Ensinamentos: Os Direitos do Homem no Limiar do
Século XXI
A amplitude do movimento contra as violações dos
direitos humanos é muito estimulante. Não só dá uma perspectiva de alívio a
muitos que sofrem, como também é um indício do desenvolvimento e progresso da
humanidade. A preocupação com os direitos humanos e o esforço para mantê-los
representam um grande serviço às gerações presentes e futuras. Desde que a
Declaração Universal dos Direitos Humanos foi promulgada há cinqüenta anos,
as pessoas começaram a compreender a grande importância e o valor dos
direitos do homem.
Perspectivas de um Monge Budista
Embora não seja perito nesse campo, para um monge
budista como eu, os direitos de cada ser humano é um bem muito precioso e
imprescindível. Segundo a crença budista, todo ser senciente possui um
fundamento de natureza pura em sua essência, não poluído por distorções
mentais. Referimo-nos à essa essência como a semente da Iluminação, em que
todos os seres são capazes de alcançar a perfeição e, dada a natureza pura da
mente, acreditamos que todos os aspectos negativos possam ser eliminados do
espírito. Assim sendo, quando nossa atitude mental é positiva, as ações
negativas do corpo e da palavra deixam de existir automaticamente. Como todos
os seres sencientes encerram esse potencial, todos são iguais. Todos têm
direito de ser feliz e superar o sofrimento. O próprio Buda disse que em sua
Ordem, nem raça nem classe social são importantes. O importante é a prática
de se viver a vida eticamente.
Enquanto praticantes budistas, tentamos acima de
tudo aprimorar nossa conduta no cotidiano. Somente a partir desse aprimoramento,
conseguiremos desenvolver as práticas do treino mental e da sabedoria. Na
minha prática diária de monge budista, tenho de observar muitas regras, mas o
fundamental em todas é o profundo respeito e preocupação pelos direitos do
próximo. Os votos feitos por monges e monjas ordenados incluem não tirar a
vida de outros seres, não roubar suas posses e assim por diante. São
princípios profundamente enraizados no respeito aos direitos do próximo. É
por essa razão que muitas vezes descrevo a essência do budismo da seguinte
maneira: se puder, ajude a outros seres sencientes; se não puder, ao menos
abstenha-se de lhes fazer mal. Além de revelar um profundo respeito pelas
pessoas, essa também é uma forma de respeitar a própria vida e mostrar
preocupação pelo bem-estar geral.
Apesar de ser muito importante respeitar os
direitos dos outros, muitas vezes agimos de forma contrária e o motivo
principal é nossa falta de amor e compaixão. A questão das violações dos
direitos humanos e a preocupação pelos direitos das pessoas estão intimamente
ligadas à prática da compaixão, do amor e do perdão no nosso cotidiano.
Quando se fala de amor e compaixão, as pessoas geralmente relacionam estas
qualidades às práticas religiosas, o que não é necessariamente o caso. É
fundamental que reconheçamos a importância da compaixão e do amor nas
relações entre os seres sencientes em geral e os seres humanos em particular.
Todos nós, desde a mais tenra idade à velhice,
apreciamos a ajuda e o carinho que as pessoas nos dispensam. Infelizmente, no
decorrer de nossa vida, à medida que nos tornamos independentes, muitas vezes
negligenciamos o valor do carinho e da compaixão. Visto que nossa vida se
inicia e termina com a necessidade inerente de afeto, não seria muito melhor
praticarmos a compaixão e o amor ao próximo enquanto podemos?
Só conquistamos amigos verdadeiros quando
exprimimos sentimentos sinceros, respeito pelo próximo e preocupação pelos
seus direitos. É fácil vivenciar esses sentimentos no nosso dia a dia. Não é
necessário ler complicados tratados filosóficos a respeito, pois no cotidiano
essa experiência é uma realidade. A prática da compaixão, da sinceridade e do
amor é fonte inesgotável de felicidade e satisfação. Ao desenvolvermos uma
atitude altruísta, desenvolvemos automaticamente a preocupação pelo
sofrimento alheio e, ao mesmo tempo, a determinação de fazer algo para
proteger seus direitos e nos interessar por sua sorte.
A Universalidade dos Direitos Humanos
Os direitos humanos são de interesse universal
porque ansiar pela liberdade, igualdade e dignidade é inerente à natureza dos
seres humanos e todos têm direito a essas qualidades. Queiramos ou não,
nascemos neste mundo fazendo parte de uma grande família: ricos ou pobres,
instruídos ou não, advindos de nações, ideologias e credos distintos ou não,
em última análise, cada um de nós é apenas um ser humano como qualquer outro.
Todos desejamos a felicidade e nenhum de nós quer sofrer.
Se concordamos que todos têm o mesmo direito à
paz e à felicidade, não será nossa responsabilidade ajudar aos mais
necessitados? Aspirar à democracia e ao respeito pelos direitos humanos
básicos é tão importante para os povos da África e da Ásia, como para os da
Europa ou das Américas. Contudo, são justamente os povos cujos direitos
humanos foram tolhidos que têm menos possibilidade de se manifestar. A
responsabilidade recai sobre os que usufruem de tais liberdades, como nós.
As violações aos direitos humanos muitas vezes
dirigem-se aos membros mais talentosos, dedicados e criativos da sociedade.
Em conseqüência, o desenvolvimento político, social, cultural e econômico de
uma sociedade fica comprometido pelas violações aos seus direitos. Por isso,
salvaguardar os direitos e liberdades de cada um é uma questão extremamente
importante, tanto para as pessoas cujos direitos foram suprimidos quanto para
o desenvolvimento da sociedade como um todo.
Alguns governos entendem que os padrões de
direitos humanos, descritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, são
os advo-gados pelo Ocidente e não se aplicam aos países da Ásia ou a outras
partes do Terceiro Mundo, em função de diferenças culturais e modelos de
desenvolvimento sócio-econômico distintos. Não partilho desse ponto de vista
e tenho certeza que a maioria das pessoas também não. Creio que os princípios
da Declaração Universal dos Direitos Humanos constituem uma espécie de lei
natural que deveria ser seguida por todos os povos e governos.
Além do mais, não vejo qualquer contradição entre
a necessidade de desenvolvimento econômico e a necessidade de se respeitar os
direitos humanos. O direito à liberdade de expressão e à uma sociedade livre
é essencial ao desenvolvimento econômico de qualquer nação. No Tibete, por
exemplo, há inúmeros casos de políticas econômicas inadequadas que
permanecem, embora não tenham surtido efeito, porque o cidadão comum ou o
funcionário público não pode se manifestar contra tais medidas.
A grande diversidade de culturas e religiões
existentes no mundo deveria servir para preservar os direitos humanos
fundamentais de todas as comunidades internacionais. Nessa diversidade, há
princí-pios básicos que unem todos os seres humanos e nos tornam membros de
uma mesma família. Contudo, a manutenção de tradições culturais e religiosas
não deve jamais ser usada como justificativa para violações aos direitos
humanos. A discriminação racial, contra mulheres ou minorias pode ser
tradição de algumas sociedades, mas se for incongruente com direitos humanos
universalmente reconhecidos, esse tipo de comportamento deve ser mudado. O
princípio universal de igualdade entre todos os seres humanos deve ter
precedência.
A Necessidade da Responsabilidade Universal
O mundo está se tornando cada vez mais
interdependente e é por isso que acredito firmemente na necessidade de
desenvolver-se a responsabilidade universal. Precisamos pensar em termos
globais, pois as conseqüências de medidas adotadas por um determinado país,
hoje, ultrapassam fronteiras. A aceitação de padrões universais, como os
descritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção
Internacional sobre os Direitos Humanos, é primordial no mundo atual, cada
vez menor. O respeito pelo direitos fundamentais do ser humano não é apenas
um objetivo a ser atingido. É antes o alicerce indispensável a qualquer
sociedade.
As barreiras artificiais que separavam nações e
povos ruíram em tempos recentes. O sucesso dos movimentos populares no
desman-telamento da separação entre os países do Leste e do Ocidente, que
polarizou o mundo durante décadas, constituiu-se motivo de grande confiança e
expectativa. Contudo, permanece ainda um enorme abismo no coração da nossa
família humana. Refiro-me à divisão dos países do Norte e do Sul. Todos
aqueles comprometidos com os princípios básicos de igualdade, que são o cerne
dos direitos humanos, não podem ignorar as grandes disparidades econômicas
existentes no mundo de hoje. Não se trata apenas de afirmar que todos os
seres humanos têm direito a usufruir da mesma dignidade. Há de se traduzir as
palavras em ações. Temos a responsabilidade de buscar alternativas para
alcançar uma distribuição mais igualitária dos recursos mundiais.
Temos testemunhado um movimento popular
fantástico em prol dos direitos humanos e das liberdades democráticas no
mundo. Este movimento deve tornar-se cada vez mais forte, para que não haja
governo ou exército capaz de suprimi-lo. É muito natural e justo que nações,
povos e indivíduos exijam respeito aos seus direitos e liberdades, e que
lutem para erradicar a repressão, o racismo, a exploração econômica, a
ocupação militar e as várias formas de colonialismo e dominação estrangeira.
Os governos em geral deveriam dar apoio prático a essas reivindicações, ao
invés de apenas as apoiarem verbalmente.
Acredito que a falta de compreensão quanto à
verdadeira natureza da felicidade é a principal razão das pessoas infligirem
sofrimento a outras. Alguns indivíduos acham que só podem alcançar a
felicidade causando sofrimento ou que sua própria felicidade é tão
importante, que a dor causada aos outros é insignificante. Esta é uma visão
extremamente estreita da vida, já que ninguém pode efetivamente beneficiar-se
com o sofrimento alheio. Ainda que haja um ganho imediato às custas dessa
dor, ele é passageiro. A longo prazo, causar sofrimento ao próximo e usurpar
seu direito à paz e felicidade geram ansiedade, medo e desconfiança. O
cultivo do amor e da compaixão ao próximo é essencial para criarmos um mundo
melhor e mais pacífico. Para tal, é necessário desenvolvermos uma preocupação
genuína por nossos irmãos e irmãs menos afortunados. Temos a obrigação moral
de auxiliar e dar apoio incontestável a todas as pessoas privadas de exercer
seus direitos e liberdades, que muitos de nós têm garantidos.
Ao nos aproximarmos do fim do presente milênio,
percebemos que o mundo está se tornando uma grande comunidade. Juntos,
confrontamo-nos com graves problemas, tais como superpopulação, escassez dos
recursos naturais e uma crise ambiental sem precedentes, que ameaçam os
alicerces de nossa própria existência neste planeta. Os direitos humanos, a
proteção ao meio ambiente e maior igualdade social e econômica são fatores
interligados. Acredito que para enfrentarem os desafios de nosso tempo, os
seres humanos deverão desenvolver um sentido maior de responsabilidade
universal. Cada um de nós deve aprender a trabalhar não somente em benefício
de si próprio, sua família ou nação, mas em prol da humanidade como um todo.
A responsabilidade universal é a chave para a sobrevivência do Homem e é a
melhor garantia para a manutenção dos direitos humanos e da paz mundial.
(Discurso de Sua Santidade o Dalai Lama na
Reunião de Paris da UNESCO, durante a comemoração do 50º Aniversário da
Declaração Universal dos Direitos do Homem.)
Fonte:http://www.dalailama.org.br/ensinamentos/direitos.php
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