
O estranho e o familiar na antropologia da religião sempre dão o que
falar, sempre dão, como diz um velho ditado, "pano pra manga". Os
nativos de ambos os territórios ou províncias do real, os religiosos e os
antropólogos, sempre estranharam a linguagem um do outro. Um vem com o absoluto
da fé e o outro com o relativo do absoluto. Mas, na tradição hermenêutica
gadameriana (Hans Georg Gadamer), a compreensão e o diálogo nascem da
assimetria entre significados e palavras, ou do mal-entendido na comunicação
entre os que se põem em contato, em relação próxima.
Do contrário, o perto e longe, o dentro e o fora, o estranho e o familiar
ficam como territórios isolados, polaridades sem tensão e é na tensão que
nascem os processos mais profundos de compreensão. Do lado dos engajados
religiosamente, a crença e o rito do outro não são verdades porque não podem
ser verdades, mas mitos, simples mitos. O meu rito, a minha crença, ou de meu
grupo, são tão familiares que são sinônimos de verdade, verdadeiro e as crenças
e ritos de outros religiosos engajados, são tão exóticos e estrangeiros que não
podem ser verdades, mas sinônimos de artificial, arbitrário ou de mentira. Mas
é possível estranhar também a antropologia da religião. De acordo com um
texto da antropóloga Rita Segato, há um paradoxo no discurso racional-relativo
sobre a religião. Se a antropologia pretende dar voz aos nativos e ser
compreensiva do ponto de vista dos nativos, como ela o pode fazer, em termos de
discurso teórico, se o engajado religioso vê sua fé como absoluta-sagrada e
não-relativa? Por outro lado, a antropologia não referenda ou é porta-voz do
nativo, do contrário ela renuncia à sua vocação compreensiva. É no paradoxo que
moram as ultrapassagens rumo à novas maneiras de compreensão, as possibilidades
ampliadas do diálogo. Um paradoxo animado por uma tensão, ou por diversas
tensões, as quais aludi acima. É no fio da navalha, entre o dentro e o fora,
entre o familiar e o exótico religiosos que nasce o ofício da antropologia da
religião.
Assim, pensando, descrevo um fato ocorrido ontem, uma quinta-feira,
próxima da grande festa católica do Corpo de Cristo, instituída na Idade Média,
no auge do poder da Igreja Católica. O corpo real de Deus, em desfile solene
pelas ruas medievais. Estava eu a dar aula sobre o tema ritos e rituais na
disciplina Antropologia da Religião (Graduação do Bacharelado Interdisciplinar
em Ciências Humanas-UFJF). Nas primeiras aulas eu trabalhei a natureza da
compreensão antropológica, a complexa relação dentre "dentro" e
"fora" no ato de compreender uma fé, um rito, uma crença, sem que
isso redunde em redução crítica ou em apologia catequética, entrei, nas últimas
aulas, na questão do ritual. Muitas abordagens, muitos autores, desde Van
Gennep, Malinowski, Mauss a Turner e Tambiah.
Durante a aula sobre ritos e rituais, expositivo-dialogada, fui mostrando
imagens e slides de data-show. Um deles, mostrava um ritual de iniciação de
meninos, uma tribo indígena. Nesse ritual, a passagem entre um estado a outro,
do menino ao homem, é marcada socialmente nas mentes e corpos por rituais muito
intensos cuja estrutura é tripartite: momento preliminar, momento liminar,
momento posliminar, ou separação, margem e reintegração. Na imagem, um menino
por volta de 10 a 12 anos, tinha o lábio perfurado por um homem mais velho, o
sábio da tribo, como é comum nos rituais tribais de iniciação. Logo surgiu, de
parte do público feminino presente à aula, um "tadinho". No mesmo
instante, ocorreu-me dar um contra-exemplo, retomando a questão que desde o
início das aulas havia colocado, a relação, primordial na antropologia da
religião, entre o olhar próximo e o olhar distante, entre o familiar (portanto
banal, ao qual se está tão acostumado que passa despercebido, sem reflexão) e o
exótico/estranho (portanto, não-banal, o qual não se sabe como lidar, o que
incomoda, portanto, faz refletir). Fiz a preparação verbal, e
contra-argumentei: "Vejam em nossas sociedades, há outros rituais que tem
analogia. Por exemplo, o ato de as mães levaram os bebês as farmácias e furarem
as orelhas com brincos novos". Há aqui, uma relação entre dois fatos que
ilustra a relação próximo/distante que a antropologia da religião sempre
procura manter.
Os exemplos multiplicaram-se e falei das "tribos" ou
grupos urbanas: os
jovens que usam alargadores, por exemplo. É todo um corpo marcado, elevado a
significante, e óbvio, com diferenças entre usos, sentidos e significados entre
uma tribo ou etnia tradicional e os jovens urbanos das sociedades
contemporâneas. É na tensão entre o "dentro" e o
"fora", entre os territórios da religião e da antropologia que reside
uma proposta de compreender as religiões e tudo aquilo que lhe é próprio: rito,
mito, magia.
Segui adiante na exposição sobre as teorias do rito e as questões
conexas. Estava eu a dar exemplos dos rituais sacrificiais e da homologia estrutural entre os muitos ritos: judaico, católico, muçulmano,
candomblecista. Do ponto de vista
diacrônico, há profundas diferenças, não são a mesma coisa, mas, do ponto de visto
sincrônico, há uma analogia ou homologia estrutural entre os muitos ritos
sacrificiais.

E ai, a questão do sacrifício da vítima expiatória e a relação entre
comer, comungar, a carne dos deuses, com a fim de participar, de alguma forma,
da dimensão do sagrado, emerge. Num certo momento da exposição oral, explicava
sobre a teologia católica tradicional que, no momento da transubstanciação,
afirma que ali, nas mãos do sacerdote, não há mais vinho e pão, mas o corpo e o
sangue de Jesus Cristo. Observo que no começo das aulas da disciplina
Antropologia da Religião, eu já havia mencionado a compreensão do viajante
huguenote (calvinista) francês Jean de Léry, sobre a relação entre o
canibalismo dos tupinambás e caraíbas, na qual o corpo do nobre inimigo é
devorado e sua força assimilada e a comunhão católica, na qual o corpo e o
sangue de Deus são comidos e, assim, a força divina assimilada à alma e ao
corpo. Logo em seguida, emendei com uma tirada bem-humorada, tiradas que sempre
gosto de fazer em minhas aulas, junto com algumas performances verbais também:
"podemos afirmar, então, que os católicos são comedores de
Deus". Caiu como uma bordoada caraíba-huguenote num português
catolicão do velho continente. O humor é um ótimo interpelador, um
provocador de reflexões.

Não se reflete bem
se não há aberturas, se tudo ou é familiar ou é exótico, congelado ou em uma
categoria ou em outra, ad infinitum, como se atravessar territórios (transitar,
in-out) fosse proibido ou passível de levar a perdição. Mas, quando lancei a
tirada de humor, um dos alunos ficou vermelho na mesma hora, não gostou e
expressou uma discordância forte quanto ao uso da expressão que, para ele soava
até como ofensivo, irreal, exótico. No calor da emoção, faltou a percepção de
como o familiar pode se tornar ou soar estranho pelas mãos da reflexão
antropológica e de como isso pode causar estranhamento, afastamento e, assim,
provocar reflexão, autorreflexão sobre práticas e crenças. É o metiê da
antropologia da religião, sorri por dentro.
Postado há 29th May 2015 por Emerson José Sena da Silveira
Fonte: http://arcanaestudosdereligiao.blogspot.com.br/
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