onde ela, naturalmente, deveria existir? E como permanecer completamente cético ao tratamento, vendo tantas provas vivas de sua eficácia?
As cirurgias são, em sua maioria, feitas em menos de dois minutos cada. Apenas casos mais graves são levados às macas, localizadas no fundo do ginásio, local que biombos impedem a visão do público. Herno foi levado a uma delas, onde teve parte de seu cabelo raspado. “Eu senti, em um primeiro momento, como se tivesse levando uma injeção. Depois, percebi minha cabeça sendo cortada, de forma indolor. No restante da operação, estava envolvido pelo clima e pela vibração dos médiuns. Não senti nada além de uma tontura”, afirmou Herno.
As orientações pós-operatórias são a troca de curativos, a abstinência sexual por três dias e a impossibilidade de comer carne vermelha, no mesmo período. Herno revelou que Doutor Fritz pediu para vê-lo novamente em dois meses. Não foi passada nenhuma orientação quanto ao tratamento feito, paralelamente, na medicina tradicional.
“Fiquei, de fato, tenso. Mas estava ciente de que estava nas mãos de um grande cirurgião”
A crença de que iria deixar o ginásio curado de uma atrofia no nervo óptico levou o radialista Newton Azambuja à Lomba do Pinheiro, na mesma gelada tarde de 5 de junho. Ele nasceu estrábico e, em 1969, fez uma cirurgia para a correção do problema. Todavia, a visão jamais voltou ao normal. “Anulei minha carreira de narrador esportivo, passando para a reportagem, em virtude do meu problema de visão”, disse.
Newton já havia assistido a uma sessão de cura do Doutor Fritz em Rosário do Sul, sua terra natal. “Possuo um sonho acalentado de recuperar a visão do olho direito, desde os dez anos de idade. Através da operação a que fui submetido hoje, tenho fé que alcancei esse objetivo”, afirmou.
Os procedimentos que tratavam de problemas de visão, como catarata e miopia, foram realizados em sequência. Formou-se uma fila de aproximadamente 50 pessoas, somente para esta especialidade. “Fiquei, de fato, tenso. Mas estava ciente de que estava nas mãos de um grande cirurgião”, concluiu Newton.
O radialista relatou, ainda, que o médico fez uma brincadeira com ele durante o procedimento. “O Doutor Fritz brincou comigo, dizendo que eu devia agradecer por ele não tirar meu olho para fora”, riu. O bom humor do médico alemão, através do médium Mauro Vieira, atingiu também a reportagem. Ele convidou um jornalista para encostar no olho de um paciente, ou retirar agulhas no final de um procedimento.
De acordo com a equipe de enfermagem do médium Mauro Vieira, a melhora se dá por através de dois fatores: a fé em Deus e o merecimento. Contudo, as operações alternativas podem representar um problema legal. O artigo 282 do Código Penal Brasileiro, por exemplo, condena a prática ilegal de medicina. Já o 283 prevê pena para anúncios de cura por “método secreto ou infalível”. Enquanto isso, o 284 impõe condenação por curandeirismo, “usando gestos, palavras ou qualquer outro meio”, e “fazendo diagnósticos”. Ainda assim, alguns hospitais espirituais realizam até 800 cirurgias deste tipo por dia.
Como se trata de uma ação extrema, até mesmo dentro das práticas de cura da alma, não há conclusão sobre a eficácia da cirurgia espiritual. Em pesquisa publicada na 46ª edição da revista da Associação Médica Brasileira, em 2000, o fundador do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Alexander Moreira-Almeida, acompanhou dez procedimentos espirituais. O médico pôde apurar que as cirurgias são realizadas sem nenhuma técnica de antissepsia, sem anestesia e produzem feridas cirúrgicas reais nos pacientes.
As lesões, no entanto, são opcionais. O paciente pode optar entre a cirurgia visível, que inclui a retirada de material, e a invisível, que é realizada apenas no espírito. A crença faz a diferença neste momento. Após o estudo, Moreira-Almeida acompanhou apenas quatro pós-operatórios. Seis meses após a cirurgia, dois demonstraram significativa melhora, e dois afirmaram não ter obtido benefício algum.
O resultado da pesquisa é inconclusivo: Moreira-Almeida afirma que, como não houve identificação de fraudes, o fenômeno ainda necessita de estudos para a explicação adequada da analgesia e uma avaliação de sua eficácia. “Como vários autores relatam benefícios com os tratamentos, é fundamental um melhor conhecimento destes mecanismos. Isso possibilitaria a adaptação como terapias complementares à medicina ocidental”, afirma.
“Meu organismo não sabe que estou incorporado”
Mauro Vieira realiza operações por meio de uma mediunidade inconsciente. “Meu organismo não sabe que estou incorporado. Não tenho consciência, apesar de sentir, às vezes, que meu corpo precisa se revitalizar”, afirma. Além do Doutor Adolf Fritz, o médium trabalha com o Doutor Joseph Fritz e o Doutor House Fritz. Cada um deles possui uma área de especialidade e aptidão, e os três operaram na presença da reportagem.
O Dr. House Fritz é conhecido pela velocidade em seus atendimentos. Ele realizaria a cura apenas através de uma agulha, penetrando o paciente, em cerca de 10 segundos. “A chave do processo é a fé. Será que a cura vem através do que tu sentes ou do que tu falas?”, provoca. Durante o atendimento, ele fez um teste com dois repórteres, introduzindo uma agulha no braço de cada um deles. O repórter que afirmou ter fé em Deus não experienciou nenhuma dor. Enquanto isso, o repórter que se declarou ateu sentiu um desconforto.
O médium afirma que, se o ser humano for capaz de aceitar a espiritualidade e possuir fé, a cirurgia espiritual não é necessária. “Se a pessoa chegar em casa, colocar um copo d’água e se concentrar no que precisa, ela será atendida. Isso, é claro, se possuir fé e merecimento”, pondera.
O termo “merecimento”, de acordo com Mauro, se refere à alma da pessoa, e não só as suas atividades na Terra. “Uma prostituta, sob o meu olhar, não seria merecedora da cura. Mas nós não sabemos os motivos que levam ela a desempenhar esta atividade. Se a alma dela for pura, o tratamento funcionará”, diz.
Descartando a inconclusividade científica e o cenário nebuloso da fé humana, a cura espiritual é muito procurada. Nos dois dias de atendimento do Doutor Fritz em Porto Alegre, foram realizados cerca de mil atendimentos. Uma das razões para que isso aconteça é o fato dela não provocar nenhum efeito colateral e ser gratuita.
Em situação grave ou não, todos os pacientes tinham em comum a crença incondicional de que aquela operação funcionaria. O mistério que marca a relação entre cura e fé perdurará por muito tempo, impregnado na subjetividade da fé humana. “Ainda vai levar um tempo até que o ser humano seja capaz de compreender a espiritualidade”, conclui Mauro.
Fonte:https://medium.com/fio-da-meada/
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