Ouvimos dizer, e às vezes repetimos um pouco sem pensar, que há muitas “formas” de Yoga: Jñāna Yoga, Karma Yoga, Haṭha Yoga, Rāja Yoga, etc. Assim, o Yoga do Conhecimento seria adequado para pessoas com uma disposição natural para o estudo, enquanto que o Yoga da Ação seria conveniente para pessoas pragmáticas, o Yoga “físico” estaria indicado para pessoas inquietas enquanto que o Yoga “real” seria para gente mais introspectiva, etc.
Esta maneira de classificar e listar “métodos” é abritrária e equivocada. Não obstante, está muito presente na literatura atual de Yoga. Em verdade, não existen métodos diferentes, mas etapas distintas dentro de um único caminho, que é o processo de crescimento de cada ser humano. Assim, os assim chamados “métodos” são apenas momentos ou fases dentro desse processo maior que podemos chamar vida de Yoga. Somente existe um Yoga. A esse respeito, diz o Ṛg Veda:
“Ó homem que procuras a verdade e a sabedoria,
abre os braços e deixa que o conhecimento
chegue a ti de todas as partes. A verdade é uma e
os sábios irão ensiná-la de diferentes maneiras”.
abre os braços e deixa que o conhecimento
chegue a ti de todas as partes. A verdade é uma e
os sábios irão ensiná-la de diferentes maneiras”.
Por exemplo, na Haṭha Yoga Pradīpikā um guia clássico para a prática do Haṭha Yoga de aproximadamente 500 anos atrás, não fica clara a fronteira, se existe uma, entre Haṭha e Rāja Yoga, embora o texto inicie afirmando que o primeiro, “como uma escada”, nos conduz ao segundo. No entanto, da leitura atenta desse guia, é evidente que ambos, Haṭha e Rāja, são parte do mesmo processo.
Por outro lado, os aparentemente distintos métodos descritos naBhagavadgītā, Jñāna, Karma e Bhakti Yoga, são em verdade etapas dentro do caminho único. O conhecimento me ajuda a ver as coisas como são, o Yoga da Ação a agir cultivando as atitudes adequadas e o Yoga devocional a lidar de maneira ideal com os frutos das ações, dedicando-os a Īśvara.
Nessa ordem de coisas há uma forma de Yoga que ocupa um lugar especial: o Bhakti Yoga, ou Yoga devocional. Este é, claramente, um dos aspectos menos compreendidos e que mais produz distorções no Yoga, já que é o ponto no qual, aparentemente, o Yoga mais se aproxima das religiões. Essa proximidade dá lugar a maneiras diferentes de olhar para essa peculiar relação que é a relação Yoga-religião.
Aversão a Deus.
Nasci numa família em que nunca ouve instrução religiosa de nenhum tipo e, desde a infância, olhei com muita desconfiança para as religiões. Quando criança, tinha pânico de monjas e nunca consegui entrar numa igreja, tamanho o pavor que esses lugares me provocavam. Lembro também que havia em casa dos meus pais uma Bíblia com ilustrações do gravador francês Gustav Doré mostrando o suplício dos pecadores no inferno que só faziam aumentar minha desconfiança, medo e aversão.
Em direção à educação “espiritual”, o mais longe que os meus pais ousavam ir, era no sentido de nos inculcar valores humanos, como o senso de justiça, a decência e a honestidade. Assim, quando nas minhas primeiras leituras sobre Yoga, no fim da adolescência, soube que o Yoga continha uma dimensão ou um aspecto devocional e imediatamente, aquele velho condicionamento e aquela velha desconfiança, me fizeram ficar na defensiva em relação aobhakti. Eu era um “humanista laico” e não ia admitir de mim mesmo uma atitude de fraqueza ou humilhação que me colocasse de joelhos perante um altar.
Meu bom-senso não conseguia aceitar a veneração cega ou a simples ideia de ter fé em algo que não estava vendo à minha frente. Continuei praticando apoiado na ideia de que outras leituras ou versões do Yoga não exigiam essa fé cega e ao mesmo tempo solicitavam um grande esforço pessoal, tanto no plano físico como no mental.
As formas “técnicas” de Haṭha Yoga foram o maior incentivo para a continuidade das minhas práticas naqueles anos. Se não houvesse essa possibilidade de abordagem através do esforço pessoal, provavelmente eu teria desistido do Yoga, pois meu intelecto simplesmente não aceitava a ideia de Deus, explicada da forma que fosse.
Na época achava que quem aceitasse a existência de Deus sem a apresentação das provas necesárias, que aliás, nunca apareciam, seria necessariamente alguém irracional e fraco de espírito. Meu divertimento era provocar os missionários que encontrava na rua esgrimindo a Teoria da Evolução de Darwin e passava bons momentos rindo das explanações que eles davam para tentar rebater o darwinismo. Fazia o mesmo em encontros com devotos do movimento Hare Kṛṣṇa.
Porém, agora que penso, vejo que, por trás daquela minha atitude debochada e irônica, havia muita curiosidade e atração, e outro tanto de insatisfação em relação ao que essas pessoas tinham para dizer sobre devoção às formas divinas, independentemente dos nomes que tivesem.
Com os anos de prática, fui aos poucos começando a apreciar os arquétipos chamados devas, ou deuses hindus, que preferia ver como representações simbólicas dos inúmeros aspectos Daquele que é Uno, a quem me contentava com chamar, no melhor dos casos, o Absoluto. Com isso, comecei a cantar mantras, mas sempre mantendo aquela velha atitude de rigidez em relação à ideia do divino, bem como em relação ao criacionismo, a teoria que busca explanações diferentes daquelas dadas pela ciência para explicar a criação do cosmos e a existência humana.
Bhakti para desconfiados.
A ruptura desse desconforto sobreveio na minha primeira visita ao Swāmi Dayānanda Āśram, em Rishikesh, Índia, há mais de 10 anos. Lá, ao mesmo tempo em que senti totalmente saciada a minha sede de conhecimento, respondidas satisfatoriamente minhas perguntas e dúvidas em relação ao Yoga e ao papel das práticas, percebi que os estudantes participavam com muito entusiasmo e a mesma atitude confiante das atividades no pequeno templo de Gaṅgādareśvara, a forma de Śiva como aquele que sustenta o Ganges, que fica exatamente frente ao rio.
Abhiśekam, a aspersão de água benta no ídolo de pedra negra, pūjā, a adoração com água, fogo e outros elementos, e a recitação de stotramsfaziam parte do cotidiano do lindo templo. Essas práticas deixavam meu coração bem leve, mas ao mesmo tempo ficava com a pulga atrás da orelha e a sensação de que estava “fazendo concessões” à fé cega que tanto abominava.
Numa visita que fiz ao Āśram um tempo depois, Swāmijī explicou a maneira em que funciona o processo da devoção e, a partir daí, tudo ficou mais claro e aquela incômoda pulga desapareceu para sempre. Baseado na lembrança dessa instrução, vou tentar colocar esse aspecto do ensinamento no papel, já que ele permanece frequentemente bastante obscuro e, quem sabe, este texto possa ajudar outras pessoas que estejam passando por uma situação similar.
Para tanto, achei que seria uma boa ideia usar um mahāvākyam, uma das grandes afirmações da visão védica, oriunda da Kena Upaniṣad, um breve texto de 25 frases que está associado ao Sāma Veda. Mas, antes disso, pensemos um pouco na veneração nos tempos modernos, já que o bhakti está presente na sociedade de consumo, de uma maneira muito insidiosa e dissimulada. Ainda, antes de entrar no tema, teremos que fazer algumas explicações necessárias sobre a diferença entre a consciência e o conhecedor.
Que deuses veneramos?
É impossível não venerar. Na sociedade atual todo o mundo venera alguma coisa. Pessoas veneram dinheiro, poder, beleza, inteligência. Pessoas veneram griffes, bens de consumo, ídolos da música, dos esportes ou do cinema. Pessoas veneram times de futebol, bandeiras ou partidos políticos. Aquele que venera o dinheiro fica sempre com a sensação de que não tem o suficiente. Desse sentimento de carência surge a vontade de acumular cada vez mais, num processo que pode se tornar doentio.
Quem venera a beleza irá se achar sempre feio ou imperfeito, e nunca terá sossego. O sofrimento dele é mais que garantido, principalmente quando os primeiros sinais de velhice começam a aparecer. Aquele que adora o poder será sempre um escravo dele, e irá sempre sentir-se fraco, por achar que não tem suficiente, ou por perceber que há (ou houve no passado) pessoas com mais poder.
Quem venera a inteligência irá sempre se achar burro no fundo, e tentará esconder essa burrice dos demais usando um discurso erudito ou desnecessariamente complexo para dizer coisas simples. Assim, podemos dizer que a sociedade de consumo está baseada na veneração desse tipo de objeto, que parece haver substituído os símbolos e arquétipos usados antigamente pelas religiões.
O problema destas formas de adoração da sociedade moderna não é a adoração em si, nem está nos objetos dessa adoração, mas no fato de que elas são sempre inconscientes. Quem adora, não sabe ou não admite que adora, e tenta mostrar aquilo que deseja ou tem como algo natural ou necessário. Porém, acontece que o devoto desses objetos gravita em direção a eles de maneira totalmente inconsciente, e aqui reside a insidia que mencionamos acima: esses objetos se tornam agentes de domínio tirânico sobre a pessoa, e garantia certa de infelicidade.
Portanto, se o ato de venerar é não apenas natural, mas intrínseco ao ser humano, é necessário escolher bem os deuses que serão objeto da nossa adoração. Quais são esses deuses, então?
Consciência, conhecedor e conhecido.
Mudando um pouco de assunto, precisamos agora pontualizar algumas questões em relação ao status do conhecedor e o daquilo que é conhecido para melhor compreendermos a relação entre o devoto e o objeto da devoção. Digamos que eu esteja tendo uma percepção visual e fecho os olhos. Não deixo de existir por isso, embora o conhecedor que eu sou deixe de usar momentaneamente o instrumento de conhecimento que é o olhar.
Ao fechar os olhos, não me torno não-existente. Continuo sendo, embora com os sentidos suspensos. Deixo de lado a capacidade de conhecer, mas continuo existindo como consciência. Esse “continuo existindo enquanto consciência” é o que chamamos de conhecimento, ou princípio conhecedor.
É por isso que dizemos que não há diferença entre Brahman e Brahmavidyā, entre o Ser e o conhecimento do Ser. Assim, o pramātā, o conhecedor, em sua natureza original, é a Pura Consciência. Agora, repare que o conhecedor desfruta do seu estado de conhecedor, apenas quando há um objeto para ser conhecido.
Vejamos isto com um exemplo: um professor só é professor quando tem alunos que queiram fazer aula com ele. Enquanto ele está dando a aula, ele é o professor. Quando os alunos vão embora, ele continua existindo enquanto pessoa mas sem o status de professor. O professor só existe pela graça dos seus alunos. Sem alunos não há professor. Quando os estudantes deixam a sala, o professor continua existindo, desprovido da sua função de ensinar.
Similarmente, Ātma tem dois status diferentes, um natual e um circunstancial:
1) o status intrínseco a Ātma é chamado chit, consciência,
2) o status incidental de Ātma é chamado pramātā, conhecedor.
Ātma é consciência, e “desfruta” do status do conhecedor através das experiências. É por isso que todas as experiências são experiências de Ātma: acordado ou sonhando eu sou o conhecedor. Dormindo, sou a consciência, pois não estou tendo experiências ou pensamentos de nenhum tipo.
É para isto que aponta o mahāvākyam da Kena Upaniṣad que mencionamos anteriormente e que se repete nos últimos cinco mantras do primeiro capítulo desta obra. Ela diz tad eva brahma tvaṁ viddhi nedaṁ yad idam upāsate: “Você é este Brahman, e não aquele que as pessoas veneram”.
Para melhor compreendermos este mahāvākyam, precisariamos, seguindo a sugestão de Swāmi Dayānanda, fazer uma pequena reconstituição de texto ao traduzir este verso, acrescentando três palavras no final: “Você é este Brahman, e não aquele que as pessoas veneram [como um objeto]”. Agora, como se vincula a afirmação inicial deste mahāvākyam, “Você é este Brahman” com a porção final do mantra, “e não aquele que as pessoas veneram”?
Brahman não pode ser venerado.
Qual é a diferença entre uma vítima do consumo que adora griffes e um devoto ajoelhado frente ao altar? Essencialmente, depende da atitude de cada um. A priori, se a atitude for a mesma, não há diferença entre o fashion victim e o devoto cego: ambos se prostram perante seus objetos de desejo; ambos buscam se completar ou acabar com a sensação de vazio ficando próximos do objeto escolhido.
A veneração de alguma das múltiplas formas de Brahman como um objeto é tão equivocada como possa ser a tentativa de conhecer Brahman como um objeto. Brahman é o sujeito que observa e, portanto, não poderá nunca ser um objeto observado. Assim, Śiva não é um objeto, Sarasvatī não é um objeto, Gaṇeśa não é um objeto. Quando você faz uma prostração frente a um altar, você não está reverenciando nada diferente daquilo que você é.
Bhakti dual, bhakti não-dual.
O devoto adora seus deuses, mas qual é o lugar que ocupam esses deuses na prática de Yoga? Noutras palavras, quem é “aquele que as pessoas veneram”? Por que fazemos pūjās para Kṛṣṇa, Gaṇeśa, Sarasvatī? Como interpretar essaspūjās à luz da Upaniṣad? Rāma, Śiva, Lakṣmī, são Brahman ou não? Depende de como você interpretar estes nāmarūpas, estes nomes e formas.
Quando você se refere a Rāma, por exemplo, você se refere à mūrti, à escultura que está vendo à sua frente, a um objeto do seu conhecimento ou ao princípio da Pura Consciência? Rāma não é um objeto que você adora. Senão, ele seria apenas o objeto de uma experiência, um prameya, portanto.
Assim, o Rāma que você experiencia não é Brahman. O Kṛṣṇa que você experiencia não é Brahman. O Gaṇeśa que você experiencia não é Brahman. Seja o que for que você tenha adorado, esse objeto da sua adoração, seja qual for, não é Brahman. Em todos os casos, esse objeto é um prameya, algo conhecido, e não o pramātā, o conhecedor, que é a realidade última.
Então, por que existem esses devattās? Os devas tem a função de nos indicar Brahman. Eles são lakṣaṇas, são indicadores para Brahman, como as placas de uma estrada. A placa não é o lugar onde você quer chegar, mas indica a direção na qual esse lugar se encontra. As escadas não são o andar de cima da casa, mas sem elas você não chega lá. Você não pode dispensar as escadas para chegar no andar superior, assim como não deve dispensar as placas na estada que lhe indicam o caminho.
Então, essa adoração que chamamos Bhakti Yoga tem a função de nos preparar para a compreensão de Brahman. Sem os devas, que são mithyāḥ, portanto, não chegamos em satya, no real. Kṛṣṇa, Śiva, Sarasvatī, só serão realmente adorados e compreendidos quando conhecidos como o Eu, como opramātā que possibilita os prameyas, o conhecedor que possibilita as cognições.
Assim, no estágio inicial, Gaṇeśa, Śiva, Lakṣmī, são objetos do nosso conhecimento. No estágio final, eles são o sujeito que conhece. No estágio inicial, o bhakti é conhecido como dvaitabhakti, devoção dual (eu ≠ ele). No final, o bhakti é conhecido como advaitabhakti, devoção não-dual (eu = ele).
Somente no advaita bhakti Īśvara é real. Nas outras formas preliminares, Īśvara é mithyāḥ, é falso, sem importar o quão impressionantes possam ser seus darśanas, suas visões ou êxtases meditativos. Essas visões não tem nada a ver com a Realidade de Brahman.
A realidade é Brahman e a verdade é que Brahman não pode ser visto. Assim, você pode tirar seu cavalinho da chuva em relação a buscar uma experiência de Brahman. Para bem e para mal, você já é esse Brahman que possa estar buscando nas experiências, sejam sagradas, sejam profanas. Você não pode negar isso, mesmo que queira, pois essa é a sua natureza real. Boas práticas. Bom bhakti para você. Namaste!
Por Pedro Kupfer
Fonte:http://www.yoga.pro.br/artigos/1071/3033/
compreendendo-o-bhakti-yoga
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