O budismo explica que tudo foi criado por uma causa ou é o resultado da causalidade. Em outras palavras, existia e/ou ainda existe uma causa por trás de tudo e de cada fenômeno testemunhado no mundo. De forma muito geral, pode-se dizer que, em sua busca pela compreensão da natureza de cada fenômeno ou complexo de fenômenos, a filosofia budista procura a causa ou um complexo de causas por trás de um fenômeno ou um complexo de fenômenos. Podemos traçar aqui um paralelo entre essa filosofia e a economia no qual esta última deveria ser, em linhas gerais, uma ciência para descobrir a razão ou um complexo de causas por trás de cada fenômeno econômico e social.
A compreensão da teoria da causalidade que regula a própria existência e a atividade de tudo no mundo nos leva à categoria seguinte de acordo com a filosofia budista: o conceito de carma. Carma é um tipo de poder ou fraqueza potencial acumulado adquirido como resultado de cada ação realizada no passado. Assim, cada ser humano é único, e todos os seres humanos – e comunidades e nações – são diferentes uns dos outros por causa de suas ações. O desenvolvimento econômico de cada nação é único no sentido de que é um acúmulo de ações, boas e más, que a liderança de um determinado país realizou depois de ter recebido o poder de governá-lo.
A responsabilidade de cada indivíduo e cada nação é estar ciente dos resultados de suas respectivas ações e inações, porque, com o tempo, elas se acumulam e formam a condição atual. Em suma, um indivíduo é responsável por seu status atual, seja ele bom ou mau, e cada nação é responsável pela condição em que está. O carma indiretamente significa responsabilidade. Cada pessoa, cada governo e cada nação devem ser responsáveis por suas ações.
Não há indivíduo sem seu carma; da mesma forma, não há nação ou governo sem responsabilidade. Entender os princípios do carma também proporciona uma apreciação mais profunda quanto ao lugar ou à localização legítima de um indivíduo no mundo e o momento apropriado para realizar uma atividade. Além disso, o carma significa que se deve estar ciente da necessidade de permanecer dentro dos limites do tempo e do espaço históricos para que as atividades de alguém acumulem boas ações.
Aprender a partilhar
Nas sociedades orientais, sobretudo naquelas em que uma cultura nômade ainda está viva e enriquecida pela cultura budista, como na Mongólia, pode-se encontrar um sentimento muito forte de comunidade e coesão. Os nômades só podem sobreviver reunindo-se e ajudando-se mutuamente. Viver em uma comunidade costumava significar simplesmente sobreviver. Membros de sociedades nômades sobrevivem não à custa de outros “fracos”, mas formando uma comunidade na qual distinguir o “forte” do “fraco” é irrelevante e onde ajudar os outros a sobreviver realmente resulta em ajudar a si mesmo a sobreviver.
Viver em comunidade significa aprender a partilhar – partilhar não só o bem, mas também, por exemplo, o sofrimento, a felicidade e a dor dos outros. Isso pode ser comparado com a compreensão moderna do desenvolvimento econômico e social. No modelo budista, o desenvolvimento pode ser atingido não à custa ou pela exclusão de qualquer pessoa ou nação, mas sim com a comunidade coletiva maior, incluindo todas as pessoas e nações no processo de desenvolvimento. Partindo-se da vida em uma comunidade cujos princípios se baseiam em aprender a compartilhar a dor dos outros, é fácil chegar a um dos ideais mais importantes da maior tradição do budismo, a mahayana – o ideal do bodhisattva.
Segundo a tradição, um bodhisattva é aquele que já percebeu o sentido da vida e está pronto para atingir um nível mais elevado, se não o mais alto, de existência e não existência. Mas ele escolhe permanecer no seu atual nível de existência por uma grande compaixão e misericórdia com outros seres humanos – por causa de sua grande empatia por sentir a dor dos outros. O significado mais profundo do ideal do bodhisattva em termos do carma das nações é o seguinte: Se algumas pessoas ou nações atingiram um nível relativamente melhor de existência – em nosso sentido, desenvolvimento – do que outras pessoas ou nações, isso é imoral; e por causa dessa imoralidade, será impossível se desenvolver ainda mais sem “sentir a dor do subdesenvolvimento de outros” (tanto seres humanos como nações).
Evoluir é ajudar
O significado do ideal do bodhisattva pode ser explicado assim em termos econômicos modernos: “Quanto mais você ajuda os outros, melhor, mais rápida e qualitativamente você se desenvolve”. Em outras palavras, o desenvolvimento na filosofia budista significa ajudar os outros. A principal diferença entre o desenvolvimento quantitativo e o qualitativo é que este último significa e inclui moralidade, responsabilidade, prestação de contas, os sentimentos de comunidade e da necessidade de ajudar os outros e a singularidade em cada exemplo de desenvolvimento, enquanto o primeiro não.
Outra categoria importante a considerar na busca de encontrar ligações entre o budismo e a economia envolve os conceitos de apego e do desapego. De acordo com o budismo, apego ou paixão por alguém ou algo traz sofrimento. Uma vez que uma pessoa ou sociedade, como a sociedade de consumo, é ligada em sentido amplo a tudo que é transitório e sujeito a mudanças, ela começa a se transformar em um corpo absorvido apenas pelo desejo de satisfazer demandas insaciáveis. Tal pessoa ou sociedade começa a perder sua mobilidade, flexibilidade e capacidade de se adaptar a novos desafios.
Em contraste, uma das principais características de uma sociedade nômade em que o budismo é a religião dominante é um estilo de vida relativamente livre de poluição, vivido em uma relação harmoniosa com o meio ambiente e pronto a desistir das demandas e coisas que se tornam onerosas. Ser desapegado significa não ser ocupado por preconceitos, ser objetivo e manter um equilíbrio harmonioso entre o material e o espiritual e entre causa e efeito e carma.
Criação de equilíbrio
Levando em conta os pontos precedentes, inevitavelmente concluímos que o budismo considera a criação de um bom equilíbrio como a criação de um ambiente saudável onde cada ser é livre para realizar ou melhorar seu potencial. Essa é uma chave para gerar as condições para o desenvolvimento econômico e social qualitativo. Numa simplificação ainda maior, a realização ou melhoria de um potencial ou carma é um desenvolvimento positivo. Ao mesmo tempo, quando o material e o espiritual, bem como a causa e o efeito, são equilibrados, a interdependência, em vez da independência, de cada ser está implícita.
O budismo parte do entendimento de que o desenvolvimento real e qualitativo não se baseia na teoria da contração de duas ou múltiplas polaridades ou interesses, mas sim na noção de interdependência de tudo e de todos. A teoria budista do vazio (shunyata) parece ser uma base filosófica para tal compreensão do desenvolvimento socioeconômico. Se alguém é logicamente fiel à implicação geral do conceito de vazio, precisa aceitar que não pode haver indicadores permanentes de desenvolvimento no budismo porque tudo depende da causalidade e está em constante movimento e mudança – tudo é impermanente e relativo.
As ideias delineadas no presente artigo poderiam ser as linhas ao longo das quais se procura encontrar indicadores de desenvolvimento através dos olhos do budismo. No entanto, na busca de tais indicadores, deve-se sempre partir da compreensão do principal e último indicador de desenvolvimento – um ser humano. Por fim, lembremos a fábula em que Buda se calou quando lhe perguntaram qual era o significado último da vida.
Ele disse que se uma pessoa estivesse ferida, ele não tentaria descobrir quem atirara a flecha, qual o tamanho dela ou de que ela era feita. Em vez disso, ele deveria tentar remover a flecha o mais rapidamente possível. Talvez valha a pena remover imediatamente as flechas que nos feriram por irresponsabilidade, estreiteza da mente e ignorância do fato de que tudo e todos dependem da causalidade e uns dos outros. Aqui encontramos que o indicador e o objetivo final do desenvolvimento qualitativo são o ser humano.
Entre Oriente e Ocidente
Nambaryn Enkhbayar foi presidente (2005-2009) e primeiro-ministro (2000-2004) da Mongólia. Ele se graduou no Instituto de Literatura de Moscou e estudou literatura e língua inglesa na Universidade de Leeds (Inglaterra). Convertido ao budismo ainda durante o regime comunista em seu país, Enkhbayar traduziu vários textos dessa religião para o mongol, assim como obras da literatura europeia.
* O texto aqui reproduzido foi publicado originariamente na edição nº 2 da revista Elixir, da Ordem Internacional Sufi, na primavera de 2006.
Fonte:http://www.revistaplaneta.com.br/o-carma-das-nacoes/
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