O LIVRO URBANO DA GENTILEZA

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O LIVRO URBANO DE GENTILEZA

O profeta Gentileza perambulou pelas ruas do Rio de Janeiro por 35 anos. Ficou conhecido por suas mensagens e deixou sua marca em 56 pilastras do Viaduto do Caju, num grande livro urbano que clama por paz, amor, e é claro, gentileza.

Barba longa, estandarte e túnica branca: ele era paulista, mas foi nas ruas do Rio de Janeiro que José Datrino virou figura conhecida. Até os anos 1960 era gente comum, trabalhador, casado e pai de cinco filhos. Mas a história do Gran Circus Norte Americano o impulsionaria a virar profeta, pregador e por que não dizer, artista e poeta.
Em dezembro de 1961, o Gran Circus chegava na cidade de Niterói, prometendo apresentações memoráveis. Era uma sensação: crianças ou adultos, todo mundo queria ver o circo. Mas antes de completar seus dez espetáculos suas lonas de nylon coloridas arderam em chamas, num incêndio criminoso. Contabilizaram mais de 500 mortos. A notícia ganhou as páginas de todos os jornais brasileiros, e o episódio ficou conhecido como a maior tragédia circense do mundo.
Cartaz do Gran Circus Norte Americano. Dezembro, 1961.
Alguns dias depois do ocorrido, José Datrino teve uma visão, abandonou tudo o que tinha e se encaminhou para o local do incêndio. Começaria aí a dedicar a vida à pregar bondade, respeito e agradecimento: nascia o Profeta Gentileza.
Sobre as cinzas do circo fez um jardim de flores e hortaliças, e permaneceu trabalhando no que ficou conhecido como “Paraíso Gentileza” por quatro anos. Durante esse tempo, Gentileza levou consolo aos familiares dos mortos e a quem por ali passava, cultuando e disseminando palavras como Gentileza e Agradecido, em contraposição à Favor e Obrigado.
A partir da década de 1970 era visto pelas ruas e grandes avenidas, nas barcas que ligam o Rio de Janeiro à cidade de Niterói, nas praças, nos ônibus e trens, pregando suas mensagens. Ele era inconfundível: virou lenda viva urbana. Alguns dizem que o profeta era um anjo na Terra, já outros que pregava gentileza, mas era desbocado e agressivo com os transeuntes.
Apesar de muito conhecido em terras cariocas, Gentileza também peregrinou o país. Arrastava multidões, arrancava reações variadas do público e virava notícia de jornal. jornal.jpg
Muita gente o achava louco. Aliás, se chamado de maluco, respondia prontamente: “Sou maluco pra te amar e louco pra te salvar”. “Pinel” ou não, o fato é que o Profeta Gentileza deixou um verdadeiro “livro urbano”: os murais do Viaduto do Caju. Com caligrafia peculiar, começaram a ser pintados na década de 1980, em 56 “pilastras - páginas”. Dos viadutos cinzas em concreto, surgiram sua arte, sua obra, sua marca: seus inscritos verde-amarelos. Os murais retratam sua visão de mundo, suas críticas à sociedade e ao capitalismo (segundo ele, “capeta-lismo”) e sua proposta de ser: gentil.
“Concluída a obra, o alcance da sua inscrição territorial sobre a cidade, torna-se impressionante. Como slides diurnos, seus escritos passam a constituir a maior manifestação de arte mural pública de caráter espontâneo no Rio de Janeiro. Sua nova atitude - de escriba da cidade - reaviva sua figura lendária e mitológica.” (Leonardo Guelman em “Brasil Tempo de Gentileza”)
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Gentileza morreu em 1996, e depois disso seus murais foram intensamente modificados: pichados, cobertos parcialmente de tinta, desbotados. A cantora e compositora Marisa Monte gravou uma música em homenagem à Gentileza, onde fala da decadência das pinturas do profeta:
Apagaram tudo Pintaram tudo de cinza A palavra no muro Ficou coberta de tinta (Marisa Monte)
profeta3.jpegHavia então um apelo pela recuperação de suas obras. E não só de artistas como Marisa Monte, já que Gentileza também virou objeto de estudos universitários. Sob orientação de Leonardo Guelman, sua história e percurso foram resgatados, e os murais estudados e restaurados, com ajuda da prefeitura do Rio de Janeiro, que por sua vez o tombou como Patrimônio Cultural. Nasceu aí o Projeto Rio com Gentileza.
Este movimento deu grande projeção às mensagens de Gentileza na mídia. “Gentileza gera Gentileza”, frase-chave do profeta, começou a estampar produtos, virou febre, moda. Pobre profeta, não teria gostado... para sua intervenção na cidade ser reavivada e sua mensagem amplamente disseminada, virou ele próprio um produto, em mais uma contradição do tal “Capeta-lismo”.

Por Anabê

Fonte:
© obvious: http://lounge.obviousmag.org/universos/2012/04/o-livro-urbano-de-gentileza.html#ixzz3Gie0M8YM
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