
O LIVRO DE CHUANG-TZU
Tradução: Amadeu Duarte
BREVE APRESENTAÇÃO
Decidi dar início à empolgante tarefa
de traduzir a obra completa – independentemente do tempo que isso leve, ou
mesmo da sua possível finalização – pela actualidade que encerra, por
complementar o Tao Te Ching, pelo gozo que dá, e pelo grau de desafio que
apresenta, ao exigir que se tenha noção precisa daquilo que a matéria trata.
Faço-o, contudo, não na qualidade de
conhecedor do idioma original, mas baseando-me em referências publicadas em
Inglês, que me é relativamente acessível. O suficiente para obter o que
pretendo – não obstante ser exigente no escrutínio que faço (não é importante
ser um catedrático na matéria para se conseguir excelentes resultados – diria
mesmo não serem necessários mais requisitos para além de uma forte e inamovível
determinação nesse sentido, e o cuidado indispensável por preservar a
singularidade da mensagem. O resto constituirá porventura uma surpresa, dado o
facto de as várias obras referenciadas apresentarem tanta incongruência entre
si).
A ordem por que apresento os
capítulos é livre, como espontâneo é o seu exercício, e se não obedece
exactamente a nenhuma dessas obras, procuro velar por que não fuja a uma
coerência de sentido, dada a elevada importância de que se reveste, para ser
destacado. Sobre o seu autor inicial, pronunciar-me-ei mais adiante no tempo, à
medida que a tradução se for consolidando, por não me encontrar focado nesse
tema actualmente.
CAPÍTULO 2
TORNANDO TODAS AS COISAS IGUAIS
Nan Kuo Tse Chi, achava-se debruçado sobre uma mesa baixa, a fitar os céus e a suspirar como que abstraído.
Yen Cheng Tse Yu, que estava de pé perto dele, exclamou:
"Em que estás a pensar para que o teu corpo tenha ficado como um cepo morto e o teu espírito se pareça com cinzas de fogo extinto? Certamente o homem que agora mesmo estava reclinado sobre a mesa não é o mesmo que aqui se encontra - "Meu amigo", respondeu Tse Chi, "a tua pergunta vem a calhar. Hoje perdi a noção de mim próprio... Compreendes? Talvez conheças apenas a música dos homens e não a da Terra. Ou mesmo tenhas escutado a música da Terra e talvez não tenhas ouvido a do Céu.
"Explica-te, por favor", pediu Tse Yu.
"O sopro do universo", continuou Tse chi, chama-se vento. Às vezes encontra-se inactivo. Porém, quando activo, todas as fendas assobiam pela acção da sua fúria. Por acaso jamais ouviste esse tumulto ensurdecedor?
"As cavernas e os fossos das colinas e das florestas, as cavidades em enormes árvores de muitos palmos de circunferência - algumas semelhantes a narinas e outras a bocas, outras ainda a orelhas... E o vento por elas entra com violência, como torrentes em redemoinho ou setas sibilantes, a bramir, com fúria, a gorgolejar, a gemer, a clamar, a sussurrar, a assobiar por um lado e a ecoar pelo outro, ora suave com o ar fresco, para de seguida se apresentar violento com o redemoinho do vento, até que a tempestade passe e reine supremo o silêncio. Por acaso nunca reparaste como as árvores e os objetos são sacudidos e tremem, e os galhos ficam emaranhados e se contorcem todos?"
"Bem, então", indagou Tse Yu, "já que a música da Terra é feita de cavidades e aberturas, e a do homem de flautas e gaitas, de que é feita a música do Céu?"
"O efeito produzido pelo vento nas várias fendas", replicou Tse Chi, "não é uniforme, porém, os sons produzidos variam de acordo com sua capacidade individual. Quem é que lhes agita o sopro?".
"O vasto conhecimento, a profunda compreensão, abrange tudo; a sabedoria mesquinha, a compreensão superficial, é vaga e passível de disputa. Os discursos eloquentes e as palavras de sabedoria, são inspiradoras e claras, os discursos desapaixonados, desagradáveis. No sono entramos em contacto com a nossa alma; quando acordados, empenhamo-nos nos sentidos, e nas coisas que nos cercam e deixamo-nos envolver pelo tormento e pela hesitação. Os receios provocam ansiedade e o terror provoca pânico. Alguns são fáceis de resolver e são comodamente acalmados, outros são profundos e dissimulados, e outros misteriosos. O espírito voa célere, como flecha desferida pelo arco, e arbitramos como se soubéssemos o que é correcto e o que é errado. Ou então afincamo-nos ao nosso ponto de vista, como se tivéssemos prestado um juramento, como se tudo dependesse dele, mas as nossas opiniões possuem tanta permanência quanta a geada do outono, que gradualmente passa. E imersos na corrente das coisas continuamos a seguir o curso sem podermos voltar atrás. Finalmente esgotados e aprisionados, aproximamo-nos da morte e não encontramos maneira de recuperar a clareza.
"Alegria e cólera, tristeza e felicidade, esperança e arrependimento, indecisão e poder, humildade e força de vontade, entusiasmo e indolência acometem-nos por turnos, apresentando-se de maneira sempre diferente, tal como a música que sai de uma cana oca ou cogumelos que brotam na humidade. Dia e noite alteram-se em nós, mas não sabemos de onde vêem. Deixa que te acometam! Poderemos compreender tudo de uma só vez? Sem eles não teremos existência; sem nós, não terão qualquer propósito. Isso aproxima-se do sentido, mas não podemos saber o que leva as coisas as ser como são. É como se tivessem uma Orientação Suprema, mas temos maneira de a descobrir. Certamente que actua, quanto a isso não resta a menor dúvida, mas não consigo descobrir-lhe a forma; possui vontades mas não forma.”
“As cem articulações mais os nove
orifícios compõem a nossa forma, o nosso corpo, mas alguma será superior às
demais? Qual preferirás? Não serão todas elas nobres? Deverei eu tratar alguma
melhor que as outras? Não nos servirão todas por igual? Se todas se revelam
prestáveis também poderão conservar a ordem que reina entre si de uma forma
espontânea. Pode ser que existe um senhor supremo sobre todas elas, mas duvido
que lhe consigas apontar a verdadeira forma. Mas quer o consigas ou não, isso
nada terá que ver com a sua natureza verdadeira.”
“Quando a alguém é dada uma forma,
ele não viverá nela até morrer? Quer seja fácil ou difícil, quer em conflito ou
em harmonia com os demais, atravessamos a vida como um cavalo veloz sem que
nada o detenha, incapaz de labutar duro até morrer e incapaz de apreciar
qualquer conquista, e incapaz de descansar, desgastado. Uma vida assim não terá
qualidade. Não será isso triste? Poderá dizer que não existe morte, mas quando
o corpo entra em decadência a mente acompanha-o. Que conforto trará isso? Não
representará isso um verdadeiro contra-senso? Ou serei eu o único a perceber a
incongruência?
Se alguém seguir a sua natureza e
fizer disso o seu guia, como poderá dizer que não tem mestre? Porque será que
somente aquele que compreende a mudança e molda pensamento e sentimento nisso
pode ter um mestre? Até os idiotas têm os seus mestres. Mas se ignorares a tua
mente e insistires no conhecimento do certo e do errado, isso equivale a dizer
que tenhas saído de Yueh hoje e lá tenha chegado ontem, ou dizer que o que não
tem existência exista. Mas se afirmares que aquilo que não tem existência
existe, então até mesmo o santo Yu não te conseguirá entender, quanto mais eu!
As palavras que empregamos não coisa
vazia mas possuem sentido. Porém, se o que tiverem a dizer não for definido, se
não se conseguir definir o sentido de uma palavra, então nada quererá dizer. As
palavras parecem diferenciar-se do chilrear dos pássaros, mas existirá mesmo
alguma diferença, ou não? Como poderá dar-se o caso do Tao parecer de tal forma
obscuro para que possa existir verdadeiro e falso? Em que se basearão as
palavras para termos certo e errado? Como poderá o Tao deixar de existir? De
que modo poderão as palavras existir e não ser aceites ou compreendidas?
Quando o Tao assenta no discurso
eloquente, o significado da palavra é ocultado pelos floreados da retórica, e
isso acaba por gerar discussão entre Confucionistas e Moistas. O que uns dizem
estar certo, os outros afirmam estar errado; o que uns dizem estar errado, os
outros asseveram como certo. Se pretendermos confundir o “errado” deles e
confirmar o “certo”, então o melhor a fazer é usar de clareza e olhar além de
certo e de errado.
Todas as coisas são relativas e podem
tanto ser uma coisa como outra. A forma como os outros as vêem pode não ser a
perspectiva que temos delas, de modo que só as poderemos ver pela compreensão
pessoal. Por isso, “isto” procede “daquilo”, e “aquilo” depende “disto”, o que
quererá dizer que dão origem um ao outro. A vida depende da morte e a morte
sucede à vida; onde existir uma precisará existir a outra. Onde reinar
aceitação deverá existir falta de aceitação; se existir, também não existirá, e
por não existir, também existirá.
Assim, o sábio não se incomoda com
tais distinções, mas verte sobre a questão a luz da clareza. Também ele
distingue “isto” e “aquilo”, só que numa qualidade que compreende igualmente o
contrário. E as suas perspectivas também comportam um “certo” e um “errado”.
Assim, ainda as distinguirá, ou não? O estado em que subjectivo e objectivo
deixam de comportar o oposto (pela separação) representa a quietude do Tao. O
eixo garante o centro do círculo que não tem fim, por poder reagir tanto ao que
“é” como ao que “não é”. É por isso que o melhor será fazer uso da clareza de
compreensão.
O emprego de atributos para
demonstrar que os atributos não são atributos não-atributos a fim de ilustrar
que os atributos não são atributos efectivos. Recorrer ao uso de determinada
coisa (minha) para ilustrar que a coisa (do outro) não é tal coisa, não se
compara à demonstração do contrário segundo a perspectiva do que é reconhecido
como sendo determinada coisa. O Céu e a Terra podem ser tratados como qualquer
coisa objectiva – que é una.
O que é, e o que não é não é. O
Caminho é feito percorrendo-o. As coisas são o que são pela sua constante
nomeação. Como assim? É assim por ser assim. E quando não é assim, não é assim.
Todas as coisas possuem um carácter inato e uma função própria, sem excepção.
Assim sendo, quer indiques um pequeno caule ou um grande pilar, o repugnante ou
o belo, a obscuridade ou a destreza, o engenho ou o grotesco, todas essas
coisas à luz do Tao poderão igualar-se.
Na diferença que as caracteriza se
acha a sua perfeição. Na sua perfeição reside aquilo que as diferencia. Nada é
perfeito nem imperfeito mas tudo poderá ser percebido como uno se
transcendermos perfeição e imperfeição.
Só o homem que possua uma visão com
um alcance assim conseguirá torná-las numa só coisa. Uma pessoa assim não faz
uso das distinções e vive na constância (no que é permanente). Acolhe as
perspectivas comuns e desse modo evita a dissensão. As perspectivas comuns são
alicerçadas no terreno da utilidade; a utilização de algo que defina o uso que
possa ter. Tal uso indiciará flexibilidade e aceitação A abrangência de juízo
que disso resulta conduz ao êxito na busca. Assim que a busca da compreensão
for alcançada, perto estaremos do fim que a terá motivado, do seu alvo, e aí é
que chegamos a deter toda a coisa - quando atingimos o ponto em que todas as
coisas são realizadas. Nisso confiamos unicamente, sem que saibamos como o
teremos atingido.
Ao tormento por tentarmos unificar
todas as coisas sem percebermos que são todas uma mesma coisa chama-se “Três
pela Manhã”. Que quero dizer com “Três pela Manhã”? Determinado zelador de
macacos distribuía-lhes bolotas quando disse: “Vou-vos dar três pela manhã e
quatro à noite.” Os macacos ficaram furiosos com aquilo e o tratador então
replicou: “Tudo bem, vou passar a dar-lhes quatro pela manhã e três à noite.”
Isso deixou-os contentes. Ambas as formas de tratamento não eram
substancialmente diferentes, mas os macacos reagiam-lhes de modo diferente. E o
zelador conseguiu aquilo que queria com tal astúcia.
Assim, o sábio é equânime na
aceitação que faz do “certo” e do “errado”, e repousa no equilíbrio do Céu.
Isso representa a consideração de ambos os aspectos da questão.
O Berço do
Conhecimento
O conhecimento que os antigos
possuíam era vasto. Quão vasto era ele? O suficiente para os levar a ver que
nada existia, o que representa um conhecimento virtualmente perfeito, por nada
mais precisarem acrescentar. Posteriormente alcançaram a noção da existência de
alguma coisa, porém, não lhe atribuíam nomes nem qualidades. Mas foi quando
começaram a formular juízo moral que a unidade do Tao se perdeu – juízos de
“certo” e de “errado”, de “bom” e de “mau”. Com o declínio da Unidade do Tao,
surgiram o desejo e a parcialidade da preferência. Mas existirá mesmo
realização e perda?
Mas tal declínio ter-se-á seguido à
formação do desejo, ou terá precedido ao surgimento das preferências? Se o declínio
se tiver seguido à formação parcial do desejo e das preferências, a maneira que
Chao Weng tinha de tocar alaúde era natural. Se o dano tiver ocorrido antes do
surgimento da parcialidade do desejo, Chao Weng não teria razão para tocar o
seu alaúde.
Chao Weng tocava o alaúde
Shih Chuang conduzia com a sua batuta
Hui Tzu discorria sobre a filosofia.
O conhecimento que esses três mestres
possuíam abeirava a perfeição, e prosseguiram assim até ao fim. Por serem
excepcionais distinguiam-se dos demais. Os seus nomes foram legados à
posteridade. Por serem excepcionais pretendiam iluminar toda a gente por meio
da sua arte. Recorrendo à simplificação tentaram ensinar o que desse modo
redundaria no fracasso, por resultar em debates obscuros sobre a natureza do
“árduo” e do “alvo”, por tal conhecimento não poder ser transmitido por vias
externas. Também os seus filhos lhes seguiram os passos, mas não lograram
alcançar a perfeição.
Poder-se-á dizer que esses homens
tenham atingido alguma perfeição? Se assim for, também nós a teremos atingido.
Poderão não ter atingido a realização? Nesse caso, nem eu nem nenhum de vós
alguma vez a teremos alcançado. Assim, é pela luz cintilante que surge da
dúvida e da confusão que o sábio se guia. Desse modo, não faz uso da distinção,
mas tudo relega à constância, ao imutável; a isso se chama clarividência.
Todavia, tenho algo a dizer. Não sei
se isso se enquadrará na categoria do que os outros afirmam ou não; mas, quer
seja ou não relevante, não difere das afirmações que proferem. Seja como for,
deixa que tente expor aquilo que te tenho a dizer.
Existiu um começo; contudo, tal
começo ainda não teve início, e existiu mesmo um começo antes desse. E esse
início deu-se mesmo antes desse começo. A existência é um facto mas existe
igualmente a não-existência. Não é fácil dizer se o que não tem existência não
existe, ou se o que tem existência existe. Eu fiz uma afirmação, contudo, não
sei se o que acabei de dizer será efectivo em meio ao que afirmei ou deixei de
afirmar.
Nada há no mundo maior do que a ponta
de um fio de cabelo. Ninguém conseguiu viver mais tempo do que um nado-morto.
Nem mesmo o monte Tai ultrapassa isso, nem Peng Tzu, que morreu jovem.
O Céu e a Terra surgiram ao mesmo
tempo que eu, e as dez mil coisas uma só perfazem juntamente comigo. Ao afirmar
a unidade de todas as coisas eu apontei uma grandeza, não? A Unidade e o
atributo perfazem duas coisas. Se lhe juntarmos o Original isso totaliza três –
o que prosseguiria para além da compreensão até mesmo de uma
hábil contabilista ou matemático, quanto mais da pessoa comum. Se pela
não-existência chegarmos a deduzir a existência, alcançamos três coisas; pensem
só no quanto nos desviaremos caso fôssemos de uma dada coisa para uma outra
qualquer. Detenhamo-nos, pois, por aqui!
No princípio o Tao não tinha qualquer
nome. As palavras não são eternas, mas por causa da palavra surgem a distinção
e os limites. Deixa que te fale sobre tais distinções. Existe esquerda e
direita; debate e divisão, discriminação, concorrência e contenção. A tais
coisas se chama qualidades. Quanto ao que vai além disso, o sábio admite a sua
existência, mas não a discute. Quando ao que tem assento no domínio dessas
qualidades, ele discute, mas não se pronuncia a favor nem contra. Quanto ao
registo das acções passadas dos reis que constam dos Anais da Primavera e do
Outono, ele pronuncia-se, mas não julga.
Quando se divide, não se distingue;
aqueles que distinguem, não conseguem discriminar. Que quererá isso dizer,
perguntarás tu? O sábio abraça todas as coisas, ao passo que a gente comum as
discute. É por isso que digo que aqueles que distinguem não conseguem ver de
uma forma discriminada.
O Caminho encontra-se além de toda a
descrição. O melhor argumento não requer palavras. A mais elevada benevolência
não é cortês. A modéstia em demasia não é humildade. A mais elevada coragem não
é agressiva nem representa bravura.
O Tao que se manifesta não é o Tao.
As palavras argumentativas não alcançam a questão. A amabilidade permanente não
alcança o objectivo. O desinteresse que alardeia a pureza não é credível. A
coragem obstinada é ineficaz.
Estas cinco qualidades parecem
íntegras (completas), mas tendem a tornar-se angulosas e inflexíveis. É por
isso que aquele que conhece o suficiente para se deter diante do que não sabe,
é o que age melhor.
Quem conhecerá a argumentação que não
requer palavras (contenda) e o Tao que não pode ser indiferenciado? Aquele que
conhecer tal coisa possuirá o Tesouro do Céu. Se tentar enchê-lo, ele jamais se
mostrará cheio; se procurar esvaziá-lo, ele nunca chegará a ficar vazio.
Entretanto, ele desconhece a procedência dessa provisão. Chama-se a isso
prover-se de luz.
Há muito tempo atrás o imperador Yao
disse a Shun:
“Gostaria de invadir os estados de
Tsung, Kuai, e Hsu Ao. Desde que me tornei imperador que isso não me sai da
cabeça. Porquê?”
Shun respondeu-lhe:
“Nesses três estados levam uma vida
por entre canaviais e mato. Por que incomodar-se com eles? Tempo houve em que
existiam dez sóis ao mesmo tempo a iluminar todas as coisas. Quanto mais não
deverá a vossa virtude iluminar mesmo esses sois!”
ALGUMAS FALÁCIAS SOBRE O HOMEM
PERFEITO E OS PRINCÍPIOS APROPRIADOS
Yeh Chueh perguntou certa vez a Wang
Ni:
“Mestre, conheces aquilo que é comum
a todas as coisas?”
“Como poderia eu sabê-lo,”
replicou-lhe o mestre.
“Conheceis, mestre, aquilo que não
conheceis? Perguntou-lhe novamente o discípulo.
“Como poderia eu conhecê-lo?”
respondeu-lhe o mestre.
Mas o outro interrogou-o uma terceira
vez: “Nesse caso, serão todas as coisas incognoscíveis?”
“Como poderia eu saber isso? Não
obstante, vou procurar explicar-te o que quero dizer. Como poderás tu saber se
o que eu digo que sei não seja a revelação do não-saber, e que quando digo não
saber esteja verdadeiramente a revelar que sei?
Deixa que te coloque a seguinte
pergunta: Se um homem dormir numa entulheira abafada e húmida ficará com dores
nas costas e o corpo meio paralisado. Mas acontecerá o mesmo a uma enguia? Se
alguém viver no alto de uma árvore ficará trémulo de medo, mas acontecerá o
mesmo aos macacos?
De entre estes três que enunciei,
qual saberá ser o local acertado para viver? Os homens comem carne, os veados
alimentam-se de erva, as centopeias deliciam-se com os vermes, e as corujas e
os corvos apreciam ratos.
De todos esses quatro, qual saberá
qual é o melhor paladar?
Os macacos encontram par por entre
outros macacos. Os veados e os alces coabitam e as enguias apreciam andar por
entre os peixes.
“Mao Chiang e LI-Chi eram
consideradas pelos homens como beldades, mas assim que os peixes as viam a
aproximar-se, mergulhavam para o fundo do tanque; se os veados as vissem
fugiriam a correr, e se chegassem muito perto dos pássaros, estes voariam para
longe. Desses quatro seres, qual reconhecerá o que seja a verdadeira beleza?
“Tal como vejo as coisas, as regras
da benevolência e da rectidão (do bom e do sábio) e as sendas da aprovação e da
reprovação (certo e errado) acham-se inextricavelmente entrelaçadas e
misturadas. Como poderia distinguir qual é qual? Como poderia discriminar por
entre elas?”
Yeh Chueh voltou a perguntar:
“Se o mestre não consegue distinguir
o bem do mal, e o vantajoso do que é prejudicial, poderá o homem perfeito
distingui-los?
Wang replicou:
“O homem perfeito é espiritual. Um
grande lago poderia entrar em efervescência que o calor não o afectaria. Um
grande rio poderia congelar que ele não lhe sentiria o frio. Os trovões
poderiam levar montanhas a desabar e as tempestades abalar o oceano, que ele
não haveria de sentir medo. Um homem assim poderá alcançar as nuvens e a bruma,
ou o sol e a lua, ou navegar para lá dos quatro mares que nem a vida nem a
morte o afectarão nem se preocupará com o bem nem com o mal.
NÃO SERÁ O AMOR PELA VIDA UMA ILUSÃO
PARTILHADA?
Chu Chiao-tze perguntou a Wu tze:
“Ouvi contar que Confúcio não se
perturba com as coisas mundanas; que não persegue o que seja rentável nem tenta
evitar aquilo que se revele pernicioso; que não busca o prazer em nada nem em
ninguém, e que não se apega à senda. Que fala mas sem pronunciar uma palavra, e
que quando fala, nada diz. Assim busca ele a satisfação além da poeira e da
imundície do mundo.
O Mestre (Confúcio) via isso como um
rosário de palavras destituídas de sentido, mas eu creio que essa seja a via do
insondável Tao. Que pensas tu, mestre?”
Chang Wu tze respondeu-lhe:
“Essas palavras teriam deixado até
mesmo o Imperador Amarelo confuso, de modo que como poderia Confúcio
compreendê-las? Além, disso tiras conclusões muito precipitadas ao contares com
a galinha antes do ovo e com o pato assado antes de o caçares. Vou tentar
explicar-te a coisa, mas por alto. Não tomes o que te vou dizer à letra.
“Como poderia alguém igualar-se ao
sol e à lua e de abraçar o universo e tornar-se um com todas as coisas,
abster-se de interferir na diferença e na confusão e ignorar a ordem e o poder?
“Tal discurso quer apenas dizer que o
sábio mantém a boca fechada e que coloca de parte as questões da incerteza e da
obscuridade, tornando assim as suas capacidades inferiores unas consigo mesmo
ao honrar a vida. Os homens no geral, labutam duramente e vivem numa azáfama. O
sábio parece estúpido e ignorante. Vive dez mil anos no agora. A miríade de
coisas prossegue espontaneamente no seu curso que ele considera-as a todas num
todo.
“Como poderei eu saber se o apego à
vida não passa de uma ilusão? Como poderei eu dizer se o temor pela morte não
se assemelhará a um jovem que esqueceu o caminho de casa e não sabe como
regressar?
“A jovem Li Chi era filha de um guara
da fronteira de Ai. Quando o Duque de Chiu a tornou cativa, ela chorou tanto
que deixou a frente do vestido encharcada de lágrimas. Mas quando foi levada
para o palácio do Duque, compartilhou do seu leito e se deliciou com a sua
comida, arrependeu-se de ter chorado. Como poderei eu saber se os mortos não se
arrependerão do anterior apego que terão sentido pela vida?
O GRANDE DESPERTAR
“Os que sonham com os prazeres da
bebida, poderão pela manhã cair num pranto e na lamúria. Os que sonham com
pranto e lamúria, poderão no dia seguinte sair a caçar. Enquanto sonham não
sabem que se trata de um sonho, e enquanto sonham, podem mesmo chegar a
interpretar os seus sonhos. Mas quando despertam sabem que se tratava de um
sonho.
“Dar-se-á um grande despertar, após o
que passaremos a conhecer que esta vida não terá passado de um sonho.
Entretanto, os tolos pensam estar despertos, e ao empregarem a discriminação,
insistem em que possuem conhecimento, ora desempenhando o papel de governantes,
ora de governados. Quão tolos são!
“Tanto o Mestre (Confúcio) quanto tu
estão a sonhar. Quando o afirmo, eu próprio sonho. Estas palavras poderão
parecer capciosas, mas se após dez mil gerações chegarmos a encontrar um grande
sábio que nos explique isso, será como se o tivéssemos encontrado numa só manhã
ou tarde.
AS OPERAÇÕES DO CÉU DÃO-SE IGUALMENTE
EM SEGREDO
“Já que me levaste a entrar neste
debate contigo, se me levares a melhor, em vez de ser eu a levar-te a melhor,
quererá isso dizer que estejas automaticamente certo e que eu esteja errado?
Mas se for eu quem te leva a melhor na disputa, estarei eu porventura certo e
tu errado? Estará um de nós certo enquanto o outro está errado, ou estaremos
ambos certos e errados?
“Já que nós não conseguimos chegar a
um entendimento comum, os homens deverão certamente continuar nas trevas da
ignorância. Quem deverei chamar para que seja juiz? Se chamar alguém que
concorde contigo, como poderá ele fazê-lo correctamente? O mesmo poderá ser
dito caso escolha alguém que concorde comigo. Chamarei alguém que concorde com
ambos? Mas, se o fizer, como poderá ser um juiz imparcial?
“Portanto, se nem tu nem eu nem mais
ninguém conseguir decidir, esperaremos que mais alguém ainda decida por nós?
Esperar por outros para se ficar a saber como opiniões conflituosas podem
chegar a ser mundanas assemelha-se a não esperar coisa nenhuma. Se encararmos
todas as coisas à luz da harmonia e não nos aferrarmos a opiniões, poderemos
viver o nosso tempo de vida até ao fim.
“O que quero dizer com a instauração
da harmonia entre as opiniões conflituosas? Toma a afirmação e a sua negação
congénere (certo e errado). Toma a asserção de uma opinião e a sua rejeição
(ser e não-ser). Não ser é ser, e ser é não ser. Se a afirmação estiver de
acordo com o acto, com a realidade do facto, decerto que diferirá da sua
negação; não poderá tornar-se objecto de debate. Se a asserção de uma opinião
estiver certa, decerto que será diferença da sua rejeição. Tampouco isso se
tornará alvo de disputa. Esqueçamos o lapso do tempo e o conflito de opiniões.
Façamos um apelo ao Infinito e assumamos a nossa posição com base nele.”
A BORBOLETA VISTA COMO UMA OUTRA
COISA
A Penumbra perguntou à Sombra:
“Há pouco movias-te, mas agora
permaneces parada. Antes permanecias sentada, mas agora estás de pé. A que se
deverá tal instabilidade?”
A Sombra respondeu-lhe:
“ Para fazer aquilo que faço tenho
que aguardar o movimento de uma outra coisa qualquer, e aquilo por que espero,
espera por sua vez que outra coisa o faça. A minha dependência não será como a
das escamas em relação à cobra ou das asas em relação à cigarra? Como haveria
de saber por que faço uma coisa ou se deixo de afazer?”
Certa vez, eu, Chuang Tzu, sonhei que
era uma borboleta que esvoaçava alegremente por aqui e por acolá, e que gozava
a vida sem saber quem era. Mas subitamente eis que acordo e voltei a ser Chuang
Tzu.
Agora, não sei se terá sido Chuang
Tzu que sonhou ser uma borboleta ou se não será uma borboleta que sonha ser
Chuang Tzu. Mas entre Chuang Tzu e a borboleta deve existir uma diferença. A
isso se chama transformação das Coisas.
CAPÍTULO 4
QUESTÕES DO HOMEM E DO MUNDO
O Espírito da
Lei e a Interpretação Literal
Yen hui foi despedir-se de Confúcio
mas este perguntou-lhe: "aonde vais?"
"Vou a Wei", respondeu
aquele.
"Que vais lá fazer?"
"Ouvi dizer que o Príncipe de
Wei é jovem e arbitrário nas suas decisões, e não se preocupa muito com o seu
país nem possui consciência dos seus erros, pois não faz nada pelo povo, que se
encontra num estado lastimável. Ora, ouvi-lhe dizer, mestre, que devemos deixar
o país quando estiver bem governado para irmos àquele que se achar num caos. À
porta de um médico há muitos doentes. Eu gostaria de usar o seu ensinamento
para remediar a situação por lá.
Confúcio respondeu-lhe:
"Se lá fores, só encontrarás
dificuldades. A aplicação do Princípio tem de ser pura. Quando alguma coisa lhe
é adicionada, haverá perturbação, e onde houver perturbação acabará por
resultar ansiedade; pela ansiedade não se obterá esperança.
Os sábios do passado desenvolveram o
princípio (Tao) neles próprios antes de o oferecerem aos outros. Se não
estiveres certo de o teres em ti mesmo, como poderás mudar a acção de um
tirano? Além disso, tens conhecimento de que a virtude é corrompida pela fama
(consciência de si). O ensino nasce do desinteresse. A fama leva os homens a
lutarem entre si e o ensino é a arma para essa luta. Ambos podem ser
instrumentos do mal, mas seguramente não são o meio para atingir a perfeição.
Embora tu sejas altamente virtuoso e
digno de confiança, se não entenderes o espírito dos homens, ainda que possas
atingir fama sem competir, se não compreenderes a mente dos homens mas, ao
contrário, fores junto de um tirano e lhe ensinares a benevolência e o
comportamento ético, regras e normas de conduta, estarás apenas a usar as
falhas alheias a fim de demonstrar a tua própria superioridade e isso é ferir
deliberadamente. E aquele que fere os outros, será por sua vez ferido, e assim
acabarás provavelmente com sérios problemas.
Se, na verdade o Príncipe gostar dos
homens bons e odiar os maus, por que precisarás tu de mudá-lo? Se assim
procederes, ele porá a nu os teus fracos argumentos e vencerá a discussão, e tu
ficarás confuso e envergonhado, tratarás de encontrar uma e outra desculpa e
mais parecerá que cedes. A tua mente será moldada pela sua maneira de pensar, e
a isso se chama deitar achas na fogueira.
Se começares a fazer concessões, não
haverá limite para tal acto. Outros foram já tomados de assalto pelo
infortúnio, em resultado de procurarem desse modo a fama para a sua virtude.
Há muitos anos, Yao atacou os estados
de Tsung Shi e Hsu Ao. Essas nações foram devastadas e destruídas e os seus
chefes mortos, porque todos eles estavam constantemente em guerra, numa
tentativa para ganhar fama e riqueza. Nunca ouviste falar deles? Até nem mesmo
os sábios podem lidar com a fama e a riqueza, quanto mais tu! Contudo, deves
ter mais alguma coisa em mente; diz-me o que é."
Disse-lhe Yen Hui: "Se eu for
desligado e auto confiante, perseverante e determinado, isso não
funcionará?"
"O quê? Como poderá isso
funcionar? Tu podes encenar um espectáculo corajoso, mas a tua incerteza
estampar-se-á na tua cara, como aconteceria a qualquer outro. Esse Príncipe
tira prazer em explorar os sentimentos alheios, e nem sequer consegue praticar
as virtudes mais comuns; como podes esperar que seja capaz de apreciar as
virtudes mais raras? Ele pode ser obstinado e inflexível e poderá aparentar que
acredita, mas o seu coração não sofrerá mudança. Como poderás ter êxito nessas
condições?"
"Então está bem. Serei firme por
dentro e complacente por fora. Armar-me-ei com os
exemplos da antiguidade; sendo firme por dentro serei um seguidor do Céu. Sendo
um seguidor do Céu, saberei que o Príncipe é um filho, como eu, do Céu. Por
isso, por que razão deverei preocupar-me se as pessoas aprovarão ou não as
minhas palavras? A isso se chamaria ser infantil; eu chamo ser um seguidor do
Céu.
Sendo complacente por fora, serei um
seguidor dos homens. Levantar o retábulo, ajoelhar-se, curvar-se, arquear-se,
esse é o comportamento de um ministro. Todos os homens fazem isso. Porque não
eu também? Se fizer como os outros fazem, não terei problemas! É a isto que
chamo ser seguidor dos homens.
Cumprindo os preceitos estarei a
seguir a antiga tradição. Apesar das minhas palavras poderem ser de censura e
crítica, não serão minhas mas dos sábios. Por isso não terei nenhum receio de
falar. É a isto que chamo seguir a tradição. Não resultará?"
Confúcio respondeu-lhe: "Como
poderá resultar? Tens demasiados planos, mas além de serem subtis são
inadequados. Essas ideias pré concebidas talvez não te tragam problemas, mas
não irão mais longe por isso. Como poderás influenciá-lo, de algum modo? Ainda
estás a ser muito rígido naquilo que pensas fazer."
Yen Hui perguntou novamente:
"Isso foi tudo o que me ocorreu. Posso, então, perguntar-lhe o que se deve
fazer?"
Confúcio disse-lhe: "Deves
praticar o jejum, e digo-te porquê. Poderá ser fácil agir com base em ideias
pré concebidas? O Céu desconfia daqueles que assim pensam."
Ao que Yen Hui replicou: "A
minha família é pobre, e eu não bebo vinho nem como carne faz muito tempo; não
será isso jejuar?"
"Não", disse Confúcio.
"Isso é o jejum que se pratica nos rituais e não o jejum do pensamento. A
tua vontade tem de ser una; não escutes com o ouvido mas com a mente. O ouvido
só poderá escutar. A mente só poderá pensar, mas a energia vital estará vazia e
receptiva a todas as coisas. O Tao habita no vazio e esse vazio é o jejum da
mente."
Yen Hui respondeu: "Antes de ter
ouvido tudo o que dissestes eu imaginava ser Hui. Agora que o ouvi, já não sou
mais Hui. Será isto o vazio?
"Exactamente" disse
Confúcio.
"Deixa-me agora explicar-te. Tu
podes entrar ao serviço desse homem mas não te lances em frente. Se ele escutar
fala. Se não, fica em silêncio. Não cries lacunas (n.t. posicionamentos
precários) e não serás atingido. Fica atento e aceita o que acontecer. Desse
modo estarás perto do sucesso. Se não te moveres fácil te será passares sem
seres notado. Mas é difícil andar sem pisar o chão. É mais fácil ser hipócrita
nos acordos com os homens, mas é difícil ser hipócrita nos acordos com o Céu.
Tu podes compreender como se poderá voar tendo asas, mas não percebes
como se poderá voar sem as ter. Compreendes como agir a partir do conhecimento,
mas ainda não percebes como se actua a partir da completa ignorância. Olha o
espaço vazio. É no vazio que a luz se gera. Há felicidade na imobilidade, e à
ausência de imobilidade se chama passear sentado. Se te abrires a tudo o que
vires e ouvires, e permitires que isso actue através de ti, até os deuses e
espíritos virão ao teu encontro, para não falar dos homens. Isto representa a
transformação de todas as coisas, o segredo dos sábios e a sua prática
constante. Muito mais útil será isso para o homem comum."
Princípios
Universais
Tendo, o duque de She, Tsu kao, sido
incumbido de se deslocar ao estado de Chi, na qualidade de embaixador, e porque
se sentisse apreensivo, foi consultar Confúcio, a fim de receber concelho: “O
rei confiou-me uma missão da máxima importância. É provável que o Príncipe de
Chi me receba com todas as honrarias, mas não revele interesse imediato ao que
lhe vou propor. Até mesmo os homens comuns evitam apressar-se a tomar decisões,
quanto mais um senhor feudal. Mas tal facto torna-me apreensivo.
Vós, mestre, sempre disseste que, em
todas as questões, sejam grandes ou pequenas, poucos serão aqueles que obterão
êxito, se falharem em seguir o Tao. Mas, se falhar em obter sucesso na minha
missão, tornar-me-ei alvo da crítica. Por outro lado, se obtiver êxito, serei
perturbado pelas flutuações da ânsia e da confusão, porquanto, só aquele que
for sábio actuará livre dos resultados, e estará, pois, ao abrigo de toda a
afectação resultante do que suceder.
Geralmente, alimento-me com comida
sem condimentos, pelo que não careço de bebidas refrescantes. No entanto, fui
nomeado para esta missão pela manhã, e à noite já estava sedento de água
fresca. Estarei com febre? Antes, mesmo, de ter uma noção objectiva da
situação, já me encontro vítima da ansiedade e da confusão. Se não conseguir
obter êxito serei, certamente, condenado à crítica. Acho-me duplamente atado,
pois esta tarefa excede as minhas capacidades de ministro. Não poderá, mestre,
dizer-me de que modo deverei proceder?”
Confúcio respondeu-lhe: “As questões
do mundo são regidas por dois princípios universais, os quais se impõe que
respeitemos: um, é a ordem natural; o outro, é o dever. Segundo a ordem natural
um filho não pode furtar-se a amar e a respeitar os seus pais; tal não pode,
simplesmente, deixar de se fazer premente no seu afecto. Por outro lado, é
dever de todo súbdito servir o seu soberano. Aonde quer que vá, deverá
respeitar tal dever. É por isso que lhes chamo princípios universais. A suprema piedade filial consiste em honrar os próprios pais, onde
quer que se esteja, e em todas as circunstâncias. A mais elevada forma de
lealdade para com o soberano consiste em cumprir as suas funções com espírito
de boa vontade. Servir os próprios desígnios, livres de toda a emoção por parte
da tristeza ou alegria, aceitando o que quer que suceda, imbuído da compreensão
de nada haver a fazer contra o facto, é a mais elevada virtude. Seja na
qualidade de súbdito ou de filho, sempre pode ocorrer algo de inevitável que se
seja obrigado a aceitar. Faz o que tiver de ser feito e não te preocupes
contigo próprio; desse modo não terás porque te preocupar, nem em preferires
uma coisa em detrimento de outra. Cumpre a tua missão desse modo, e tudo
acabará por resultar pelo melhor.
DEIXAR QUE A
MENTE ENCONTRA PRAZERES SADIOS E ADEQUADOS
Vou dizer-te mais uma coisa. Se dois
indivíduos ou Estados mantiverem entre si elos de firmeza, a confiança
recíproca demonstrar-se-á na realização. Caso se encontrem apartados pela
distância, a sua boa-fé terá de ser renovada por intermédio de um terceiro, que
se encarregará de transmitir mensagens de confiança. Encarregar-se dessa
missão, porém, é das coisas mais difíceis, sejam mensagens de regozijo ou de
ira. Quando ambas as partes pretendem agradar, gera-se a tendência para o
exagero nos elogios. Se ambas sustentarem sentimentos de ira e queixume, haverá
tendência para exagerarem na crítica. O exagero, porém, trais sempre a justiça;
e sem justiça ou verdade é improvável que resulte confiança. É por isso que se
diz que é preferível falar a verdade sem exageros, de modo a não se ser
prejudicado.
O combate entre dois lutadores é
geralmente iniciado num estado de abertura de espírito amigável e desprendido
mas, na maior parte das vezes, termina no ressentimento e na amargura. É comum
no calor da disputa trocarem-se certas imprecações que se tornam conducentes ao
dano e à zanga. Quando, nas cerimónias, os homens começam a beber, iniciam com
toda a polidez, todavia, é comum terminarem na descompostura. O que se inicia
assim, num espírito de diversão acaba, a maior parte das vezes, na insensatez e
no exagero; Assim é com tudo, que a princípio parecia destituído de
importância, termina adquirindo proporções monstruosas.
As palavras e os actos são como os
ventos e as ondas do mar, que facilmente podem ser postos em movimento. Os
interesses em jogo facilmente produzem situações de perigo real. A ira decorre
da esperteza e das meias verdades empregues. Quando os animais se confrontam
com a eminência da morte, tornam-se apoderados por uma ferocidade que os faz
rosnar e grunhir ou até atacar sem receio. Do mesmo modo, quando um indivíduo
se vê forçado para lá da medida, pode ser impelido a tornar-se agressivo, sem
saber porquê. E se nem ele próprio conhece as razões desse seu comportamento,
quem saberá saber onde tudo isso irá parar, ou terminar? É por isso que se diz:
“Não te desvies das tuas instruções nem te apresses a terminar a tua tarefa.”
Não forces as coisas. É perigoso ultrapassar os limites naturais, pois podes
comprometer-te e tornar irreversível o processo das negociações. Uma vez
empreendida alguma atitude errada, poderá tornar-se demasiado tarde para a
corrigir. Mas todo bom desenlace leva o seu tempo a desenvolver. Deste modo,
deixa-te seguir na corrente das coisas e conserva a mente livre. Permanece
intimamente ordenado e cuida da tua força interior, de modo a aceitar o
inevitável. Esse é o melhor método de procedimento. De que outra forma poderás
agir, de modo a levar a cabo a tua tarefa? É preferível deixar que tudo se
desenrole com naturalidade, muito embora tal, seja, de facto, pouco fácil de
conseguir.
SER SUFICIENTEMENTE CUIDADOSO PARA
MANTEREM O CORRECTO E A NOSSA NATUREZA INATA
Yen Ho estava prestes a tornar-se
tutor do príncipe da Coroa, filho do duque Ling, do estado de Wei. Foi
consultar Chu Po Yu dizendo: "Eis aí alguém que é naturalmente violento.
Se eu deixar que permaneça indisciplinado, o Estado correrá perigo. Se o procurar
corrigir, incorrerei eu próprio em risco. Ele conhece o suficiente para
reconhecer as faltas nos outros, mas não o suficiente para reconhecer as
próprias. Nesta circunstância, que poderei fazer?"
Chu Po Yu respondeu: "Eis uma
excelente questão! Fica em guarda, sê prudente e
assegura-te de que atuas apropriadamente. Aparenta ser flexível mas preserva a
harmonia interior. Todavia, conseguir essas duas coisas envolve perigo;
conquanto flexível assegura-te de continuares centrado. Mantém a total harmonia
mas não a reveles abertamente. Se fores demasiado flexível e perderes o teu
centro então serás vencido e destruído, e desmoronar-te-ás. Se tentares
demonstrar a tua compostura, serás criticado e dilapidado, levado na conta de
filho da mãe e de inimigo. Se ele quiser ser infantil, sê infantil juntamente
com ele. Se quiser agir de uma forma estranha, age como ele. Se ele quiser ser
descuidado, sê descuidado com ele. Assim poderás tê-lo ao alcance e trazê-lo de
volta ao equilíbrio."
"Conheces a história do monge
que orava? Ergueu um braço para fazer com que a carruagem que se aproximava
parasse ,sem perceber que tal estava além do seu poder, tal era a elevada
opinião que tinha de si mesmo. Vigia e sê cuidadoso. Se ofenderes o Príncipe ao
ostentares os teus próprios talentos, estarás a cortejar o desastre."
"Sabes o que faz o domador de
tigres? Não se arrisca a alimentar os tigres com animais vivos, com receio de
lhes despertar a ferocidade, quando eles os matam. Não se arrisca a nutri-los
com carcaças inteiras, com medo de lhes despertar a raiva, quando as despedaçam.
Ele sabe quando os tigres se encontram famintos e saciados; por isso, acha-se
em contacto com a sua natureza feroz. A dos tigres é uma espécie diferente da
dos homens, no entanto, se observarmos o seu comportamento, poderemos
treiná-los na docilidade. Eles só matarão uma vez excitados."
"Um homem apaixonado por cavalos
recolhe o estrume num cesto e a urina num balde. Se um mosquito ou uma mosca
pousam num cavalo el os enxotar de forma demasiado rápida, o cavalo poderá perder o freio,
magoar o homem, e partir-lhe as costelas. Uma pessoa assim será dotada de boas
intenções, mas levá-las-á longe demais. Podes permitir-te ser descuidado?"
ALGUNS PARECEM INÚTEIS AOS OLHOS DOS
DEMAIS, E POR ESSE MEIO PERMANECEM, NOS PRÓPRIOS TERMOS INATOS
Shih, o carpinteiro encontrava-se a
caminho do Estado de Chi. Quando chegou a Chu Yuan, avistou um carvalho peto do
santuário da aldeia. A árvore era suficientemente grande para dar sombra a
muitos bois e tinha centenas de braços de copa. Assemelhava-se a uma torre
sobre a crista dos montes, com os ramos mais baixos a oitenta pés do chão.
Vários deles eram tão grandes que poderiam ser transformados em barcos.
Encontrava-se ali uma multidão de pessoas, como se fosse um mercado. O mestre
carpinteiro nem sequer voltou a cabeça e prosseguiu viagem sem se deter. O seu
aprendiz lançou um olhar demorado, e de pois correu atrás de Shih, o
carpinteiro, e disse: "Desde a hora em que peguei no meu machado e te
segui, mestre, nunca vira madeira tão bela como esta. mas tu nem sequer te
deste ao trabalho de a contemplar e prosseguiste sem parar. Porquê?"
Shih, o carpinteiro, respondeu:
"Pára! Não digas mais nada! Aquela árvore é inútil. Um barco feito dela
afundar-se-ia, um caixão rapidamente apodreceria, uma ferramenta racharia, uma
porta empenaria e uma viga ganharia caruncho. É madeira inútil aquela, e sem
préstimo. É por isso que alcançou idade tão avançada."
Após o regresso de Shih a casa, a
árvore sagrada apareceu-lhe num sonho, dizendo: "Com que é que estás tu a
comparar-me? Estás a comparar-me com árvores inúteis? Há cerejeiras, macieiras,
pereiras, laranjeiras, limoeiros e outras árvores de fruto. Assim que os frutos
amadurecem, as árvores são despidas e abusam delas. Os ramos maiores são cortados
e os menores esgaçados, e elas têm uma vida amarga por causa da sua utilidade.
É por isso que não vivem uma vida natural, e são cortadas na sua juventude.
Elas atraem a atenção das pessoas vulgares. O mesmo se passa com todas as
coisas. Quanto a mim, tenho vindo faz tempo a tentar ser inútil. Algumas vezes quase fui
destruída, mas finalmente sou inútil, e isso tem-me sido bastante útil. Se eu
tivesse sido útil teria crescido tanto?"
"Além disso, tu e eu somos ambos
coisas. Como poderá uma coisa julgar uma outra coisa? Que poderá um homem
inútil e moribundo quanto tu saber de uma árvore inútil?"
Shih, o carpinteiro, acordou e
procurou compreender o sonho que tivera. O aprendiz disse: "Se
ela tinha assim tanto desejo de ser inútil, como é que serve de
santuário?"
Shih, o carpinteiro, disse:
"Calma! deixa de falar! Ela está apenas a fingir ser alguém que não possa
ser ferido pelos que não sabem que ela é inútil Se não se tivesse tornado uma
árvore sagrada, provavelmente teria sido cortada. Ela protege-se a si própria
de maneira diferente da utilizada pelas coisas comuns. Nós não a
compreenderemos de uma forma comum."
DUAS FORMAS AFORTUNADAS DE PRESERVAR
ALGO VALIOSO: MANTER-SE AFASTADO OU DESAPRECIAR
Nan-po, mestre Ki, andava a vaguear
pelos montes Chang quando se deparou com uma extraordinária árvore enorme capaz
de dar abrigo a várias carruagens. Tze Chi disse:
“Que tipo de árvore será este? Deve
dar uma madeira muito especial. Todavia, ao olhar para cima viu os ramos
enrugados e retorcidos que não poderiam ser usados para barrotes nem para
vigas. Olhou para baixo e viu que o tronco estava cheio de nós, e que não
poderia ser usado para fazer caixões. Saboreou uma das suas folhas e ficou com
a boca a arder e a língua retalhada. O odor que exalava deixou-o intoxicado e
inebriado durante três dias.
Tze Chi disse:
“Na verdade, esta árvore não serve
para coisa nenhuma. Não é de admirar que tenha atingido tal tamanho. É assim
mesmo! Esse é o tipo de inutilidade que os sábios privilegiam.
Ching Shih, na província de Sung, é
um local excelente para o cultivo da catalpa, do cipreste e da amoreira. As que
atingem sete ou oito palmos são cortadas para fazer pranchas laterais para os
caixões das famílias aristocratas e dos mercadores ricos.
As que atingem os três ou quatro
palmos são cortadas pelos que precisam de vigas para as suas casas sumptuosas e
afamadas. As que não atingem mais do que um palmo são cortadas para fazer
postes para quem quer amarrar o macaco. Assim, as árvores nunca chegam a
atingir a sua estatura completa e têm um fim prematuro a meio do seu crescimento.
Esse é o risco implícito à utilidade.
Da mesma maneira, as escrituras
especificam que os bois de testa alva, os porcos de focinho arrebitado e os
homens que padecem de hemorróidas não podem ser sacrificados ao deus do rio. Os
feiticeiros identificam-nos por essas especificidades e consideram que trazem
má sorte. Contudo, os sábios, acreditam que eles sejam afortunados.
DEFORMADO, CONTUDO CAPAZ DE SE
SUSTENTAR
Existiu outrora um corcunda chamado
Shu. O queixo dele parecia repousar sobre o umbigo, os ombros erguiam-se-lhe
acima da cabeça e a espinha apontava para o alto. As suas vísceras
encontravam-se comprimidas na região superior do corpo e as ancas mais pareciam
costelas. Afinando agulhas e lavando roupas lá conseguia ganhar o sustento.
Joeirando e peneirando arroz, ele conseguia sustentar dez pessoas.
Quando as autoridades recrutavam
soldados, esse pobre Shu podia mostrar-se por entre as gentes; sempre que havia
alguma grande empreitada em curso, nenhum trabalho lhe era atribuído devido à
invalidez em que se encontrava. Quando o governo distribuía trigo aos doentes,
ele recebia três medidas e dez feixes de lenha para queimar. Se tal homem tão
deformado de corpo era capaz de se sustentar e de viver até ao fim dos seus
dias, quanto mais não o conseguirá os que apresentam deformação nas faculdades!
O PERIGO DA PUBLICIDADE EM DEMASIA E
A VANTAGEM DA INUTILIDADE
Quando Confúcio foi ao estado de Chu,
o louco de Chu – Chieh You – encontrava-se ao portão quando o mestre passou e
disse:
“Oh fénix, oh fénix, como a tua
virtude se degenerou! Não se pode ficar á espera do futuro; não adianta correr
atrás do passado. Quando todo o mundo atinge o Tao (ordem natural), o sábio
alcança a perfeição. Quando a desordem prevalece, ele poderá preservar a sua
vida, mas desperdiçará o seu tempo. Em tempos assim, o melhor que há a fazer é
manter-se à distância das complicações. A felicidade é mais leve do que uma
pena, mas ninguém consegue suportá-la. A calamidade pesa mais do que a terra,
mas ainda assim ninguém sabe como evitá-la. Desisti! Desisti de abordar os
homens com as vossas lições de virtude! Coreis perigo! Tomai cuidado para não
demorardes onde tiverdes marcado o terreno contra o vosso avanço!
Eu evito a publicidade para que a
minha senda não se veja prejudicada. Prossigo no meu curso, ora dando um passo
atrás, ora de uma forma deformada, evitando os meus pés.
As montanhas vêem-se enfraquecidas
por causa das árvores. A gordura que é adicionada ao fogo consome-se a ela
própria. A árvore da laca é útil por causa da resina que dá; razão por que lhe
fazem cortes. Todos sabem da vantagem de ser útil, mas ninguém conhece a
vantagem de ser inútil.
Obras de Referência:
The Complete Chuang Tzu – James Legge
The
Book of Chuang Tzu de Martin Palmer e Elizabeth Breuilly
The
Complete Works of Chuang Tzu- Burton Watson
Fonte:http://textosdemetafisica.blogspot.com.br/2014/04/o-livro-de-chuang-tzu.html

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