O corpo humano (sarkós) é um componente importante para a compreensão do pensamento epicúreo como um todo. O corpo é pensado como um receptáculo das influencias sensíveis que o meio exerce sobre o individuo. Ele é o ponto de partida da percepção humana, a partir dele tem lugar a aisthesis, que é o conjunto das sensações, de onde serão possíveis as prolépseis, ou impressões sensíveis, que serão operadas pelo pensamento (dianóia). Mas o que é este corpo para Epicuro?
A compreensão epicúrea de corpo humano (sarkós):
Segundo Epicuro, conhecemos as coisas quando sentimos sua expressão em nós. Neste sentido, buscamos naturalmente afecções que produzam sensações constitutivas e agradáveis. O corpo se comunica com as coisas do mundo provando-as e tendo como critério de escolha e rejeição das afecções possíveis o prazer e a dor.
A alma também é corpo. Distingue-se da carne por suas propriedades físicas e por sua função racional e imaginativa, que articula as impressões sensíveis e projeta-as enquanto pensamento. A interação feita entre carne e alma transforma as sensações em sentimentos ou ainda, em compreensão ou pensamento. Carne e alma não podem ser pensadas separadamente.
As afecções só se expressam como prazer ou dor na interação carne/alma.
É neste ponto que incide a possibilidade do equilíbrio do corpo. Na compreensão epicpurea, duas possibilidades de equilíbrio podem ser aferidas. A primeira nos remete aos cuidados que é preciso ter com o corpo carne, tanto no sentido de evitar as carências e os excessos, que provocam as doenças, quanto no de curá-las. A segunda revela que o equilíbrio resulta da ação do pensamento sobre o corpo-carne e que pode ser descrito como uma espécie de terapeía, onde o logos atua diretamente no corpo, possibilitando o estabelecimento de uma medida-limite para os desejos carnais, que nem sempre se acalmam com a simples repleção, são desejos naturais ao corpo. Neste estado, o corpo encontra-se já em equilíbrio e expressa o bem-estar, ou prazer. A satisfação dos desejos naturais mais não necessários poderá fazer variar o prazer que ele já sente.
Como Epicuro trabalha essa relação na sua filosofia tendo em vista a busca por equilíbrio? A resposta a essa questão implica entender a questão dos “desejos da carne”. A classificação de Epicuro apresenta três categorias que dispõem a respeito da aquisição do bem-estar e da manutenção de uma boa disposição para o corpo, e como o que causa o seu desequilíbrio. A classificação dos desejos apresenta o seguinte quadro: existem os desejos naturais e necessários, os naturais e desnecessários e os não naturais e não necessários.
Simplificadamente tem-se o seguinte: os desejos naturais e necessários são aqueles que impelem o corpo na direção das coisas que bastam à sua satisfação, por exemplo, o corpo necessita basicamente de alimentos, de água e de proteger-se do frio e intempéries similares; os desejos naturais e desnecessários são aqueles vinculados aos excessos ou carência de algo; e os desejos não naturais e desnecessários dizem respeito à externalidade, tais como a ereção de estátuas ou imagens em honra de si próprio.
Para Epicuro, viver de acordo com a natureza significa dar vazão aos desejos naturais e necessários, entendendo que a medida de satisfação desses desejos está na relação estabelecida entre o corpo e os fenômenos de repleção, satisfação e proteção oferecidos pelo mundo natural. A natureza nos oferece mais do que o necessário, daí surge a importância de “trabalhar” o domínio de si, ou seja, de buscar um métron capaz de auxiliar a aquisição do equilíbrio. Para a realização dos desejos naturais e necessários, importa circunscrever o agir humano no âmbito da phrónesis (sabedoria) e da autárkeia (o senhorio de si mesmo). Assim, a atitude de uma pessoa marcada pela phrónesis implica numa “vontade esclarecida”. Toda essa posição pode ser retomada pela seguinte assertiva de Diógenes Laércio: “Tudo o que é natural pode ser facilmente satisfeito, ao passo que tudo o que é vão é difícil de satisfazer”
Tendo presente de que tudo o que precisamos está na natureza, Epicuro parece indicar que o melhor phármakon (remédio) para o restabelecimento ou manutenção da saúde do corpo é a alimentação equilibrada e a administração de cuidados necessários à prevenção contra todo excesso e toda carência.
A analise dos sarkós envolve um conjunto de reflexões em torno do cuidado do corpo.
Sabemos de diversas interseções entre medicina e filosofia no pensamento antigo, podemos estabelecer analogias entre a medida do agir e a medida do cuidar, ambas tendendo sempre a um equilibrio, seja como “justa medida”, seja como ”meio-termo”.
Tanto a filosofia, quanto a medicina buscam explicar o cuidado de si, tendo em vista que a ação de cuidar é própria do ser do homem.
Epicuro concebe a filosofia como o exercício de uma sabedoria para a vida e pensa ser este o caminho para a realização da natureza do sofhós em seu vigor e potencia. O saber medico parece também buscar a realização do corpo em todo o seu vigor e potencia, que são expressos do modo de ser da própria natureza.
A medicina surge como techné primeiramente enquanto prescrição alimentar, que se serve da dosagem como critério de medida para manter ou restituir o equilíbrio ao corpo.
O contexto no qual a medida antiga situa o homem é o mundo natural. Conhecer os problemas de determinado homem, para assim diagnosticá-lo, significava conhecer o que ele é em relação ao que ele como e bebe, a sua maneira de viver e os efeitos que tudo isto produz. A medicina é uma techné, pois tende a conhecer a natureza das realidades sobre as quais se debruça.
O saber medico busca se preciso, mais não é uma ciência exata; ainda que vise estabelecer uma medida que restaure o equilibrio de um corpo, ela não trabalha com números genéricos que possam ser apresentados com exatidão. Em medicina, a esta precisão raramente se encontra, talvez por trabalhar, sobretudo com a ordem concreta e fenomênica da realidade.
A medicina antiga, paralelamente à physiología grega, compreende a natureza animada do homem como efeito da combinação das quatro qualidades fundamentais, ou seja: o quente, o frio, o seco e o úmido. Isto a que chamam combinação tem uma modo pleno de se dar, ao qual podemos chamar equilíbrio.
Um corpo esta em equilíbrio, quando seus humores se encontram numa proporção justa, isto é, quando o organismo corresponde ao seu sentido próprio de realização ou a sua natureza.
E a doença decorre necessariamente do desequilíbrio ou desarmonia entre os humores. Já o tratamento pra a restituição do equilíbrio depende da compreensão que o medico tem da doença e dos meios, se eles existem, de combatê-la.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. da 1ª versão brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti. 4ª edição, Martins Fontes: São Paulo, 2000.
HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. Martins Fontes: São Paulo, 2001.
SILVA, Markus. Epicuro: sabedoria e jardim. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003
A compreensão epicúrea de corpo humano (sarkós):
Segundo Epicuro, conhecemos as coisas quando sentimos sua expressão em nós. Neste sentido, buscamos naturalmente afecções que produzam sensações constitutivas e agradáveis. O corpo se comunica com as coisas do mundo provando-as e tendo como critério de escolha e rejeição das afecções possíveis o prazer e a dor.
A alma também é corpo. Distingue-se da carne por suas propriedades físicas e por sua função racional e imaginativa, que articula as impressões sensíveis e projeta-as enquanto pensamento. A interação feita entre carne e alma transforma as sensações em sentimentos ou ainda, em compreensão ou pensamento. Carne e alma não podem ser pensadas separadamente.
As afecções só se expressam como prazer ou dor na interação carne/alma.
É neste ponto que incide a possibilidade do equilíbrio do corpo. Na compreensão epicpurea, duas possibilidades de equilíbrio podem ser aferidas. A primeira nos remete aos cuidados que é preciso ter com o corpo carne, tanto no sentido de evitar as carências e os excessos, que provocam as doenças, quanto no de curá-las. A segunda revela que o equilíbrio resulta da ação do pensamento sobre o corpo-carne e que pode ser descrito como uma espécie de terapeía, onde o logos atua diretamente no corpo, possibilitando o estabelecimento de uma medida-limite para os desejos carnais, que nem sempre se acalmam com a simples repleção, são desejos naturais ao corpo. Neste estado, o corpo encontra-se já em equilíbrio e expressa o bem-estar, ou prazer. A satisfação dos desejos naturais mais não necessários poderá fazer variar o prazer que ele já sente.
Como Epicuro trabalha essa relação na sua filosofia tendo em vista a busca por equilíbrio? A resposta a essa questão implica entender a questão dos “desejos da carne”. A classificação de Epicuro apresenta três categorias que dispõem a respeito da aquisição do bem-estar e da manutenção de uma boa disposição para o corpo, e como o que causa o seu desequilíbrio. A classificação dos desejos apresenta o seguinte quadro: existem os desejos naturais e necessários, os naturais e desnecessários e os não naturais e não necessários.
Simplificadamente tem-se o seguinte: os desejos naturais e necessários são aqueles que impelem o corpo na direção das coisas que bastam à sua satisfação, por exemplo, o corpo necessita basicamente de alimentos, de água e de proteger-se do frio e intempéries similares; os desejos naturais e desnecessários são aqueles vinculados aos excessos ou carência de algo; e os desejos não naturais e desnecessários dizem respeito à externalidade, tais como a ereção de estátuas ou imagens em honra de si próprio.
Para Epicuro, viver de acordo com a natureza significa dar vazão aos desejos naturais e necessários, entendendo que a medida de satisfação desses desejos está na relação estabelecida entre o corpo e os fenômenos de repleção, satisfação e proteção oferecidos pelo mundo natural. A natureza nos oferece mais do que o necessário, daí surge a importância de “trabalhar” o domínio de si, ou seja, de buscar um métron capaz de auxiliar a aquisição do equilíbrio. Para a realização dos desejos naturais e necessários, importa circunscrever o agir humano no âmbito da phrónesis (sabedoria) e da autárkeia (o senhorio de si mesmo). Assim, a atitude de uma pessoa marcada pela phrónesis implica numa “vontade esclarecida”. Toda essa posição pode ser retomada pela seguinte assertiva de Diógenes Laércio: “Tudo o que é natural pode ser facilmente satisfeito, ao passo que tudo o que é vão é difícil de satisfazer”
Tendo presente de que tudo o que precisamos está na natureza, Epicuro parece indicar que o melhor phármakon (remédio) para o restabelecimento ou manutenção da saúde do corpo é a alimentação equilibrada e a administração de cuidados necessários à prevenção contra todo excesso e toda carência.
A analise dos sarkós envolve um conjunto de reflexões em torno do cuidado do corpo.
Sabemos de diversas interseções entre medicina e filosofia no pensamento antigo, podemos estabelecer analogias entre a medida do agir e a medida do cuidar, ambas tendendo sempre a um equilibrio, seja como “justa medida”, seja como ”meio-termo”.
Tanto a filosofia, quanto a medicina buscam explicar o cuidado de si, tendo em vista que a ação de cuidar é própria do ser do homem.
Epicuro concebe a filosofia como o exercício de uma sabedoria para a vida e pensa ser este o caminho para a realização da natureza do sofhós em seu vigor e potencia. O saber medico parece também buscar a realização do corpo em todo o seu vigor e potencia, que são expressos do modo de ser da própria natureza.
A medicina surge como techné primeiramente enquanto prescrição alimentar, que se serve da dosagem como critério de medida para manter ou restituir o equilíbrio ao corpo.
O contexto no qual a medida antiga situa o homem é o mundo natural. Conhecer os problemas de determinado homem, para assim diagnosticá-lo, significava conhecer o que ele é em relação ao que ele como e bebe, a sua maneira de viver e os efeitos que tudo isto produz. A medicina é uma techné, pois tende a conhecer a natureza das realidades sobre as quais se debruça.
O saber medico busca se preciso, mais não é uma ciência exata; ainda que vise estabelecer uma medida que restaure o equilibrio de um corpo, ela não trabalha com números genéricos que possam ser apresentados com exatidão. Em medicina, a esta precisão raramente se encontra, talvez por trabalhar, sobretudo com a ordem concreta e fenomênica da realidade.
A medicina antiga, paralelamente à physiología grega, compreende a natureza animada do homem como efeito da combinação das quatro qualidades fundamentais, ou seja: o quente, o frio, o seco e o úmido. Isto a que chamam combinação tem uma modo pleno de se dar, ao qual podemos chamar equilíbrio.
Um corpo esta em equilíbrio, quando seus humores se encontram numa proporção justa, isto é, quando o organismo corresponde ao seu sentido próprio de realização ou a sua natureza.
E a doença decorre necessariamente do desequilíbrio ou desarmonia entre os humores. Já o tratamento pra a restituição do equilíbrio depende da compreensão que o medico tem da doença e dos meios, se eles existem, de combatê-la.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. da 1ª versão brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti. 4ª edição, Martins Fontes: São Paulo, 2000.
HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. Martins Fontes: São Paulo, 2001.
SILVA, Markus. Epicuro: sabedoria e jardim. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003
Fonte:http://pedregulhosverbais.blogspot.com.br/2011/07/do-equilibrio-do-corpo-ou-o-modo-como-o.html
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