A DANÇA E O SAGRADO

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A Dança e o Sagrado

Texto originalmente publicado na Revista Jung & Corpo nº 9, 2009.
 
Numa sessão de terapia, conversava com uma paciente sobre uma dificuldade sua. Ela, uma mulher de 32 anos, gosta muito de dançar flamenco. Há alguns anos vem se dedicando a aprender esta modalidade de dança, mas sente-se sempre insatisfeita com seu desempenho. Quando pensa no que esta dança lhe traz, estabelece associações com força, beleza, firmeza, sacralidade, pureza. No entanto, ao executar seus passos, fica presa, “travada”, incapaz de se soltar e refletir toda exuberância e significado que o flamenco tem para ela. Este fato, evidentemente, pode ter inúmeras interpretações, mas elas não dizem respeito a este texto. O que quero abordar aqui é parte do diálogo que tivemos.
Como ela associou à dança um caráter sagrado, falamos sobre espiritualidade, e eu lhe sugeri que dançasse como se fizesse uma oferenda aos deuses. Ao que ela exclamou, quase que num protesto: “Não posso!”. Quando lhe perguntei por que, ela me disse: “Porque é sensual!”.
Esta observação vai de encontro à idéia de o corpo, com suas diferentes expressões, ser primordialmente associado ao profano. Porém, o que caracteriza o profano e o distingue do sagrado?
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Eliade ([1956], sem data), em seu livro O Sagrado e o Profano, caracteriza o sagrado como algo que ocorre em um tempo fora do tempo, numa reaproximação do tempo mítico, o tempo do início (illo tempore). É sagrado também aquilo que existe num temenos, num espaço sagrado, ou consagrado. Assim, tempo e espaço, ao adquirirem um significado além do cotidiano, ao se transformarem em elementos “extra-ordinários”, ao propiciarem vivências transcendentes, são sacralizados. Na linguagem da psicologia analítica, o sagrado é o simbólico, pois esta é a característica que nos transporta, e a todas as nossas experiências, para além do óbvio.
O símbolo, para Byington (2008), é a célula-tronco da psique. Graças a ele, podemos nos conectar com os significados mais profundos de nossas vivências. Os símbolos e as funções estruturantes são os veículos dos arquétipos, que, para Jung, são os fundamentos universais da psique, nossa energia primordial. Enquanto que, para Jung ([1948], 1985), os símbolos são “a máquina de transformar energia”, Byington afirma que símbolo e função estruturantes, vistos como entidade e dinâmica, são capazes de transformar a energia psíquica e estruturar e desenvolver a consciência. Por exemplo: a dança é um símbolo; o dançar, uma função estruturante.
Quando estamos frente a uma situação que, sabemos, não se reduz à sua aparência ou superfície, mas nos aponta para algo mais, estamos diante da vivência consciente de um símbolo. Embora todas as situações possam ser vistas como simbólicas, nem sempre temos consciência de seu significado. Esta falta de consciência pode fazer com que uma experiência não seja vivida em toda sua abrangência, ficando aquém de sua possibilidade e, portanto, sendo profanada, ao invés de sacralizada. Se enfocarmos a vida valorizando a dimensão simbólica, ela será mais plena de sentido. A dança, bem como o corpo, é um símbolo. Como tal, ambos possuem potencial para a sacralidade.
No símbolo pode haver tanto o predomínio do aspecto pessoal como do coletivo. É assim também com a dança. Ainda que seja a pessoa que execute os passos, com suas características físicas, rítmicas, de sensibilidade, entrega etc, a dança pode estar inserida num ritual que envolva todo um povo, um grupo ou comunidade. Na dança ritual, o corpo se torna território mítico, sacralizado pelo significado da vivência grupal.
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Na dança, a expressão corporal em sua dimensão objetiva, concreta, física, senso-perceptiva, sempre inseparável da subjetividade, das emoções, sentimentos, memória, encontra terreno fértil para se expandir ainda mais e expressar o coletivo, o universo mítico, as tradições folclóricas, religiosas, ou ainda os ritos associados a situações existenciais ou de iniciação. Unindo o físico, o emocional e o espiritual, a dança propicia uma vivência de totalidade.
Nas palavras de Wosien, citado por Gomes (2003):
A dança é a linguagem figurativa mais imediata que fluiu do hálito do movimento. Ela é tida, enfim, como o primeiro testemunho da comunicação criativa. Nos povos que ainda atribuem um sentido ao invisível, a dança é, ainda hoje, pedido de oração. Nela, o homem consegue exteriorizar todos atos primevos da alma, desde o medo até a entrega libertadora. (p.127)
Desde a pré-história, a dança faz parte da vida do homem – na verdade, é inseparável da espécie humana. Na descrição feita no site da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), a respeito das pinturas rupestres na Serra da Capivara, no Piauí, podemos ler: “quatro temas principais aparecem durante os seis mil anos atestados de existência desta tradição[1]: dança, práticas sexuais, caça e manifestações rituais em torno de uma árvore.”
Há a hipótese de que as pinturas rupestres desenvolvidas no período paleolítico tenham sido realizadas por xamãs, que reproduziriam imagens de suas visões quando estavam em transe. Quando estas pinturas representam o ser humano, com freqüência ele está caçando ou dançando, visto que a dança era, já nesta época, uma maneira de o homem entrar em contato com a divindade. Sabemos que muitos povos tribais realizam suas cerimônias – sejam elas fúnebres, iniciáticas, ou associadas às atividades cotidianas, como a caça – através de danças, especialmente danças circulares.
Sobre estas, nos diz Machado (2005), em seu artigo Danças Circulares e Suas Correlações Psicofísicas, Espirituais e Integrativas:
Nos períodos mesolítico e neolítico as danças circulares possuíram motivos ou finalidades variadas, expressando de algum modo a relação com o sagrado. Dançava-se para atrair chuva, para favorecer a caça ou a pesca, para agradecimento às divindades ou para rogar perdão, para favorecer a colheita ou para pedir a cura de algum enfermo, e assim por diante. (p.52)
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Origens Míticas da Dança
Lucianus (séc.II), referindo-se à dança, diz que:
Podemos dizer que a dança surgiu no começo de todas as coisas, e veio à luz junto com Eros, aquele primeiro, pois vemos esta dança primeva surgindo claramente na dança do coro das constelações, nos planetas e nas estrelas, em suas ondulações e mudanças, numa organização harmoniosa. (in Coomaraswamy, p.66-67)
Para vários povos, a origem da dança é mítica. Para os guaranis, de acordo com Menezes (2008), Nhanderú, uma divindade guarani, ensinou a dança e mandou dançar a dança – o seu surgimento confunde-se com a própria existência Guarani.
Menezes (2008) descreve relatos orais, coletados nas aldeias Guarani, nos quais a dança guarani surge com a criação do mundo.
No estudo sobre a música Guarani, relata que a experiência de contato com a divindade é realizada através do corpo, o qual vai se transformando, de pesado e agressivo, para alegre e saudável. A idéia nos cantos e nas danças é que essa emoção se transforme em sentimento, que tenha duração no tempo, condição para se conseguir o aguyjé, a perfeição. (…) quando o Guarani dança, tem uma sensação de paraíso, uma vivência de estar num outro lugar ou estado, e que essa sensação de paraíso pode ser prolongada, ainda que essa capacidade seja sempre testada no cotidiano. (p.9)
(…)
A desordem, que é vivida de uma forma singular dentro da comunidade Guarani, em sua própria estrutura mitológica, provoca o ato da dança. É no movimento que o Guarani encontra Nhanderú. A dança–rito coloca o corpo e o espírito em movimento num espaço de não rigidez, dentro de uma indissociável relação entre drama e sagrado. (p. 12)
Montardo (2002), citado por Menezes (idem), registra a crença de que, para os Guaranis, existe vida na Terra porque eles a estão cuidando, e este cuidar passa pela tríade: cantar, rezar e dançar.
Existe também um relato sobre o surgimento mítico da dança na Índia. Deuses e deusas pediram a Brahma que criasse um quinto Veda[2], que falasse ao homem comum. Brahma então, utilizando elementos dos outro quatro Vedas (palavras, movimentos comunicativos, canção e sentimento), criou o chamado Natya Veda, encarregando o sábio Bharata de escrevê-lo como Natyashastra[3] e executá-lo para Shiva. Assim Bharata propagou a dança pela Terra (Gaston, in Naidu, 2006).
Outra origem mítica da dança envolve a deusa Parvati e Usha, sua filha com o demônio Banasura. A mãe ensina a filha a dançar e esta, por sua vez, ensina esta arte às gopis(pastoras) da cidade onde nasceu Krishna. Esta versão reconhece Shiva como o Supremo Dançarino. Ela dança com Parvati e juntos ensinam esta arte aos outros deuses e deusas. Pouco a pouco a dança celestial passou para o mundo humano e resultou nas formas de dança praticadas hoje na Índia (Naidu, 2006).
A Dança de Shiva
Proveniente da Índia, o mito de criação associado a Shiva Nataraja, ou o Senhor da Dança, nos diz que este deus cria e destrói o universo através de sua dança que, com seus movimentos ritmados, representa o próprio pulsar da vida, “a manifestação da energia rítmica primal” (Coomaraswamy, 1976, p.66). A atividade cósmica é o motivo central da dança.
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Nas escrituras referentes a Shiva (e também nas de Krishna) é proeminente a concepção de que o mundo é um passatempo ou diversão (lila) do deus, sendo sua dança fruto de sua própria natureza, espontânea e sem propósito, já que Seu ser está além do reino dos propósitos.
Em seu livro The Dance of Shiva, Coomaraswamy (1976) menciona vários textos sânscritos que descrevem e atribuem significados à representação de Shiva Nataraja. Não sendo o intuito deste artigo abordar detalhadamente esta representação, faço aqui uma breve síntese das diversas visões apresentadas, convidando o leitor interessado a consultar o texto original.
Shiva Nataraja é representado com quatro braços, sendo que em uma das mãos direitas possui um tambor (damaru), associado ao som, de onde surge a criação; com a outra, faz o gesto de não temer, dando esperança e proteção; em uma mão esquerda segura o fogo, do qual sobrevêm a destruição e a transformação; na outra, aponta para seu pé esquerdo, que está levantado e simboliza o dar alívio, refúgio e eterna bem-aventurança para a alma. Com o pé direito pisa em um demônio, representando o abrigo àqueles que lutam com o fardo da casualidade (karma). Toda a imagem está apoiada num lótus, do qual sai uma circunferência coberta de chama, e que é tocada pelas mãos que sustentam o tambor e o fogo.
De acordo com Coomaraswamy, Shiva Nataraja executa várias danças, dentre as quais Tandava e Nadanta. A primeira, é realizada nos campo de cremação, compreendidos não como o lugar onde os corpos são queimados, mas o coração de cada um de seus devotos. “O lugar onde o ego é destruído significa o estado no qual a ilusão e os feitos são queimados; este é o crematório onde Shri Nataraja dança” (idem, p.73).
Nadanta é realizada diante de uma assembléia em Chidambaram, local considerado o centro do mundo. Segundo a lenda, sábios (rishis) hereges estavam numa floresta, e para lá se encaminharam Shiva, fazendo-se passar por mendicante, e Vishnu, disfarçado como uma mulher linda, esposa de Shiva, ambos acompanhados da serpente Ati-Sheshan. Logo as esposas dos rishis se sentiram atraídas por Shiva e eles, por Vishnu. Quando desconfiaram das aparências, quiseram acabar com Shiva através de magia. Primeiro, um tigre, criado a partir de fogos sacrificiais, atirou-se sobre o deus para destruí-Lo. Este arrancou a pele do animal com a unha de seu dedo mínimo e a jogou sobre Si, como se fosse um manto de seda. Os rishis enviaram então uma serpente, que foi morta e colocada por Shiva ao redor de Seu pescoço. Começou então a dançar. Querendo ainda destruir Shiva, os sábios enviaram sobre Ele um último monstro, na forma de um anão, Muyalaka. Com a ponta do pé o deus quebrou a coluna da criatura, mantendo-a presa enquanto recomeçou sua dança, assistida por deuses e rishis, que reconheceram estar diante do Senhor do Universo.
O propósito de sua dança era retirar o véu de ilusão da percepção dos sábios. A destruição da ilusão, de maya, faz com que permaneçam apenas o eterno e imortal.
A Suprema Inteligência dança na alma (…) com o propósito de remover nossos pecados. Deste modo, nosso Pai dispersa a escuridão da ilusão (maya), queima o fio da causalidade (karma), esmaga o mal [ignorância] (mala, avidya), chove Graças, e amorosamente mergulha a alma no oceano de Bem-Aventurança (ananda). (Unmai Vilakkam, in Coomaraswary, 1976, p. 74)
Coomaraswamy considera a concepção da dança de Shiva como uma síntese entre ciência, religião e arte.
Nenhum artista de hoje poderia criar mais sábia e exatamente uma imagem daquela Energia que a ciência tem que postular por trás de todos os fenômenos. Se fôssemos reconciliar o Tempo com a Eternidade, dificilmente poderíamos fazê-lo de outro modo que pela concepção de alterações de fase estendendo-se sobre vastas regiões do espaço e grande períodos de tempo.(…)
Na noite de Brahma, a Natureza está inerte, e não pode dançar até que Shiva assim o deseje. Ele emerge de seu transe e dançando manda, através da matéria inanimada, ondas pulsantes de som despertador, e a matéria também dança, surgindo como uma glória em torno dEle. Dançando, Ele sustenta seus fenômenos multiformes. No tempo completo, ainda dançando, Ele destrói todas as formas e nomes pelo fogo, e toma novo repouso. Isto é poesia, mas não menos, ciência. (idem, p.78-79)
Capra ([1975], 1987), estabelecendo uma relação entre a mitologia e a física de partículas, compara a dança de Shiva Nataraja à dança das partículas sub-atômicas, compondo e destruindo a matéria. A esse respeito, escreve ele em seu livro O Tao da Física:
Há centenas de anos, artistas indianos criaram uma série de belas imagens, em bronze, de Shiva dançando. Em nossa época, os físicos usaram a mais avançada tecnologia para representar os padrões da dança cósmica. A metáfora da dança cósmica unifica a antiga mitologia, a arte religiosa e a física moderna. Cada partícula sub-atômica não apenas desempenha uma dança de energia, mas é também uma dança de energia; um processo pulsante de criação e destruição (…) sem fim. (…) Para os físicos modernos, a dança de Shiva é a dança da matéria sub-atômica. Como na mitologia hindu, é uma dança contínua de criação e destruição envolvendo todo o cosmos; a base de toda existência e de todos os fenômenos naturais. (p.185)
Essa analogia fez com que, em 2004, uma estátua de 2m de Shiva Nataraja fosse instalada no CERN, Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, em Genebra.

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Dança e Espiritualidade
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Em inúmeras culturas, a dança foi associada à espiritualidade, sendo uma forma de favorecer o contato com os deuses.
Em seu livro Dance e Recrie o Mundo, Lucy Penna (1992) nos lembra que a dança está associada aos antigos rituais de fertilidade, nos quais as mulheres dançavam para receber a força da Grande Mãe. Provenientes da Mesopotâmia e presentes desde o início da civilização, as danças rituais e sagradas davam à mulher condições de se identificar com a deusa, adquirindo força para enfrentar seus medos, criar filhos e reeditar as origens do universo. Destas danças originou-se a dança do ventre. Numa descrição vívida dessa época, quando cantar, dançar e rezar eram atividades integradas, escreve Penna:
Dançando com movimentos eróticos, que insinuavam a fecundação, no ambiente de alegria e com prazer, essas jovens de seis mil anos atrás realizavam o seu treino físico e psicológico para o desempenho das funções sexuais e maternais. O cheiro dos incensos, o ritmo acelerado dos tambores e a exuberância dos movimentos são estímulos fisiopsíquicos intensos, que podem levar a um estado de transe. (…) Dessa maneira buscava-se ativar o arquétipo inerente a todos e evocar a luminosa imagem interna da Mãe. (idem, p. 87)
Na Índia, durante muitos séculos, as devadasis (escravas/servas de Deus) eram mulheres a serviço dos templos e que, dentre outros atributos, deveriam ser exímias dançarinas, pois a dança era vista como um tipo de adoração ou yoga (Orr, 2000). Apesar de esta tradição ter sido encerrada em 1947, com a independência da Índia, essas danças rituais sagradas originaram o Bharatanatyam, dança clássica indiana que ocupa hoje, nas classes média e média alta, um lugar de destaque na cultura indiana, fornecendo um meio de aquisição da identidade cultural e exemplos dos modelos dos papéis femininos (Gaston, in Leslie, 1992).
Também no Egito as mulheres se ofertavam como filhas a serviço das suas deusas. Vem desta tradição, por volta de 2000 a.C., o culto a Bes, um anão disforme.
Bes era o maior amigo da mulher, ajudando-a no parto e protegendo o recém-nascido. Representavam-no muitas vezes dançando em volta da parturiente, batendo num pequeno tambor e brandindo punhais. O barulho e as ameaças, a sua fealdade e o riso que provocava pretendiam afastar os maus espíritos. (Ions, in Penna, 1992, p.107)
É possível também que as danças sagradas egípcias fizessem parte dos mistérios de Ísis. Fora dos templos, essas danças foram se popularizando, chegando até nós como a chamada dança do ventre egípcia (idem).
No Islamismo encontramos, dentre as ordens de sufismo, a ordem Mevlevi, na qual a música e a dança são veículos para se chegar ao conhecimento de Deus. Pertencem a ela os dervixes rodopiantes, que, após a recitação de cânticos, giram em torno de si próprios ao mesmo tempo em que realizam uma dança circular ritual.
No México pré-hispânico, a cultura náhuatl (tolteca-asteca) acreditava que somente a poesia e a beleza poderiam entrar em comunhão e comunicação com o divino. Sua religiosidade expressava-se através de sacrifícios, mas também de cantos, danças e festas. Depois da conquista pelos espanhóis, a religião cristã foi introduzida entre os nativos, que a vivenciavam como sem felicidade e alegria, enquanto os missionários eram vistos como opositores de toda felicidade e prazer. Em 1531, com a aparição da Virgem de Guadalupe, a primeira manifestação sincrética na América Latina pós-colonização, surgiu no México uma igreja festiva, com flores e cantos, com participação emocional, com a possibilidade de se perceber o sagrado presente na matéria e vinculado à vida cotidiana, à vida prática, sem que o espírito implique em imaterialidade. Os nativos readquiriram, assim, a possibilidade de celebrar, à sua maneira, com grande liberdade, dançando e cantando, a comunhão com a divindade e, com isso, a esperança de vir a recuperar sua alma coletiva e sua dignidade como povo (Guerra, 2007).
Podemos mencionar, ainda, as danças extáticas dos devotos de Dioniso, na Grécia Antiga; o transe e a possessão associados ao Candomblé, proveniente das culturas afro e disseminados no Brasil e em outros países da América Latina; os já mencionados xamãs, nas culturas tribais; as danças ciganas; as danças circulares e tantas outras.
A Dança de Jesus
Como vimos, a ligação entre a dança e a sacralidade existe em todas as culturas, embora seja difícil percebermos isso quando nos atemos à Igreja católica e a outras instituições cristãs. No entanto, os Evangelhos Gnósticos relatam que, na Última Ceia, Jesus dançou com os apóstolos. Nas palavras de Holler ([1989], 1983):
Ele disse a seus discípulos: “Antes que eu seja entregue, cantemos um hino ao Pai e então sairemos para o que nos espera.” Então, Ele ficou no meio da sala e pediu aos seus discípulos que fizessem um círculo à sua volta, dando-se as mãos e, depois de cada verso, eles deveria dizer a palavra “Amém”. E assim começou a cantar uma canção, enquanto os discípulos dançavam em círculo em volta dEle (…) [a letra do hino é descrita, e segue assim:]
(…) Eu tocaria a flauta; dançai todos vós. Amém!
(…) Aqueles que não dançam não sabem o que vai ocorrer. Amém!
(…) Agora respondei à minha dança!
Vede vós mesmos em mim que falo.
E vendo o que faço, mantende silêncio sobre meus mistérios.
Compreendei pela dança o que faço.
(…)
Em uma palavra, Eu sou o Logos que dançou todas as coisas e que não se envergonhou de modo algum
Fui Eu quem dançou.
Mas possais vós compreender tudo, e, compreendendo, dizer:
Glória a Vós, Pai! Amém!
Tendo dito essas coisas, Jesus partiu e os discípulos fugiram em todas as direções, como pessoas que haviam acordado de um transe, pois a consciência deles estava completamente transformada pelo hino e pela dança de Jesus. (pp. 131-133)
E Hoeller continua citando os Evangelhos Gnósticos. Conta que, depois de ser crucificado, Jesus apareceu a João numa caverna, e se dirigiu a ele, dizendo:
João, aos olhos daqueles lá embaixo na cidade de Jerusalém, Eu fui crucificado e atravessado por lanças e fui atormentado e Me deram fel e vinagre para beber, mas tu sabes que nada destas coisas que eles dirão de Mim Eu realmente sofri. Pois o mistério verdadeiro não era este, mas o sofrimento que Eu revelei a ti e aos outros na dança. Aquele foi o verdadeiro mistério que ocorreu. (idem, pp. 133-134)
A dança extática da Última Ceia é, assim, revelada como a segunda Eucaristia. A Gnose nos indica, portanto, que a austeridade da Igreja é decorrente muito mais da instituição eclesiástica do que da figura de Cristo.
Considerações Finais
 O dançar é uma função estruturante, um dinamismo vital que pertence à psique humana. Como tal, é arquetípica, o que significa que faz parte de nossa própria natureza. Como toda função estruturante, ela pode se manifestar normal e salutarmente, produzindo acréscimos à consciência do indivíduo ou da coletividade; porém, pode se expressar de maneira defensiva, sombria, impedindo ou estagnando o desenvolvimento e criando patologia, ao invés de saúde.
Os exemplos mencionados até aqui focalizaram a faceta criativa da dança: sua inserção nos rituais, nas religiões, sua força criadora, propiciadora, fecundadora, capaz de produzir vivências de transcendência, tornando inseparáveis o corpo, o prazer e o sagrado.
Este pequeno texto, cuja pretensão é apenas a de abrir espaço a reflexões sobre a importância e o sentido simbólico da dança, ficaria ainda mais incompleto se não mencionássemos aspectos sombrios que acompanham o corpo e a dança dessacralizados.
A prevalência hoje, em nossa sociedade, do distanciamento entre o corpo e o sagrado, é um símbolo muito carregado de significados. Se, por um lado, o corpo foi tradicionalmente associado ao pecado, ele encontrou sua redenção nos anos 60, com a maior liberdade sexual. No entanto, apesar de resgatado como fonte de liberdade, prazer e autonomia, permaneceu distante do sagrado.
Hoje, a promiscuidade sexual tornou-se frequente, e a drogadição chega a patamares alarmantes. O corpo, destemido e liberto de amarras e pudores, se transforma num perigoso campo de experimentação. Drogas potentes, de efeito rápido, mas fugaz, conduzem à dependência, decadência e destruição. Significativamente, muitas dessas drogas são consumidas em festas, sobretudo nas raves, onde música e dança duram dias seguidos.
A experiência mística, conseguida saudavelmente pela meditação e também através de danças extáticas e rituais, é buscada através de drogas que produzem estados alterados de consciência, na maior parte das vezes fora de um contexto ritualizado. O uso abusivo de drogas e a sexualidade promíscua nos fazem pensar numa tentativa sombria de restabelecer o contato com o sagrado, com o sentido mais profundo da vida, a busca “do êxtase e do entusiasmo”, característicos do culto a Dioniso. Esta é uma patologia de nossa sociedade, que tanto desenraizou o sagrado do cotidiano e do corpo.
Por ocasião da elaboração deste texto, li a notícia da morte de Merce Cunningham, mestre inovador da dança, assim como Pina Bausch, também recém-falecida. Lembrei-me então da frase de Coomaraswamy:
Ele [Shiva] dança para manter a vida do cosmos e dar alívio àqueles que O buscam. No entanto, se compreendermos corretamente as danças dos dançarinos humanos, veremos que elas também conduzem à liberdade. (Idem, p.76)

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[1] Tradição Nordeste, datada de 12000 a 6000 a.C. A outra tradição, Agreste, vem desde 10000 a.C.
[2] Os Vedas são quatro livros sagrados do hinduísmo, e também os mais antigos: remontam a 1500 a.C, sendo considerados a primeira literatura da tradição indo-européia.
[3] O Natya Shastra ou Natyashastra é o primeiro tratado de estética, datado entre os séculos II a.C. e II d.C.
Referências Bibliográficas
BYINGTON, C. A. B. Psicologia Simbólica Junguiana. São Paulo: Linear B, 2008.
CAPRA, F. (1975). O Tao da Física. São Paulo: Ed. Cultrix, 1987.
COOMARASWAMY, A. K. The Dance of Shiva. New Delhi: Sagar Publications, 1976.
ELIADE, M. (1956) O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões. Lisboa: Ed. “livros do Brasil”, sem data.
GUERRA, M. H. R. M. “Espírito da Terra – Religiosidade Popular na América Latina”. Jung & Corpo. São Paulo, no. 7, pp. 7-19, 2007.
HOELLER, S. (1989). Jung e os Evangelhos Perdidos. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1993.
IONS, V. Egyptian Mythology in PENNA, L. Op. Cit.
JUNG, C. G. (1948). A Energia Psíquica. Petrópolis: Vozes, 1985.
LESLIE, J. Roles and Rituals for Hindu Women. Delhi: Motilal Banarsidass Publ. Ltd, 1992.
MACHADO, P.T. “Danças Circulares e Suas Correlações Psicofísicas, Espirituais e Integrativas”. Jung & Corpo. São Paulo, n o.5, pp. 49-59, 2005.
ORR, L. C. Donors, Devotees, and daughters of God – Temple Women in Medieval Tamilnadu. New York, Oxford: Oxford University Press, 2000.
PENNA, Lucy. Dance e Recrie o Mundo – A Força Criativa do Ventre. São Paulo: Summus, 1992.
Referências Eletrônicas
http://www.fumdham.org.br/pinturas.asp     Acessado em 24.07.2009.
MENEZES, Ana Luísa T. “A Dança e o Xamanismo-Ritualístico do Cotidiano Guarani”. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 2, no. 1, p. 111-128, jan./jun. 2008.
WOSIEN, Bernhard. “Dança: um caminho para a totalidade”. in GOMES, Joelma. C. O Corpo como Expressão Simbólica nos Rituais do Candomblé: Iniciação, Transe e Dança dos Orixás. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, Departamento de Filosofia e Teologia da Universidade Católica de Goiás. Goiânia, 2003.
Fonte:http://www.jungnapratica.com.br/danca-e-o-sagrado/

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