Wimer Bottura – Agressões Silenciosas, o contágio pela comunicação (2009).
Dentre todos os animais, o homem é o que tem período de infância mais longo. O início da vida, fora do corpo da mãe, em contato direto com o mundo, é uma fase muito especial e diferente de todo o resto da vida. Pois, nesse período, permanecer vivo é uma tarefa que depende de outro animal, o filhote dificilmente se desenvolve dependendo apenas de si mesmo. O homem, por exemplo, precisa de aproximadamente cinco anos para conseguir sobreviver por si mesmo, caso aconteça uma situação na qual ele fique isolado e abandonado à própria sorte.
Nós dependemos de outra pessoa para fornecer água, alimento, higiene, proteção, etc. ao nosso corpo. Dependemos também de outro ser humano para construir e fazer funcionar nossas habilidades mentais correspondentes ao nosso convívio social. Os principais recursos para a construção da mente nos primeiros anos de vida é o contato físico e a linguagem. Recursos esses que devem ser fornecidos a nós por meio de outro ser humano.
Em função de nossa longa infância e a dependência que nutrimos dos outros, tendemos a sentir, nessa fase, o isolamento e o abandono como ameaças de morte iminentes e que podem levar ao pânico e ao terror. O terror pode levar à loucura, por exemplo. Assim o contato físico é fundamental para desligar o medo de abandono e solidão, no mínimo pelo tempo que a criança demora a aprender a linguagem (RIECHELMANN, 2009).
Desenvolver a linguagem significa ter dentro da mente um conjunto de símbolos que se utiliza para formar dentro de si um “modelo do real”. Mas os primeiros símbolos ensinados são as caras e bocas da linguagem corporal percebidas pela criança. Uma criança percebe um olhar, um gesto diferente daquilo que se quer dizer, por exemplo. Essas caras e bocas são acompanhadas pelos sons produzidos pela mãe (ou por outra pessoa que exerça a função de mãe). Nas palavras de Riechelmann: “... quando conseguimos incorporar essa capacidade da linguagem, colocamos dentro de nós o símbolo que representa esse outro humano que está fora de nós; esse símbolo é a palavra “mãe”, que representa esse outro humano que está dentro de nós a percepção e a memória do som/imagem/tato/cheiro/sabor do humano que está lá fora”.
Assim se macho e fêmea são dados pela natureza, homem e mulher são construídos pela sociedade. Ninguém nasce pronto, nem se faz sozinho. É pela “mãe” que, na infância, também foi construída pela sociedade, que agora será o representante social que irá nos conduzir. Esse ser humano tem o poder de construir uma parte de um “eu” em nós; essa é a primeira relação de poder que experimentamos na vida.
No entanto, essa tarefa não é uma construção unicamente delegada à mãe. Participam significativamente dessa empreitada: o pai, o avô e a avó, os irmãos, as tias e os tios, os primos e primas, os amigos e colegas... E mais para frente: o professor, o líder religioso, os patrões, chefes, subordinados, etc. que também exerceram poder na relação que estabelecem conosco.
Nesse cenário de relações sociais, pensadas enquanto relações de poder, é que podem existir as agressões que ocorrem pela comunicação muitas vezes implícita em gestos, caras e bocas, em silêncios, isto é, expressões verbais e não verbais e que corroem as relações. As agressões silenciosas “ocorrem na maioria das famílias e causam ferimentos e podem não ser percebidas de forma totalmente consciente pelas pessoas que praticam a agressão. “Há uma violência constante e grave nas relações cotidianas, muitas vezes disfarçada por atitudes aparentemente inocentes, enganosamente alegre ou bem intencionadas” (BOTTURA, 2009, p.19).
Frequentemente associamos a violência à televisão, à urbanização crescente e desregrada, às drogas, à marginalização, ao sexo, etc., mas raramente relacionamos a violência ao ambiente familiar, à educação e de como o indivíduo é preparado para o uso abusivo e agressivo da cultura. Não estamos nos referindo à violência explícita das agressões domésticas, mas ao que costuma ocorrer antes das agressões físicas. Referimo-nos ao uso abusivo da autoridade, à desaprovação velada, ao silêncio pernicioso, às piadas desqualificantes, aos comentários depreciativos que se investem de boas intenções, etc.
“Sob o nome de educação, entretanto, esconde-se a maior rede de tortura existente em nossa terra: as necessidades essenciais do ser humano são desrespeitadas, crianças, homens e mulheres destratados. Em nome da educação, as agressões físicas e as mais sutis agressões ao indivíduo são usadas com muita fartura e o ser humano vê retirado seus prazeres, sua alegria e sua motivação, com a promessa de, no futuro, quando for adulto ou velho, ou até numa próxima encarnação, ter suas perdas recompensadas. Tenta-se transformar o ser humano naquilo que ele nunca foi, não pode ser e nunca será: assexuado e insensível”. (BOTTURA, 2009, p. 20).
Todo homem traz dentro de si a pontencialidade de ser feliz, sentir prazer e conviver em paz. Todo homem é composto por desejos, emoções e medos. O medo, diante de uma ameaça, como uma emoção, gera respostas de defesa, dentre eles, a raiva (onde tem medo tem raiva). Nossos antepassados, por desconhecimento, estimularam o pior lado dessa emoção. Assim, a relação com a família, com os educadores e sociedade leva o indivíduo durante a vida a distorcer a agressividade, que vem do medo, criando obstáculos para aquilo que é natural no ser. Por isso muita violência velada é transmitida pela família nas entrelinhas de sua comunicação e, às vezes, por meio de conselhos, avisos, cuidados, que nos impedem de entrar em contato com nossas necessidades. Muito do que é vivido nas relações familiares podem nos levar a adoecer: “Emocionar-se, inclusive, passou a ser sinal de fraqueza, sentir e expressar sentimentos virou algo vergonhoso”. (BOTTURA, 2009, p.22).
O desenvolvimento da linguagem verbal contribuiu para a obstrução da compreensão da linguagem corporal plena e a expressão da emoção passou a ser considerada uma fraqueza e isso até tem razão de ser, pois há estratégias, artimanhas e jogos para dominar os outros que tem ver com dissimulação de emoções. Por isso que às vezes negar os sentimentos passa a ser visto como algo bom. As pessoas que agem sobre o predomínio da razão, controladas e controladoras dão a impressão de serem superiores e mais realizadas, no entanto geralmente não tomam contato com as agressões silenciosas de que são vítimas ou das que produzem.
Em verdade, sentir e expressar emoções se tornou uma ameaça ao sistema de domínio de poucos sobre muitos: ameaça à estabilidade da família, da escola e demais instituições, que sempre quiseram transformar o homem em modelos ideais. Essas tentativas, intencionais ou não intencionais, de transformar o homem trouxeram uma gama de agressões silenciosas. Essas agressões provocam também emoções ao mesmo tempo em que reprimem essas emoções e como consequencia causam alterações profundas no equilíbrio bioquímico e psíquico do indivíduo, provocando doenças e mal estar.
Claro que a educação assim com a família e demais instituições são importantes, a intenção aqui é termos um olhar de aprimoramento das relações, clarificando certas atitudes agressivas que poderão ser evitadas. Mas, para tanto, antes precisamos ter ciência do que são essas agressões. Esse conhecimento pode ser até doloroso, pois é preciso rever conceitos internos, encarar as dores e as angústias das relações mais íntimas que temos; mas a ilusão da ignorância, sem dor, poderá ser muito mais prejudicial: “É preciso que conheçamos os nossos medos, assim como nosso sofrimento, para que possamos, ao identificá-los, buscar soluções para os problemas dos quais somos avisados pela emoção medo. Não é errado ter medo, é ruim ter motivos para se ter medo, continuar com motivos para permanecer amedrontado. Não é errado sentir raiva, é ruim ficar com raiva, transformá-la em mágoa, ressentimento, hostilidade, vingança e agressões silenciosas” (BOTTURA, 2009, p.27).
As agressões silenciosas podem ser não verbais e sem a obrigatoriedade de ser declaradamente mal intencionadas. “Essas agressões não são percebidas conscientemente pelos interlocutores menos sensibilizados e, por isso, são mais perigosas” (BOTTURA, 2009, p.23). O perigo é decorrente do aspecto repetitivo, frequente e sutil dessas agressões.
A linguagem não verbal ou corporal passa informações, que são quase sempre percebidas de forma inconsciente. Na verdade, essas informações antes de serem uma agressão ao interlocutor, representam agressões ao próprio emissor, que por não se sentir agredido, não tem a percepção de estar agredindo o outro.
Se pensarmos bem, veremos que a maioria das agressões é praticada por pessoas bem intencionadas, pessoas que demonstram sua confiabilidade, pois são pessoas íntimas e acima de qualquer suspeita: “A virulência, o poder destrutivo das agressões silenciosas, reside exatamente aí, no silêncio, na confiança, e principalmente na aparente falta de perigo”. (BOTTURA, 2009, p. 24).
A importância de perceber e corrigir esse tipo de agressão é por que sabemos, hoje, que a realidade é diferente para os indivíduos que foram apresentados ao mundo de uma forma melhor, tendo respeitadas e supridas suas necessidades essenciais, sua sexualidade, sua liberdade de expressão, suas manifestações emocionais autênticas e seu direito de comunicar suas ideias, têm a possibilidade de obter mais êxito na vida. Aqui o êxito tem que ver com realização pessoal.
O potencial agressivo do qual falamos tem que ver com a conseqüência de toda violência que o homem sofreu e teve que reprimir em função de sua sobrevivência. A violência e a raiva que não são expressas, não são elaboradas e estarão sempre presentes em nossas atitudes. Mesmo a mais bondosa das mães poderá ser uma violentadora...
Muito se fala de violência sexual explícita como o estupro, por exemplo, no entanto pouco se fala do abuso sexual implícito na educação, que fere a dignidade, a honra e violenta o direito de expressão da sexualidade, principalmente da sexualidade feminina. Nesse sentido, é também uma violência a discriminação do feminino, tido como inferior, “aliás, uma agressão muito mais frequente que o estupro e muito mais danosa do que se tem percebido e manifestado – aliás possivelmente uma das causas do estupro.” (BOTTURA, 2009, p.25).
Nesse sentido é importante estar atento às agressões que podemos vivenciar, mas também atentos às agressões que praticamos. Coisas simples, como: pensar antes de falar algo que possa magoar o outro, estabelecer diálogos sem sentidos duplos, o autoconhecimento, entre tantas outras coisas podem ajudar a evitar esse tipo de comunicação agressiva. Vocês concordam?
Fonte:http://nucleodeautocuidado.blogspot.com.br
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