OS ESTADOS DE CONSCIÊNCIA E O EU VERDADEIRO - CHAITANYA-CHARANA DASA

Os Estados de Consciência e o Eu Verdadeiro

15 I (artigo - Karma e Reencarnação) Os Estados de Consciência e o Eu Verdadeiro (2600)

Apesar de sua natureza desconcertante, a alma pode ser compreendida por análise guiada e introspecção.

Você não é o corpo; você é a alma”. Esse é um dos ensinamentos védicos mais importantes e mais repetidos. Contudo, há uma aura de mistério em torno da alma. Qual é sua natureza exata? Podemos intuir seus atributos essenciais? Como podemos experienciar-nos como a alma?

Intuindo a Natureza Essencial da Alma

Uma reflexão assistida pode nos ajudar a intuir acerca da natureza essencial da alma. A sabedoria védica declara que a alma é, por sua própria natureza, sac-cid-ananda: eterna, plena de conhecimento e plena de bem-aventurança. Essa natureza eterna, esclarecida e extática da alma é expressa de alguma maneira em nossa atual existência corpórea? Analisemos esses três aspectos de nossa natureza.  
1. Eternidade: Normalmente, todos nós desejamos viver para sempre – dificilmente podemos considerar o prospecto de um futuro no qual não teremos nenhum papel, no qual nem mesmo existiremos. É de nossa natureza intrínseca nos recolhermos diante do pensamento de nossa mortalidade, e não estamos sozinhos. Até mesmo a menor das criaturas exibe as mais incríveis habilidades para evitar a morte. Essa avidez universal pela vida é absolutamente notável quando contrastada com a verdade de que a morte é o fato mais imutável e inegável da vida. Todos os corpos físicos estão fadados à mortalidade; nascem com uma sentença de morte ou uma data de validade escrita neles. Se somos simplesmente nosso corpo físico, por que temos este desejo profundamente arraigado por algo – uma existência eterna que é não apenas fortemente artificial, mas, na verdade, impossível para o corpo físico conseguir? Como essa avidez profundamente arraigada se origina em um mundo que demonstra sua inevitável frustração em nossos próprios corpos e nos corpos dos demais? A tradição/sabedoria védica responde que essa avidez vem da essência mais profunda de nosso ser, a alma, que é, por natureza, eterna. Ansiamos viver para sempre porque nós, como almas, somos eternos.
2. Conhecimento: Todos nós somos insaciavelmente curiosos. Algumas pessoas têm curiosidade em relação às últimas fofocas da vizinhança; outras, em relação às notícias do mundo; outras, por sua vez, interessam-se por saber sobre a natureza das estrelas mais longínquas. Embora o que queremos saber varie de pessoa para pessoa, o princípio de querer saber mais permanece comum a todos nós. Mais uma vez, nós humanos não estamos sozinhos em sermos movidos pela curiosidade; experimentos demonstram que macacos trabalham por mais tempo e mais duramente para descobrir o que há do outro lado de um alçapão do que para obter comida ou sexo. Se tentamos entender esse ímpeto de criatividade no contexto da noção de que somos simplesmente nosso corpo físico, deparamo-nos com um impasse lógico. Nosso corpo físico nos permite apenas poucas janelinhas para o mundo externo. Através dessas pequenas janelas chamadas sentidos, podemos conhecer apenas muito pouco do que existe e ocorre ali. Sem dúvidas, aprendemos muito sobre o mundo valendo-nos de nossa mente e de nossos sentidos. Todavia, a própria expansão de nosso conhecimento expandiu nossa visão de o quanto resta a ser conhecido. Nossas sondas de alta tecnologia ajudaram-nos a aprender algo sobre átomos e também revelaram quão complexo de fato é um átomo. Isso não apenas grifou mais enfaticamente o quão pouco conhecemos, como também o quão pouco somos capazes de saber. Se somos simplesmente nosso corpo físico, por que temos uma fome de conhecimento tão impossível de ser saciada fisicamente? Da perspectiva védica, nossa curiosidade insaciável se origina da alma, que é, por natureza, consciente e informada.
3. Bem-aventurança: Todos nós somos instintivamente buscadores de felicidade. Seja através de nos darmos aos prazeres sensuais, realizarmos feitos heroicos, participarmos de esportes que arriscam a vida, assistirmos a telenovelas ou jogarmos videogame, o prazer é aquilo pelo que buscamos constantemente. Mais uma vez, estudos do comportamento dos animais demonstram que os animais também esforçam-se pelo prazer. Apesar disso, o corpo físico nos permite pouquíssimas vias de acesso para o prazer; essas vias se limitam aos pontos de contato dos sentidos e dos objetos sensoriais. E o mesmo corpo pode nos causar dores através de praticamente qualquer um de seus órgãos. O número de prazeres corpóreos é pequeno; o número de doenças corpóreas, numeroso. Com efeito, as maneiras pelas quais o corpo pode infligir dores superam em muito as maneiras pelas quais pode propiciar prazeres. Se fôssemos simplesmente nosso corpo material, por que teríamos a sede de um prazer para o qual somos tão fisicamente incompetentes para saciar? A tradição/sabedoria védica responde que nessa sede por prazer se origina do júbilo que é inerente à alma.
Assim, sobriamente refletindo sobre a natureza contrastante de nossos desejos inatos e de nossas limitações corpóreas, podemos vislumbrar a natureza da alma.
Buscando em seu interior, algum de nós talvez se pergunte: “Se sou realmente imortal, por que não me sinto indestrutível? Por que me sinto tão suscetível à destruição?”.
A resposta, a tradição de sabedoria védica diz, está na profundidade em que a alma está enterrada – debaixo de um amontoado quase impenetrável de noções equivocadas e desejos direcionados para objetos impróprios. As prolongadas ações que realizamos no passado sob um conceito materialista de vida criaram impressões profundas em nossa psique, impressões essas que obscureceram quase por inteiro nossa percepção de nossa identidade espiritual.
Não obstante, podemos conhecer nossa identidade espiritual pelas duas ferramentas da introspecção e da purificação. Examinando criticamente nossos pressupostos no atinente à nossa identidade, podemos descobrir sua superficialidade e descartá-los. Ao levarmos nossa vela da introspecção cada vez mais a fundo, iluminamos, por fim, a essência de nossa identidade: a alma. Para a vela interior encontrar a alma, precisamos complementar a introspecção com purificação. A purificação tem dois aspectos: restringir os desejos por prazeres materiais ordinários que puxam nossos pensamentos para baixo, para o nível corpóreo, e cultivar desejos por sabedoria superior, a sabedoria que eleva nossos pensamentos em direção ao reino espiritual.

Duas Concepções, Duas Conclusões

Consideremos, agora, uma história védica clássica que ilustra esse projeto dinâmico de escavação espiritual através de introspecção e purificação.
A Chandogya Upanishad (8.7–8.12), um antigo texto védico, narra a história de dois indivíduos que buscaram conhecer a verdadeira natureza do eu: Indra, o rei dos seres divinos, e Virochana, o rei dos seres não-divinos.
Brahma, o criador, famoso por sua profunda sabedoria espiritual, desejou beneficiar todos os seres vivos. Ele, então, proclamou a importância do conhecimento do eu: “O eu é livre de pecado, velhice, morte, aflição, fome e sede. Todos precisam procurar esse eu e compreendê-lo, pois, em decorrência disso, realizar-nos-emos em plenitude”.
15 I (artigo - Karma e Reencarnação) Os Estados de Consciência e o Eu Verdadeiro (2600)1Brahma compartilha o mesmo conhecimento espiritual que recebeu diretamente de Krishna.
Tendo ouvido a proclamação de Brahma, Indra e Virochana aproximaram-se dele a fim de indagar acerca desse conhecimento do eu. Aceitando-o como seu mentor espiritual, adotaram um estilo de vida de disciplina e austeridade. Depois de terem se purificado por trinta e dois anos, solicitaram mais insights a Brahma. Brahma respondeu: “Aquela pessoa que vós vedes com vossos olhos é o eu; essa alma é destemida e imortal”.
De modo a verificar essa compreensão, Indra e Virochana perguntaram: “O reflexo que vemos com nossos olhos em um rio ou em um espelho – isso é a alma?”.
Brahma confirmou com um movimento da cabeça e disse: “Olhai-vos em um cântaro d’água e reportai-me o que vistes”.
Após terem-no feito, informaram a Brahma: “Vimos todo o eu, do cabelo sobre a nossa cabeça até as unhas em nossos pés”.
Brahma, então, solicitou-lhes que cortassem o cabelo e as unhas e se vestissem com roupas e com ornamentos novos. Quando o fizeram, indagou: “O que vedes agora?”. Responderam: “As duas pessoas no reflexo cortaram o cabelo e as unhas, exatamente como nós. E estão trajando vestes e ornamentos novos, exatamente como nós”.
Brahma lhes disse: “O que vedes no reflexo é a alma destemida e imortal”.
Indra e Virochana partiram, contentes com o novo conhecimento obtido.
Virochana voltou para o seu povo, os seres não-divinos, e anunciou-lhes: “O corpo não é diferente da alma. Em razão disso, é unicamente o corpo que deve ser adorado, é unicamente o corpo que deve ser servido. Quem faz isso conquista tanto este mundo quanto o próximo”.
Indra, no entanto, ficou pensativo. No caminho de volta para sua casa, pensou: “O reflexo na água muda quando o corpo muda – quando o corpo está limpo, o reflexo se torna limpo. Posso concluir, por conseguinte, que quando o corpo morra, o reflexo também morrerá. Como, então, isso pode ser a alma imortal?”.
Assim pensando, Indra foi ter com Brahma, que solicitou a Indra que ficasse e mergulhasse mais a fundo nas verdades do eu.
Depois que Indra se submetera a outros trinta e dois anos de austeridades, Brahma lhe disse: “O eu nos teus sonhos é o eu que estás procurando. A pessoa que tu entendes ser o eu em teus sonhos é a alma destemida e imortal”.
Feliz com esse insight, Indra partiu. Mais uma vez, entretanto, durante seu percurso de volta, foi tomado por dúvidas: “O eu em meus sonhos algumas vezes sente medo e dor. O eu dos sonhos parte quando o sonho acaba, motivo pelo qual ele é temporário. Ademais, esse eu é uma entidade imaginária e sempre em mutação – cega em um sonho, de várias cabeças em outro, e aleijada em mais outro. Como pode ser a alma destemida e imortal?”.
Confuso, Indra retornou a Brahma, que o incitou a estudar mais. Depois que Indra realizara austeridades por outros trinta e dois anos, Brahma lhe disse: “O eu está escondido no estado de sono profundo, isto é, o estado completamente livre de sonhos”.
Como antes, Indra, a princípio, ficou radiante; em seguida, porém, deu consigo em dúvida. Pensou: “No sono profundo, o eu nada percebe – não está ciente de nada na existência, nem mesmo de si próprio. É como se o eu tivesse sido aniquilado. Isso não pode ser o eu destemido e imortal”.
Indra apresentou sua dúvida a Brahma. O preceptor confirmou o entendimento do discípulo e pediu que ficasse um pouco mais.
Após outros cinco anos de austeridade, Brahma revelou a verdade última: “O corpo físico é apenas a morada do eu verdadeiro, a alma, que se esconde dentro dele. Assim como um cavalo é atrelado a uma carroça, a alma se liga ao corpo. O corpo sempre se sujeita a medo e morte. Quando alguém se desvencilha do corpo, compreende a alma destemida e imortal. É a alma que vê através dos olhos e ouve através dos ouvidos. Além de sua vida atual de apego corpóreo, a vida tem sua própria vida em relação com Deus”.
Essa história ilustra, através do exemplo de Indra, o que é necessário para alguém compreender a própria identidade: introspecção contínua e que não se satisfaz com respostas rasas, bem como purificação incansável e que aceita quaisquer austeridades necessárias para alcançar a verdade. Quem se satisfaz com respostas superficiais, como Virochana, perde-se do ponto principal.
Além disso, a história ilustra os diferentes níveis em que podemos perceber equivocadamente nossa identidade. A concepção errônea mais comum, a partir da qual tanto Indra quanto Virochana começaram, e da qual Virochana nunca se livrou, é a identificação com o corpo grosseiro físico. Para quem vai além dessa percepção falsa, o próximo nível de identificação errônea é com o corpo sutil, onde o sujeito se identifica com seus pensamentos. Algumas vezes, como nessa história, esse nível é dividido em dois estados de consciência encoberta. Aqueles que investigam mais e se perguntam quem está pensando os pensamentos conseguem chegar à conclusão derradeira e conhecem sua identidade verdadeira como almas, além das coberturas física e mental.

O Território Pátrio da Consciência

Os níveis de identificação equivocada nessa história também correspondem aos diferentes níveis operacionais de consciência explicados na tradição da sabedoria védica. O Srimad-Bhagavatam (7.7.25) menciona esses três níveis como sendo jagarti (consciência desperta), svapna (consciência de sonhos) e susupti (consciência de sono sem sonho). Além desses três, está a consciência original da alma, que se chama turya (consciência espiritualmente desperta).
Analisemos mais de perto esses quatro estados, com base na explicação dada em outro texto védico, a Mandukya Upanishad (mantras 3–7):
1. Consciência desperta: neste nível operacional de consciência, estamos cientes do mundo físico em torno de nós; a consciência, que se origina da alma, passa pelo corpo sutil e pelo corpo grosseiro e chega ao mundo externo. Nesse nível, em geral, nós cometemos o erro de nos identificarmos com o corpo físico grosseiro. Este foi o nível no qual tanto Indra quanto Virochana começaram.
2. Consciência de sonho: este nível operacional é caracterizado pela presença de atividade mental e suspensão da atividade sensória. A consciência, que parte da alma, estende-se, primariamente, até o corpo sutil. Como a consciência é essencial para a percepção e a ação, esse nível é caracterizado pela percepção e pela ação no nível mental, mas não no nível físico. Neste nível, nos identificamos erroneamente com a mente, como indicou a segunda resposta dada por Brahma.
3. A consciência do sono sem sonho: Neste nível, há suspensão até mesmo de atividade mental, e ausência de sonhos, em consequência do que não há ciência de absolutamente nada, como indicou a terceira resposta de Brahma. A consciência não passa nem mesmo pelo corpo sutil. Algumas vezes, médicos classificam pacientes como “inconscientes”, ou até mesmo “comatosos”, e se valem da escala de coma de Glasgow para medir a profundidade do coma. Até mesmo nesses casos, a tradição da sabedoria védica declara que a consciência, sendo uma característica inalienável da alma, continua presente; apenas não se expressa nos níveis físico ou mental. Resumidamente, a inconsciência também é um estado de consciência.
4. A consciência espiritualmente desperta: este é o nível de consciência original e natural, no qual a alma está em território pátrio, percebendo sua identidade espiritual pessoal bem como o reino espiritual. Este é o nível que Indra por fim contemplou através de contínua introspecção e purificação com seriedade.
Então, quando assim guiarmos nossa consciência para dentro através de introspecção e purificação, conheceremos o eu verdadeiro e descobriremos que o buscador da verdade era a verdade em si: eu, o buscador da alma, sou pessoalmente a alma.

Chaitanya-charana Dasa

Fonte:http://voltaaosupremo.com/artigos/artigos/5086-2/

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