SOBRE A TATUAGEM : CORPO EM CONVERGÊNCIA DE EXPRESSÃO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE

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Corpo em convergência de expressão e construção de identidade


A ideia de que vivemos em um mundo livre, com concepções tão contemporâneas que contemplam a igualdade é uma utopia. Muito embora o cenário tenha se modificado e melhorado, ainda vivemos uma ditadura do que é belo, permitido e aceito. E com as tatuagens isso não é diferente.


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A tatuagem ganhou o mundo com novos significados e sua inserção em novos contextos sociais, porém o uso de desenhos na pele é uma atividade que ninguém sabe quando começou. Apesar de registros de tatuagens em múmias no período de 2000 a.C. e 4000 a.C., a sua origem é um incógnita. Alguns autores se dividem: uns acreditam que tenham surgido simultaneamente em várias partes do mundo, já outros afirmam ter nascido em determinada localidade e se espalhado com as grandes navegações. Apesar desse questionamento eterno, a sua história pode nos trazer algumas reflexões sobre a sociedade atual.
Nos estranhos primórdios da arte, as obras não eram feitas para serem desfrutadas, mas com o objetivo de manter algo vivo ou fazer algo nascer. Assim eram com os desenhos rupestres, confecção de máscaras para rituais, imagens em tumbas. A fronteira entre o real e a imagem era vaga, e assim ainda permanece, mesmo que de maneira menos intensa. Por esse motivo, os desenhos na pele tinham um significado que transcende uma mera questão ornamental. Múmias femininas do período egípcio foram encontradas apresentando traços e pontos na região abdominal, fazendo acreditar que existia uma relação com cultos de fertilidade. Mais recentemente, o “Homem de Gelo”, identificado como um maori, foi encontrado com tatuagens espalhadas pelo corpo em áreas de tensão induzida por degeneração, apontando para uma provável aplicação terapêutica ou como uma espécie de culto. São os achados mais antigos na história desse movimento artístico.
Porém, as tatuagens tiveram seu declínio no Ocidente por conta do cristianismo e foram proibidas. Dois principais motivos são bíblicos. Um deles encontra-se em Levíticos e outro em Coríntios. Alguns historiadores justificam os versículos dizendo que a palavra “tatuagem” não aparece segundo a etimologia das palavras, são apenas possibilidades e os versículos que assim são apresentados fazem parte de uma escolha do tradutor. Mas, importante lembrar, que o cristianismo sempre esteve em posição de demonizar a cultura pagã no geral, e estes utilizavam desenhos na pele, então muito provavelmente esse é o motivo das citações na bíblia.
“Homens e mulheres pintam o corpo. Na língua deles, chamam isso de tatau. Injetam pigmento preto sob a pele de tal modo que o traço se torna indelével”. Assim foi a redescoberta da tatuagem, em 1769, através do registro do diário de bordo do navegador James Cook em uma expedição a Polinésia. Da mesma forma Charles Darwin, após cem anos, afirma que todas as nações ao redor do mundo conheciam a tatuagem. Uma das tribos mais significativas ligadas a elas eram os Maoris, da Oceania, que devido ao isolamento do continente foram descobertos mais tarde por colonizadores. Para os maoris a pintura da pele era vista como forma de cura, prevenção, atração, saudação e lembrança. Podemos arriscar dizer que eram um tipo de magia para eles. O status também estava por trás dos desenhos. Natural ver muitos desenhos na parte da cabeça, área mais sagrada do corpo, representando a vontade de afirmação da pessoa.
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Em meio às navegações das Índias, as tatuagens chegam ao Ocidente. Utilizados por navegadores e pessoas que entravam no navio, como prostitutas e criminosos, a visão marginalizada das tatuagens se estabeleceu. Porém, nada mais eram que um reflexo das diversas experiências com outras civilizações durante as expedições. Por volta de 1950, as tattoos foram introduzidas no Brasil, tendo a técnica aprimorada com o passar dos anos.
Mas foi nos séculos XIX e XX que se tornaram símbolo de marginalidade, por conta do uso para marcar detentos. Com o passar do tempo a técnica do movimento começou a se modernizar. Os traços mais bem delineados, quantidade maior de tintas, utilização de desenhos mais aprimorados. Isso fez com que a tatuagem começasse a ganhar espaço na sociedade não mais como algo marginalizado ou somente de determinado grupo social. A própria globalização entra nesse jogo disseminando essa arte, passando a informação de forma rápida, mostrando que ela pode ser utilizada de forma normal em um lugar e outro do mundo, mesmo quando apresentam diferentes conceitos. Cria-se uma espécie de tribo, fortificada, em relação aos desenhos na pele. Passa a ser um movimento artístico, pois os desenhos passam a ter uma estética muito mais elaborada.
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Passando a ser uma questão estética, e porque não dizer até mesmo de moda, as lojas de tattoos ganham espaços nas ruas das cidades, avançam cada vez mais na arte e trazem novidades e regulamentações importantes na área. Muito embora isso ocorra, ainda há quem olhe torto para os tatuados, quem julgue, descrimine e até humilhe. Me parece, inclusive, uma questão matemática de proporção direta: quanto maior a quantidade de tatuagens a vista, maior o tratamento diferenciado a pessoas tatuadas. Isso acontece seja para arranjar um emprego, seja para se aproximar de alguém ou simplesmente pelo fato de ser estar caminhando na rua.
Se pararmos para analisar a concepção do corpo ao longo da história, podemos notar que ele é visto como uma conexão entra vários questionamentos e ações, bem como investimentos. Existe uma profunda problemática acerca da identidade baseada no corpo, onde ele representa o ser. O corpo é um ponto chave, o centro para o desenvolvimento social e é ele que dá existência ao ser. A partir da modificação desse corpo, seja do próprio corpo em si ou do uso de acessórios sobre ele (roupas, joias, etc) é que o indivíduo se solidifica e se sente parte de algo, sendo algo. A tatuagem ganha esse novo sentido de resposta na contemporaneidade. São assinaturas que afirmam a sua singularidade no mundo. Ela trás uma espécie de marca (não no sentido literal desta vez) para cada um, seja apenas como uma espécie de autoafirmação, ou algo mais profundo. Isso vai depender de cada indivíduo e não deve ser visto como um problema caso tenha um caráter apenas de ornamentação. Por mais que a beleza seja algo subjetivo, mesmo que venhamos a tecer uma reflexão sobre os padrões estabelecidos na sociedade atual, ninguém se tatua se achar que não ficará bonito e esse sentido de se sentir mais belo pertence a cada um. Isto quer dizer que não importa caso o próximo não tenha achado atrativa a sua tatuagem, o corpo é seu e é nele que nasce a sua afirmação pessoal. O que é necessário ter em mente, porém, é que não significa com isso que a tatuagem deva ser descriminada. Questionamentos sobre como a pessoa irá conviver com tais desenhos cravados na pele após os 70 anos, ou como conseguirá ter uma família, ou como conseguirá trabalhar por conta das tattoos são alguns dos vários preconceitos que pessoas tatuadas precisam diariamente escutar pelos corredores de seus trabalhos ou até mesmo em casa. Não existe qualquer relação entre pessoas tatuadas e a ausência de boa conduta, princípios éticos ou morais, capacitação profissional. Assim como o contrário também não se aplica.
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Apesar da globalização, da consciência do corpo ser único e pertencente a cada indivíduo, podendo ele ser modificado o quanto quiser, ainda existem raízes dos séculos passados encrustadas na sociedade atual, nessa mesma sociedade dos quarks, das células-tronco , dos chips e de coisas tão desenvolvidas. Tão ignorante ainda essa sociedade, que por entre verdades criadas se escondem, em preconceitos se defendem e cega permanece. Quebrar alguns conceitos que estão atrelados a nossa cultura, de forma geral, é complicado, pois há questões antropológicas envolvidas, mas que não podem servir de esconderijo para preconceitos, ainda mais quando falamos disso em pleno século XXI, aonde até aqui várias lutas pela liberdade, em especial do corpo e de expressão, foram traçadas. Espaços foram conquistados na sociedade e precisamos de mais. A dicotomia do puro e impuro em relação a tatuagem é muito forte, não somente por questões religiosas, mas pelo olhar da modificação daquilo é natural, a modificação do corpo da sua forma original. Porém tudo é passível de mudanças, essa é a verdadeira ordem natural do mundo: mudar.
Por mais que as tatuagens estejam afirmando uma espécie de naturalidade estética, muito ainda deve ser refletido e debatido, a fim de tirar esses limites entre o que se pode tatuar e aonde. Isso tem como objetivo construir uma sociedade livre de tantos paradigmas e lições vãs sobre caminhos ditos como corretos e coerentes. Está aqui se formando uma cultura livre, de expressão, aonde em qualquer lugar do mundo que se vá isso possa ser contemplado e não apedrejado, por mais “exótico” que possa parecer.
“Quero ficar no teu corpo feito tatuagem / Que é pra te dar coragem / Pra seguir viagem / Quando a noite vem (...)”
Chico Buarque de Holanda


Que a tatuagem continue sendo usada, cantada e reinventada. Livre e forte!

Por Camilla Trigo

Fonte:
© obvious: http://lounge.obviousmag.org/espaco_da_palmitcha/2014/

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