De braços abertos
Texto Rodrigo Bertolotto
A ciência e a maioria dos países
já se convenceram que não há nada de errado em ser homossexual. Agora é a vez
das religiões. Este século 21 assiste a uma abertura lenta, mas contínua, dos
templos. O papa Francisco já pediu o acolhimento deles nas igrejas católicas.
Denominações presbiterianas e metodistas celebram casamentos gays. Igrejas
anglicanas e luteranas ordenam bispos com essa orientação. No Brasil, há um
grande crescimento das chamadas igrejas inclusivas, seguidoras de uma teologia
que prega que a diversidade humana é uma obra divina. A primeira surgiu em
1998. Atualmente no país existem mais de 30 diferentes denominações. Mas, por
aqui, os evangélicos gays estão no meio do tiroteio que os cristãos
tradicionais e a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais e Transgêneros) estabeleceram nos últimos anos, quando os
homossexuais passaram a exigir direitos e proteção do Estado. Mesmo criticados
pelas duas trincheiras, eles mostram que é possível uma comunhão entre fé e
afeto.
odas as religiões do mundo exaltam a sinceridade e a
fraternidade, mas poucas aplicam esses valores diante de pessoas que amam
outras do mesmo sexo. Primeiro, as igrejas exigem que os gays ocultem e
reneguem suas atrações. Depois, se eles não conseguem, são discriminados,
punidos ou expulsos das igrejas. Religiosos adoram uma revelação divina, mas
não desse tipo.
Lanna Holder e Rosania
Rocha sentiram a provação na carne. Quando se apaixonaram, elas viviam em
casamentos heterossexuais (Rosania com um pastor) e cuidando dos filhos.
"Deus é um ser de amor, não é um juiz implacável. Fiquei anos fazendo
jejuns, orações e terapias de regressão à infância para reverter meu desejo e
não funcionou. Só quando a Rosania estava perto de mim eu estava bem. Isso foi
um sinal divino", relata Lanna.
Depois que se separaram
de seus maridos, foram chamadas de "sem-vergonha",
"safadas" e "endemoniadas" por aqueles que eram seus irmãos
de fé. Lanna não era mais chamada para pregar. Ninguém mais convidava a cantora
Rosania para os louvores. Mas a via-crúcis delas teve também uma redenção: em
2011 o casal fundou em São Paulo a igreja Cidade de Refúgio, uma das
denominações inclusivas que mais atraem principalmente os fiéis
"convidados a se retirar" de outros templos.
A teologia inclusiva se
apresenta como a única forma de os gays terem uma vida religiosa plena, mas até
internamente essas igrejas sofrem dilemas: são santuários de gueto ou de
transição? Esses templos recebem também heterossexuais, mas ali eles são
minoria. Por outro lado, as grandes religiões estão adotando estratégias para
não perder esses adeptos. Sobre o assunto, o historiador Leandro Karnal,
especialista em religiões, dá a pista: "O futuro destas igrejas dependerá
de oscilações do mercado da fé. Mas igrejas raramente fecham".
A longevidade do primeiro
local de culto gay é prova disso. A Igreja da Comunidade Metropolitana surgiu
em 1968 em Los Angeles (EUA), um ano antes do primeiro protesto LGBT do mundo,
que aconteceu em Nova York, para reclamar da violência policial em bares gays.
Hoje em dia, essa igreja tem 43 mil integrantes, com 222 congregações em 37
países, inclusive no Brasil.
A expansão, porém, não
foi fácil. Fora as ameaças de morte e as agressões físicas aos fiéis, em todo o
mundo 21 igrejas da denominação foram incendiadas ou destruídas. Não por nada
no Brasil a maioria da igrejas inclusivas fica protegida em sobrelojas,
galerias ou dentro de edifícios. Há sempre o temor da violência dos
intolerantes.
As
religiões e a homossexualidade
Descubra
como cada uma das maiores crenças do mundo e do Brasil tratam a questão
Hinduísmo
Antiga e múltipla, a
religião diverge muito no assunto. Muitos hindus consideram a homossexualidade
uma das diversas formas de amor. Outras tradições, citando os textos do Código
de Manu, afirmam que é crime punível. Há deuses que mudam de sexo, templos com
figuras em atos sexuais com seus iguais, e até no livro Kama Sutra aparecem
relatos de relações entre homens. A crença no carma ajuda a explicar a
existência de gays
Catolicismo
Durante a Inquisição, os
homossexuais eram queimados vivos, apesar de serem conhecidos no período muitos
papas com parceiros sexuais. A questão voltou à tona no início do século 21 com
denúncias de clérigos abusando sexualmente de meninos e adolescentes em todo
mundo. O papa Francisco sinalizou em 2013 uma posição mais receptiva em relação
aos fiéis gays, mas a Igreja segue expulsando padres que saem do armário
Protestantismo
Inicialmente, seguiu a
tradição católica de condenar. Mas, como um de seus princípios é o direito à
livre interpretação da Bíblia, deu margem ao surgimento da teologia inclusiva
nos anos 1960. Os primeiros países a legalizarem o casamento gay foram Dinamarca
e Holanda, de maioria protestante. Nos EUA e no Brasil, grupos evangélicos
fundamentalistas fazem oposição aos avanços civis dos gays, mesmo após sua
legalização
Islamismo
O Alcorão, livro sagrado
da fé, condena. Nos países de maioria muçulmana, a homossexualidade é
criminalizada (exceção apenas da Bósnia). Em sete deles, há a pena de morte
(Catar, Irã, Mauritânia, Arábia Saudita, Sudão, Emirados Árabes e Iêmen).
Surgiram grupos formados por imigrantes islâmicos nos EUA e Reino Unido que
defendiam os devotos gays, mas logo receberam ameaças de morte de setores
fundamentalistas
Judaísmo
Os ortodoxos e os
conservadores consideram o ato homossexual uma "abominação" baseados
em trecho do Levítico, o mesmo livro citado por cristãos tradicionais. Já os
progressistas acham a prática aceitável e permitem desde 2007 que homossexuais
se tornem rabinos. Setores reformistas celebram também casamentos gays. Em
Israel, as paradas do orgulho LGBT costumam ser hostilizadas por grupos
ultraortodoxos
Espiritismo
Como um espírito humano
não tem sexo e pode ter várias encarnações, pode-se habitar um corpo de homem
ou de mulher e amar pessoas do mesmo gênero. Não existe uma posição oficial
sobre a homossexualidade. A maioria dos doutrinadores prega que a questão mais
importante é a promiscuidade, que tanto heteros como gays devem evitar. O
julgamento é baseado na conduta moral, não na orientação sexual
Rituais afro-brasileiros
Marginalizados
historicamente, os gays e as religiões de matriz africana convivem há muito
tempo. Há divindades andrógenas ou de caráter bissexual. Sempre existiram
homossexuais entre seus líderes religiosos. São consideradas mais tolerantes
que religiões monoteístas, mas alguns pais de santo proíbem comportamentos
homossexuais em seus terreiros. Há uma associação entre homossexualidade e
possessão ritual
Budismo
Nenhum discurso de Buda
fala em homossexualidade. Porém, essa fé ensina que qualquer tipo de atividade
sexual é uma distração desnecessária. Os monges devem ser celibatários. No
Oriente, um budismo tardio considera a homossexualidade uma má conduta para o
leigo, assim como o adultério e o incesto, e atribui esse comportamento a um
carma de vidas passadas. No Ocidente, o budismo é mais liberal, evitando julgar
os gays
Hinduísmo
Antiga e múltipla, a
religião diverge muito no assunto. Muitos hindus consideram a homossexualidade
uma das diversas formas de amor. Outras tradições, citando os textos do Código
de Manu, afirmam que é crime punível. Há deuses que mudam de sexo, templos com
figuras em atos sexuais com seus iguais, e até no livro Kama Sutra aparecem
relatos de relações entre homens. A crença no carma ajuda a explicar a
existência de gays
Catolicismo
Durante a Inquisição, os
homossexuais eram queimados vivos, apesar de serem conhecidos no período muitos
papas com parceiros sexuais. A questão voltou à tona no início do século 21 com
denúncias de clérigos abusando sexualmente de meninos e adolescentes em todo
mundo. O papa Francisco sinalizou em 2013 uma posição mais receptiva em relação
aos fiéis gays, mas a Igreja segue expulsando padres que saem do armário
"Estamos abertos
para as pessoas que se sentem excluídas. O próprio Jesus esteve ao lado delas,
da mulher adúltera, do cego, do leproso. Ele veio ao mundo quebrar algumas
leis", argumenta o pastor Fábio Inácio de Souza, líder da denominação, que
é casado com outro pastor. A Contemporânea tem 3.000 seguidores em três Estados
(São Paulo, Minas e Rio).
Em São Paulo, os templos
inclusivos se ergueram na Santa Cecília, bairro de intensa vida gay. Foi lá
que, em 1998, surgiu a primeira igreja LGBT do Brasil. A Acalanto foi fundada
pelo religioso chileno Victor Orellana, criado em uma família metodista e
ordenado pastor da Assembleia de Deus antes de sair do armário. Atualmente, o
bairro é a "santa sede" de outras três denominações.
Uma delas é a Comunidade
Nova Esperança, que foi fundada em 2004 e tem 17 unidades em todo o país. Seu
primeiro local ficava em cima de um sex shop. "A gente conseguiu muitos
fiéis deixando folhetos no balcão do nosso vizinho", lembra rindo o pastor
Justino Oliveira da proximidade entre o sagrado e o profano por ali.
Hoje, tem até uma filial
da igreja em Pisa, na Itália, onde vive um grande número de travestis
brasileiros. Em São Paulo, também foi criado um ministério para atrair
travestis e transexuais. A responsável para arrebanhar almas é a cabeleireira
trans Jacque Chanel.
Eu recebo na catedral
seres humanos. Aqui não tem Inmetro. Temos uma visão pluralista do mundo
Simultaneamente ao
crescimento das igrejas inclusivas, nas crenças tradicionais surgiram os
programas para a chamada "cura gay". O caso do carioca Sérgio Viula é
exemplar. Agora, ele se define como um "ex-ex-gay". Após uma infância
com severa formação católica e experiências homossexuais na adolescência, ele virou
evangélico aos 16 anos, ficou casado com uma amiga durante 14 anos, teve duas
filhas, fez duas pós-graduações em teologia e atuou como pastor batista por
nove anos.
Viula liderou por três
anos o Moses, grupo que pretendia ajudar pessoas a deixarem práticas
homossexuais. Eles distribuíam panfletos em paradas LGBT para atrair gays
angustiados com sua orientação. Após esse tempo, abandonou o grupo afirmando
que o trabalho não funcionava, só causava neurose nas pessoas, se assumiu gay e
deixou a igreja. "Nós não fazíamos, mas tem igrejas que mantêm clínicas de
recuperação, misturando viciados e homossexuais e aplicando as mesmas técnicas
de abstinência e terapia ocupacional", relata Viula. "Isso só causa
depressão e tentativas de suicídio", completa.
A ciência deixou de
tratar a homossexualidade como doença desde a década de 1970. Antes, vários
cientistas tentaram métodos como lobotomia, hipnose, extenuação física e até
remédios indutores de vômito durante exibição de cenas de sexo entre homens. Em
1990, a OMS (Organização Mundial de Saúde) retirou da lista de enfermidades.
Mas a partir daí muitas igrejas começam a tratar a questão como um problema da
alma, com retiros, orações e súplicas.
Tradicionalmente, as igrejas ensinam que os convidados para a
festa do céu são os celibatários e heterossexuais (monogâmicos, de
preferência). Para os gays, está reservado um lugar no quinto dos infernos. A
única solução possível é abraçar o poder místico de Deus e renunciar a todo
desejo sexual (pelo menos, aquele que eles acham natural). Se a fé move
montanhas, ela não muda o desejo físico de uma pessoa - só o comportamento
externo.
"A moral católica é
estabelecida por homens celibatários que vestem roupas coloridas e túnicas
brilhantes de vermelho púrpura dos cardeais, usam anéis enormes com ouro e
rubis e, sem mulheres ou filhos, estabelecem o que seria o padrão da masculinidade
e das famílias ditas normais", ironiza Karnal.
O revelador é que a
homossexualidade é anterior ao monoteísmo, à Bíblia e a Jesus. Os judeus,
quando começaram as escrituras sagradas, criticaram as crenças politeístas
estabelecidas na Babilônia e no Egito, onde foram levados como escravos. Vários
deuses desses impérios eram andrógenos ou bissexuais. A homossexualidade era
até ritualística em tradições da Europa e do Oriente Médio, antes que o Deus
onipotente e onipresente entrasse na concorrência de corações e mentes. São
justamente esses trechos da Bíblia que descrevem os ritos pagãos que os líderes
fundamentalistas usam em suas cruzadas.
Jesus não diz uma única
palavra contra a homossexualidade e, num mundo onde isto seria muito estranho,
Jesus não casa, não tem descendentes e só anda com homens
O instituto de pesquisa
norte-americano Barna Group, fundado por cristãos, fez um levantamento com
jovens de 16 a 29 anos que não frequentam igreja. A pergunta era: qual é a
primeira palavra que vem à mente sobre as igrejas evangélicas?
"Antigay" foi a resposta de 91% deles. A porcentagem não foi muito
diferente entre jovens crentes: 80% responderam o mesmo.
No Brasil, o cenário se
parece, afinal, a polêmica é decalcada do modelo norte-americano, com
fundamentalistas cristãos de um lado e militantes LGBT de outro, em uma batalha
moral, política e comercial. Os pastores tradicionalistas fazem uma
interpretação literal da Bíblia e citam trechos do Gênesis, Levítico, Romanos e
Coríntios para condenar os gays. Também classificam como "contorcionismo
teológico", "promiscuidade simbólica" ou "sincretismo
moral" as teorias inclusivas.
"O que muda o
discurso religioso são os avanços sociais. A igreja se vê obrigada a se adaptar
ou ela morre", define o reverendo Cristiano Valério, líder da filial
brasileira da primeira igreja inclusiva do mundo. Os religiosos revisionistas
criticam a leitura ao pé da letra do livro sagrado e afirmam que as proibições
devem ser contextualizadas, afinal, algumas passagens foram escritas há mais de
3.000 anos. O Levítico, por exemplo, proíbe a homossexualidade junto com
ingestão de carne de porco, ficar bêbado e ser médium.
Os inclusivos focam em
trechos mais solidários da Bíblia, como o "amai-vos uns aos outros".
Sua leitura se aproxima da Teologia da Libertação, que utiliza o Evangelho como
instrumento de justiça social, resgate da dignidade e da vivência em
comunidade. "Creio que os inclusivistas trazem uma nova visão do
ensinamento bíblico e de boa fé. Ninguém pode negar que entre pessoas do mesmo
sexo possa haver amor. Se há amor, aí há algo de Deus, que se autodefiniu como
amor", afirma Leonardo Boff, que em sua época de frade franciscano ajudou
na criação da Teologia da Libertação.
A fé é a reação do homem
diante do mistério, do inexplicável no mundo. E, apesar de tão humana quanto a
orientação de ser hetero, a homossexualidade não tem uma explicação única e
infalível. Um conjunto de fatores genéticos, psicológicos e sociais
influenciam, mas não há consenso sobre qual é o mais importante. A razão,
porém, não interessa para a questão. O que importa é a pacificação e
reconciliação das almas. "Eu falo como uma miss: quero a paz no
mundo", se diverte Edvaldo Batista, que costuma se vestir de drag queen
nas cerimônias da igreja Metropolitana para deixar seus paroquianos em estado
de graça.
O grau de
abertura das igrejas em relação ao público LGBT é medido pelas seguintes ações:
aceitar o fiel, formar grupos de acolhida, celebrar casamentos e ordenar
líderes religiosos. A Igreja Católica deu o primeiro passo, timidamente. No
Brasil, há grupos como o Diversidade Católica, que aconselha o devoto e sua
família em conflito. Alguns encontros são feitos dentro de igrejas, mas não é
uma iniciativa oficial.
O padre e o teólogo José
Trasferetti queria criar uma pastoral para o público LGBT, como há pastorais
para presos, migrantes, operários e tantos outros grupos. A proposta ficou no
vazio. "A evangelização, a educação na fé, o acolhimento nas igrejas deve
ser obra de todos. Ninguém pode ser discriminado por razões de orientação
sexual", opina o padre.
Além das igrejas que já
nasceram inclusivas, denominações anglicanas e luteranas foram as que mais
avançaram, ordenando pastores e bispos assumidos. A mudança gerou cisões dentro
dessas igrejas, mas a divisão é a dinâmica da fé cristã desde o tempo dos 12 apóstolos.
"Eu vejo uma revolução na
fé. Nós estamos entrando em uma terceira reforma do cristianismo", se
entusiama José Mário Brito. Ele foi seminarista para ser padre católico, mas se
afastou da religião após se assumir. Sentindo falta da mensagem divina, entrou
na igreja evangélica Nova Esperança e canta na banda do templo ao lado de seu
namorado.
O livro "Entre a Cruz e o
Arco-Íris", da jornalista Marília de Camargo César, retrata o mais recente
conflito dentro da religião, contando várias histórias tocantes de cristãos que
lutaram contra sua orientação sexual, com jejuns, orações e vida missionária,
mas que, ao assumir a homoafetividade, foram rejeitados e criticados por
"não ter se esforçado para mudar". Marília considera que as igrejas
se movem lentamente no assunto. "Um pastor amigo, um tradicional, que foi
fazer um curso em São Francisco (EUA), me disse que ali as igrejas que não
aceitam irmãos homossexuais não sobrevivem", conta Marília.
Quando o mercado da fé terá esse
cenário em outros países, como o Brasil? Só Deus sabe.
Rodrigo Bertolotto
Repórter do UOL Notícias. Não tem
religião e não é gay, mas acha tudo isso divino e maravilhoso, em todos os
sentidos.
Fonte:http://tab.uol.com.br/gays-e-religiao
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