O MUNDO ALÉM DA CASCA DE NOZ - ENTREVISTA COM GUILHERME CASTELO BRANCO

O mundo para além da casca da noz

Para Guilherme Castelo Branco, o aprofundamento do neoliberalismo é a força motriz que gera a eliminação dos padrões de solidariedade

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

Hamlet, o personagem de Shakespeare, em um ato retirado da versão mais conhecida da peça teatral homônima, diz, “eu poderia viver em uma casca de noz e ainda assim me julgar o rei do universo”. Tal figura de linguagem ilustra bem um tipo de intolerância que não é capaz de reconhecer o Outro. “As pessoas pensam a partir de seu próprio mundo, percebendo apenas o seu pequeno universo de interesses. Por conta disso não conseguem mais realizar aquilo que chamaríamos de relativismo sociológico, ou seja, começar a tentar compreender o outro”, aponta o professor e pesquisador Guilherme Castelo Branco, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
“As pessoas perderam a possibilidade de compreensão e do respeito ao outro, da perspectiva que outras culturas possam ter, que outro tipo de gente possa possuir, que outra religião possa professar, que outra expressão artística possa praticar e mesmo da forma como as pessoas pretendem viver”, sugere. Ao analisar o Brasil, o professor chama atenção para um certo enraizamento da cultura escravocrata na gênese social e econômica nacional. “Entramos em um momento do neoliberalismo com uma perspectiva econômica em que há uma tendência à eliminação de padrões de solidariedade”, pondera.
Na avaliação do professor, os tempos pós-modernos criaram um tipo de sujeitos sociais chamados “neopobres”, que ele classifica da seguinte forma. “Aquele que não é apenas o pobre porque é despossuído, mas aquele que não tem mais direitos adquiridos e que vai sair da classe média e será crescentemente despossuidor de determinados benefícios sociais”, explica. “Essa população que está perdendo direito é quem podemos chamar de neopobre, aquele sujeito que está sendo jogado em uma condição de pobreza”, complementa.
Guilherme Castelo Branco é graduado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, onde também realizou doutorado em Comunicação. Atualmente é professor de Filosofia da UFRJ trabalhando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia. É líder do Laboratório de Filosofia Contemporânea da UFRJ. Em 2015 publicou dois livros: Michel Foucault. Filosofia e Biopolítica (Rio de Janeiro: Editora Autêntica, 2015) e Clássicos e Contemporâneos em Filosofia Política: de Maquiavel a Antonio Negri (Rio de Janeiro: Relicário Edições, 2015).
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que a intolerância tem se aprofundado em nosso tempo?
Guilherme Castelo Branco – Certamente a inexistência de uma formação clássica que trate das questões universais, uma formação educacional no sentido mais próprio do termo, fez com que as pessoas perdessem uma certa dimensão da universalidade da condição humana. Por conta disso, temos não apenas um pensamento fragmentado com conhecimentos especializados, mas uma visão bem unilateral do contexto social. As pessoas pensam a partir de seu próprio mundo, percebendo apenas o seu pequeno universo de interesses. Por isso não conseguem mais realizar aquilo que chamaríamos de relativismo sociológico, ou seja, começar a tentar compreender o outro. As pessoas perderam a possibilidade de compreensão e do respeito ao outro, da perspectiva que outras culturas possam ter, que outro tipo de gente possa possuir, que outra religião possa professar, que outra expressão artística possa praticar e mesmo da forma como as pessoas pretendem viver. Perdemos, portanto, a dimensão do respeito e da tolerância com todo aquele que não pensa como nós e os nossos. Isso faz com que tenhamos um mundo com todas as possibilidades de conflito. Todo o conflito existe como potencial ofensivo devido às pessoas estarem a todo momento preparadas para um desafio e travarem um combate sobre questões que são bastante pequenas e irrelevantes.

IHU On-Line - Como entender esse recrudescimento do ódio se pensarmos que uma das marcas fundamentais da modernidade no Ocidente é o Iluminismo?
Guilherme Castelo Branco – O que temos de lembrar é que o Iluminismo é um movimento paradoxal. Quando ele foi feito pelos enciclopedistas franceses, estes imaginavam que estavam trazendo luz contra aqueles que entendiam sustentar as trevas, ou seja, as várias confissões religiosas, os diversos grupos com tendências místicas, enfim, o pensamento do senso comum em geral. Como a predominância do pensamento comum à época era religiosa, havia uma certa crítica à religião no pensamento iluminista. Logo, ele nasce com determinada dualidade, entre aqueles que representam o pensamento racional, iluminado e tolerante contra aqueles que assumiam um pensamento revelado, não intelectual e, consequentemente, intolerante. O que significa dizer que existe certo aspecto nem tão agonístico, porque isso implica determinada tolerância. Há uma posição conflitual, eles têm uma posição de disputa com aqueles que entendem que não representam os ideais iluministas e o período da expansão de um tipo específico de razão na terra. 
Conflito generalizado
O Iluminismo se caracterizava por “trazer luz” àqueles que não a tinham, ou pela luta aberta e franca com quem defendia a posição de que os iluministas eram, estes sim, as trevas. Em toda a época contemporânea é vivido este conflito — ele nunca deixou de existir, e fica mais latente ou mais patente em determinados momentos, mas sempre houve esse conflito. Essa é uma das características mais marcantes do pensamento contemporâneo da nossa realidade: o conflito daqueles que insistem em defender uma posição científica, verdadeira, comprovada e aqueles que se entende que não desenvolvem esse tipo de pensamento e, por sua vez, também se mostram intolerantes contra a ciência, a razão e a experimentação. O que nós temos é um conflito generalizado de pontos de vista, cada qual partindo de pontos diferentes do “campo de batalha”, indo para a posição de enfrentamento sem, sequer, querer conversar com o outro.

IHU On-Line - Por outro lado, como é possível entendermos o ódio destinado ao Outro, personificado no Brasil, sobretudo, pelos pobres, negros e homossexuais?
Guilherme Castelo Branco – O Brasil é um país que, enraizado na cultura escravocrata como foi, vive esse dualismo em condições bastante arcaizantes entre uma elite dominante e uma classe pobre dominada. Isso faz com que haja uma série de restrições sociais apoiadas no puro e simples racismo à hostilidade aos gostos e modos que não sejam os mesmos dos “superiores”. Com visões que muitas vezes fazem parte de um certo espanto. Eu tenho um amigo que, muitas décadas atrás, quando começou a mobilização dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, fez um documentário sobre o movimento no Rio Grande do Sul. Ele é afrodescendente e ficou profundamente impactado com o fato de ver garotos loiros de olhos azuis e barriga grande andando com pouca roupa em assentamentos, o que não era uma coisa que uma pessoa do Rio de Janeiro, e do Sudeste em geral, espera ver no Sul. 
Por outro lado, o conflito e o imaginário que são criados em determinadas regiões ou sobre grupos sociais dependem, sobretudo, desta característica econômica. Entramos em um momento do neoliberalismo com uma perspectiva econômica em que há uma tendência à eliminação de padrões de solidariedade. Há um bolo comum, um bolo social que tem de ser repartido por toda a sociedade. Essa ideia da solidariedade desse bolo comum a ser repartido pela integralidade do todo social tem sido bastante questionada, e as pessoas começam a perguntar se não devem partir para a medicina privada, a previdência privada, o ensino privado, padrões de consumo culturais que são cada vez mais privados e desvinculados da ideia de totalidade social. Isso faz com que todos, de alguma maneira, que não sejam usuários tradicionais ou que não têm a possibilidade de pagar ou de usufruir, sejam considerados como inferiores, como classes sociais sem importância ou grupamentos sociais que devem ser postos sob suspeições, excluídos e, em último caso, eliminados.

IHU On-Line - Em que medida esse ódio é uma das expressões do governo biopolítico da vida, da gestão política da população? 
Guilherme Castelo Branco – É um governo biopolítico, pois há certas escolhas que determinam que algumas camadas da população têm direitos e outras camadas que os tinham estão perdendo esses direitos. Temos que ter em mente que inúmeras conquistas sociais se fizeram durante muito tempo e estão em vias de se esfacelarem. Esse fenômeno inicialmente europeu, mas também mundial, começa a ocorrer na América Latina e faz com que, simplesmente, pessoas percam direitos e, consequentemente, sejam postas em uma condição de vulnerabilidade e risco social, sendo passíveis de serem estigmatizadas, excluídas e colocadas em uma posição aviltada socialmente. Em tempos pós-modernos, estamos criando o neopobre, aquele que não é apenas o pobre porque é despossuído, mas aquele que não tem mais direitos adquiridos e que vai sair da classe média e será crescentemente despossuidor de determinados benefícios sociais.

IHU On-Line – De onde vem esse conceito de “neopobre”?
Guilherme Castelo Branco – Podemos encontrar esse conceito em uma série de autores. Foucault  é um deles, Hannah Arendt  pode ser considerada outra autora importante, bem como Robert Castel  e Maurizio Lazzarato.  O que temos de imaginar é que vivemos um momento no qual está emergindo uma nova classe pobre, o que não significa que esteja havendo uma crise do capital, como tentam dizer que existe uma crise no Brasil, na Grécia, na Espanha, em Portugal, na França ou na Itália. Em todos esses lugares o capital vai muito bem, os bancos ganham rios de dinheiro, os capitalistas fazem negócios extraordinários, os lucros são fantásticos e incessantes. O que não se tem é dinheiro para uma determinada parcela da população que antes tinha o seu quinhão. Essa população que está perdendo direitos é quem podemos chamar de neopobre, aquele sujeito que está sendo jogado em uma condição de pobreza. 

IHU On-Line - A indiferença pode ser considerada a outra face da intolerância? Pensando no caso brasileiro, em que medida essa indiferença se expressa nas relações sociais?
Guilherme Castelo Branco – O sujeito que está nessa condição passa a ser culpabilizado por estar nela. Aí vêm todas as metáforas — da formiguinha e da cigarra, do empreendedor, aquele que se matou de trabalhar para ficar rico em contraposição àquele que não trabalhou tanto — fazendo com que haja um discurso daqueles que “merecem” ser ricos e aqueles que merecem estar na pobreza e ser criticados, vilipendiados, por estarem entrando em um crescente processo de empobrecimento. Trata-se de sujeitos que, progressivamente, vão pagar um preço por não serem possuidores de recursos que garantam que eles tenham os benefícios sociais, que não são mais detidos pela sociedade, mas pela capacidade financeira do indivíduo.

IHU On-Line - Como analisa as manifestações de intolerância surgidas da aliança entre fé e política, especificamente no caso brasileiro, com a bancada evangélica em franco crescimento e atuação?
Guilherme Castelo Branco – O que nós temos são igrejas que, de alguma maneira, conseguem agregar uma nova classe média que está usufruindo de uma nova condição financeira. Estas igrejas, a partir de mecanismos como o dízimo, tentam fazer um uso ideológico desse contingente de fiéis.
Por um lado isso é feito por meio da intolerância, com religiões que podem ser estigmatizadas por não representarem uma certa maioria monoteísta. Ou seja, todos os grupos politeístas, todas as religiões afrodescendentes e religiões indígenas são vítimas desse tipo de processo de culpabilização, por serem religiões “inferiores”. Grupos protestantes de caráter expansionista, característica do cristianismo em geral, por vezes agem com extrema violência, tentando convencer os outros pela palavra, e quando não é o caso, à base da chibata.
Por outro lado, não devemos esquecer que esse grupamento que cresceu e prosperou, na medida em que se vinculou aos evangélicos, à medida que é absorvido pelo status quo, pelo próprio sistema capitalista, passa a funcionar a partir de uma determinada ideologia das classes dominantes. Um dos grandes erros estratégicos de avaliação da esquerda é considerar que as classes que ascenderam ficariam profundamente agradecidas e lembrariam o tempo inteiro de suas origens de grupo pobre. À medida que esse grupo vai conquistando privilégios, vai se filiando à ideologia dos empreendedores, dos vitoriosos. Se uma pessoa faz algo desse gênero, evidentemente vai se formar um sujeito intolerante com pessoas que não pensam como ele. Há uma troca de posição ideológica desses grupamentos. Não é à toa que Max Weber  parece ter razão sobre existir uma verdadeira relação entre esse espírito dessas igrejas evangélicas e uma determinada forma de exceção do capitalismo.

IHU On-Line - Em que medida a categoria da liberdade, tão cara a Foucault, é um esteio importante para resistir à intolerância e lutar por uma sociedade outra?
Guilherme Castelo Branco – A vida inteira Michel Foucault foi marcado pelo pensamento de Kant.  Ele mesmo apresenta Kant, desde as Palavras e as coisas, como sendo a grande alternativa ao pensamento dos próprios iluministas, ao pressupor que, para o filósofo alemão, o sujeito, para ser ético, funciona com o outro como funciona para si mesmo. Isso inaugura na sociedade algo que se interioriza no sujeito: a ideia da autonomia, que é algo central no pensamento kantiano e que é central no pensamento foucaultiano. Se há algo do qual Foucault é tributário a Kant é a ideia de liberdade enquanto ideia de autonomia. Essa autonomia em Foucault é um pouco diferente daquela de Kant, porque ele vai lembrar que não há nenhuma posição ética que se pretenda autônoma que não tenha a conquista progressiva desse caminhar em busca de uma maior liberdade e que, portanto, permite que possamos modificar a sociedade por meio de pequenos grupamentos de pessoas que resistem a uma posição de sujeitamento, de autoridade, de não autonomia. 
Esta possibilidade de mudança social nunca poderia ser uma mudança de toda a sociedade, mas uma mudança daqueles que são autônomos, daqueles que são mais livres e daqueles que querem usufruir da liberdade, que exercem a liberdade e querem mudar a sociedade para que ela se torne um espaço de homens livres. Isso é feito pelas pessoas comprometidas com os sonhos de autonomia, com o ideal de liberdade e, por assim dizer, como Foucault fala da revolução francesa e seus ideais, com a fé na revolução. Não há possibilidade de mudar o mundo ou requerer uma maior liberdade sem o entusiasmo pela liberdade. Esse Foucault vai sempre imaginar que são as lutas das minorias, dos pequenos grupamentos, as lutas inovadoras que são os vetores de mudança social, capazes de gerar movimentos de grande espectro. 
Minorias
Vamos imaginar a questão dos homossexuais. Há 50 anos eles eram totalmente execrados socialmente e houve uma profunda modificação na sociedade, resultado de um trabalho bem arquitetado de estratégias socialmente bem-sucedidas de mudanças sociais desenvolvidas por esse grupo social. Então podemos imaginar que os grupos minoritários têm um poder de mobilização das práticas sociais e o poder de contaminar os demais com seus anseios e suas mobilizações. Veja que isso não é feito em nome do direito, mas em nome de um acolhimento de uma reivindicação que as pessoas entendem como pertinente, valiosa, dentro do campo social. Isso não se faz do ponto de vista do direito por meio dos tribunais, mas com mudanças de mentalidade. 

IHU On-Line - Em que sentido a intolerância de nosso tempo resulta em formas de subjetivação e sujeição biopolíticas?
Guilherme Castelo Branco – Isso é resultado de um processo alimentado pelo próprio sistema capitalista, que de algum modo vende a intolerância, a posição de destaque, o luxo, o fato de as pessoas se vestirem e morarem de forma a parecerem superiores às outras, de terem carros que mostrem a superioridade, joias pelas quais se demonstra ser melhor que os outros, títulos, condecorações, comendas. Há um conjunto absolutamente vasto e sempre capaz de ser renovado que faz com que algumas pessoas se tornem “melhores” que outras. Portanto, isso é o próprio sistema concorrencial e de diferenciação social criado no interior no capitalismo que vende, consequentemente, a intolerância, que faz parte das raízes sociais de nosso tempo. Isso faz com que, evidentemente, aqueles que aderem de forma mais radical e mais cega a esse tipo de convicção sejam “sujeitos superiores”, mais dignos, mais limpos, mais toda e qualquer coisa, o que permite a adesão incondicional às formas de vida que se espera de camadas assujeitadas ao capitalismo triunfante. 

IHU On-Line - Dentro desse cenário, qual é a importância da Filosofia na reflexão acerca da intolerância e formas de resistência a ela?

Guilherme Castelo Branco – A filosofia se inicia na brevíssima experiência democrática da Grécia. Ela tentou sobreviver dessa breve experiência, procurando mostrar que existe o poder do convencimento através da argumentação em um mundo onde também existe o convencimento através do engano, da cumplicidade de quadrilheiros, da manipulação de informações; e que há o convencimento através da violência das armas, da truculência, da pura e cega violência de um grupo contra o outro. O papel da filosofia sempre será o de defender a possibilidade de uma convivência social e política por meio da argumentação, e, portanto, de uma tentativa racional de compreensão da realidade social e do mundo que pode ser explicada a outro. Portanto, o papel da filosofia é frágil e vulnerável, sem dúvida, mas é o papel de tentar trazer ao mundo em que estamos um pouco de serenidade, lucidez, expectativa de criação de um futuro no qual as pessoas possam conviver com razão e com a percepção de que, malgrado as diferenças, podemos fazer algo em comum. ■

Fonte:http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6067&secao=470

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