FRIDA KAHLO : A PINTURA COMO PROCESSO DE BUSCA DE SI MESMO


Frida Kahlo: a pintura como processo 
de busca de si mesmo1



Frida Kahlo: la pintura como proceso de búsqueda de sí misma

Frida Kahlo: the painting as a process of searching herself

Gina Khafif Levinzon2
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo




RESUMO
A partir do estudo da vida e da obra da pintora Frida Kahlo, este trabalho propõe reflexões sobre a natureza das forças que impeliam a artista a retratar seus estados emocionais de forma pungente. As falhas na maternagem e suas consequências são examinadas na relação que Frida tinha com seu corpo, seus relacionamentos afetivos e sua feminilidade.
Seus autorretratos criavam uma função especular restituidora, e sua arte denotava um intenso processo de busca de integração e de encontro consigo mesma.

Palavras-chave: Frida Kahlo; A arte como cura; Compulsão; Espelho.

RESUMEN
A partir del estudio de la vida y obra de la pintora Frida Kahlo, este trabajo propone reflexiones sobre la naturaleza de las fuerzas que la estimulaban a la artista a retratar sus estados emocionales de manera punzante.
Las fallas en maternagem y sus consecuencias son examinadas en la relación que Frida tenía con su cuerpo, sus relaciones afectivas y su feminidad. Sus autorretratos creaban una función especular restituidora, y su arte denotaba un intenso proceso de búsqueda de integración y de encuentro con ella misma.

Palabras clave: Frida Kahlo; El arte como cura; Compulsión; Espejo.

ABSTRACT
This paper is based on the study of Frida Kahlo´s life and work, and it takes into consideration the nature of the strengths that impelled the artist to depict her emotional inner states in a touching form. The failure in her maternal supply and its consequences are discussed considering Frida’s connection with her body, her relationships and her femininity. Her self-portraits created a mirror´s repairing function, and her art showed a strong process of searching integration and contact with herself.
Keywords: Frida Kahlo; The art as a cure process; Compulsion; Mirror.



As criações artísticas representam formas privilegiadas de expressão do interior humano, com seus diversos tons e matizes emocionais. Permitem-nos refletir sobre as emoções e nuanças que são comunicadas pelo seu autor, ao mesmo tempo em que nos intrigam e nos inspiram.
A obra de Frida Kahlo, viva, pungente, às vezes chocante, nos convida para o estudo das forças que impelem a artista em direção a um objetivo permanentemente perseguido: o encontro consigo mesma. Compulsão, sublimação, criação? Será possível identificar o que está por trás de pinturas, especialmente autorretratos, que insistem em expor um mundo cheio de dor, feridas e depressão, e ao mesmo tempo denotam esperança e inspiração, e em alguns momentos até irreverência? Este trabalho tem como objetivo fazer conjecturas a respeito dessas questões, baseando-se na análise de dados de sua vida e de sua obra, considerados similares às associações livres produzidas dentro do processo psicanalítico.

A história de Frida

Frida Kahlo nasceu em 6 de julho de 1907, em Coyoacán, México. Era a terceira filha do segundo casamento de um imigrante alemão judeu e de uma mãe mestiça mexicana católica devota. Sua mãe, Matilde, ainda estava em processo de luto pela morte de seu único filho homem, falecido ao nascer. Não pôde dar o peito à filha por ter ficado doente em seguida ao parto, e entregou-a aos cuidados de uma ama-de-leite índia, o que era uma prática comum no México. Há evidências de que Matilde sofreu de depressão pós-parto, e de que essa condição depressiva foi aumentada em função de sua nova gravidez, dois meses depois do nascimento de Frida. A chegada precoce de uma irmã, uma rival na atenção e afeto da mãe, parece ter alimentado a convicção em Frida de não ser amada e de ter sido abandonada pela mãe (Dosamantes-Beaudry, 2007).
A relação de Frida com a mãe parecia ser depressiva e inadequada. Sua profunda sensação de estar só na sua presença está documentada no quadro Meu nascimento (fig. 1)3. A pintura é um retrato vívido de sua sensação de abandono materno. Na cama, a mãe morta, com o rosto totalmente coberto por um lençol dá à luz um bebê. Sobre a cama, na parede, está o retrato da Virgem dos Lamentos em prantos. Frida parece estar nascendo por si só, lutando pela sua sobrevivência, sem poder contar com a presença viva da mãe. Ao comentar este quadro, a artista afirmou que esta era a forma como imaginou seu nascimento, o que sugere que seu profundo sentimento de desamparo e solidão começou muito precocemente em sua vida.
O quadro: Minha ama e eu (fig. 2) retrata um grau similar de distanciamento entre a cuidadora e o bebê. A falta de vinculação emocional entre a ama-de-leite índia e a criança é evidente. Em contraste com a clássica imagem de um bebê e de uma mãe, que expressaria carinho e intimidade, este quadro mostra o oposto. Não há contato de olho entre a babá e Frida, nem um sentimento de apego. A face da babá está coberta por uma máscara, o leite cai sobre os lábios do bebê, mas este não o suga e parece absorto em si mesmo. Pode-se ver claramente o sentimento de inadequação nos primeiros cuidados, que se inscreveram nas principais estruturas de sua personalidade.
Os quadros sugerem que houve uma falha na função da mãe de Frida como “escudo protetor”, ocasionando o que Masud Khan (1963/1974) considerou “trauma cumulativo”. O luto mal elaborado da mãe pelo irmão morto, o desencontro entre mãe e filha nas etapas iniciais primordiais do desenvolvimento da criança, o nascimento precoce da irmã, funcionaram como traumas cumulativos, aos quais se somaram outros que foram amplificando estas fendas primordiais.
O pai de Frida, Guilherme Kahlo, teve uma profunda influência em sua vida e no desenvolvimento de suas aptidões artísticas. Era fotógrafo, epiléptico, e compartilhava com ela seu hobby, a pintura. Sua presença em sua vida possibilitou-lhe introjetar um objeto bom, acolhedor, um interlocutor que era buscado nas telas e nas tintas com que expressava seus sentimentos.


Um corpo engessado: a imaginação e a pintura como janelas da psique

Uma experiência que marcou Frida Kahlo foi a poliomielite que sofreu aos seis anos de idade. Padeceu com a doença e com o intensivo tratamento de reabilitação que teve que realizar. Nessa época, Frida criou um duplo imaginário de si mesma, uma menina alegre com quem adorava dançar, como um meio de lidar com os intensos sentimentos de vazio e solidão. Recorria, dessa forma, à imagem de um corpo intacto que a tranquilizava quanto ao medo de não voltar a andar ou ainda quanto ao medo de morrer.
No seu diário, Frida descreve essa experiência:
Eu devia ter 6 anos quando vivi intensamente a amizade imaginária com uma menina mais ou menos da mesma idade. Na janela daquele que era então meu quarto, e que dava para a rua Allende, sobre um dos primeiros vidros da janela. E com um dedo eu desenhei uma “porta” (…) Por essa “porta” eu saía na minha imaginação com uma grande alegria e urgência. Atravessava todo o campo que se via até chegar a uma leiteria que se chamava PINZÓN (…) Pelo “O” em PINZÓN eu entrava e descia intempestivamente ao interior da terra, onde minha amiga imaginária “me esperava sempre”. Não me lembro de sua imagem e nem de sua cor. Mas sei que era alegre. Ela ria muito. Sem sons. Era ágil e dançava como se não tivesse peso algum. Eu a seguia em todos os seus movimentos e enquanto ela dançava eu lhe contava meus problemas secretos. Quais? Não me lembro. Mas ela sabia pela minha voz todas as minhas coisas (…) Quando eu voltava para a janela entrava pela mesma porta desenhada no vidro. Quando? Por quanto tempo ficava com ela? Não sei. Podia ter sido um segundo ou milhares de anos (…) Eu era feliz. Apagava a “porta” com a mão e “desaparecia”. Corria com meu “segredo” e minha alegria até o último canto do pátio de minha casa, e sempre no mesmo lugar, debaixo de um cedro, gritava e ria assombrada de estar só com minha grande felicidade e a lembrança tão viva damenina. Passaram-se 34 anos desde que vivi essa amizade mágica e cada vez que a recordo ela se aviva e cresce mais e mais dentro de meu mundo. PINZÓN 1950. (Kahlo, 2005, p. 82)
Esse depoimento emocionante mostra como Frida sonhava com o encontro de um interlocutor vivo, criativo, com quem pudesse compartilhar suas fantasias, suas dores, seus medos e anseios. Era a parte de si mesma que a ajudaria a sobreviver a um momento de angústia, medo e solidão. Se tivesse podido contar mais profundamente com a presença materna, este personagem seria a mãe viva e continente, diferentemente da mãe morta presente nos seus quadros sobre nascimento e amamentação. É interessante observar que se imaginava “contando seus segredos”, como se estivesse instaurando um processo de autoanálise, “criando um divã para si própria”…
Aos 18 anos, Frida sofreu um acidente: o bonde no qual estava colidiu com um trem. Ela sofreu muitos ferimentos graves, que lhe deixaram sequelas por toda a vida e foi obrigada a permanecer na cama, imobilizada por mais de três meses. Para “vencer o tédio”, começou a desenhar. A cama foi coberta por um dossel onde foi fixado um espelho que permitia a Frida se ver e, desta maneira, tornar-se seu próprio modelo. Ela começou então a longa série de autorretratos, que constituem a parte mais significativa e impressionante de sua obra.

Diego Rivera: paixão e sofrimento

O casamento de Frida com Diego Rivera, pintor mexicano vinte anos mais velho que ela, foi marcado por muita paixão assim como por constantes sentimentos de traição e abandono. Frida e Diego tinham muito em comum: o amor pela pintura, os ideais mexicanistas e comunistas, a curiosidade e o interesse pela vida. Seu relacionamento, no entanto, foi marcado pela infidelidade constante de Diego, que chegou inclusive a ter um caso com a irmã mais nova de Frida. No quadro O coração partido (fig. 3), Frida retrata um enorme coração partido aos seus pés, simbolizando a intensidade de sua dor pelo romance do marido com a irmã. A falta de mãos expressa seus sentimentos de incapacidade e desespero.
O casamento de Frida e Diego era uma sucessão de aproximações e separações, momentos de grande ternura e de intensa dor, raiva, dependência, construção e destruição. Até o final de sua vida, Frida o amou com obsessão, e sofreu com igual magnitude. Assim como o marido, Frida também teve relacionamentos extraconjugais, com homens e mulheres. Diego, no entanto, era o pivô de sua existência, seu ponto de referência. A maioria de seus quadros retrata o que sentia por ele, especialmente seu lugar central em sua mente (fig. 4, 5, 6, 7).
Em seu diário, Frida escreve tudo o que ele representa para ela: “princípio, construtor, minha criança, meu namorado, pintor, amante, “meu marido”, minha mãe, meu pai, meu filho, = a mim, Universo diversidade na unidade” (Kahlo, 2005, p. 60). Ao mesmo tempo, há um grande lamento: “DIEGO, estou só” (p. 79), ou ainda um momento de dura reflexão: “Porque eu o chamo meu Diego? Ele nunca foi ou será meu. Ele pertence a ele mesmo” (p. 61).
De que natureza era a força motivadora que impelia Frida em direção a Diego, apesar de tanto sofrimento na relação? Estados de paixão são inerentes à vida humana, e são expressos em verso e prosa pelos poetas, artistas, cantores. Representam o combustível vivo que preenche as pessoas. Frida parecia buscar desesperadamente em Diego algo que lhe era imprescindível, e que ela constantemente sentia lhe escapar.
Bollas (1992) se refere ao primeiro objeto materno como um objeto transformacional, o qual é identificado pelo bebê como o processo da alteração da experiência do self. Esta identificação surge de um modo de relação simbiótico, por meio do qual a mãe ajuda a integrar o ser do bebê, do ponto de vista instintivo, cognitivo, afetivo, ambiental. Certas formas de procura de objeto na vida adulta visam encontrar esse processo de transformação dos primeiros tempos de vida, experimentado no contato com a mãe. Podemos imaginar que Frida buscava em Diego estas qualidades transformadoras de si mesma, e o que se repetia inexoravelmente era o fracasso desta procura. A mãe inacessível, que ela procurava alcançar, era identificada em Diego, que parecia a sereia encantadora que escorregava e desaparecia a cada momento. A cada separação, Frida se deprimia severamente, e recorria ao álcool de forma excessiva. Os pensamentos sobre suicídio também eram recorrentes, e apareciam em várias de suas pinturas (fig. 8). Eles retratavam seu desespero diante da decepção que a assolava…




Dores físicas e psíquicas

A experiência da dor caracterizou de modo marcante a vida e a obra de Frida Kahlo. Desde o acidente com o ônibus, ela passou por 39 cirurgias para corrigir sua coluna e sua perna direita. Muitas dessas operações eram voluntárias, e parecem ter coincidido com a época na qual Diego estava com outras mulheres. Em quase todas suas pinturas há referências às dores, físicas e psíquicas. São traços de sangue, flechas que indicam os lugares de dor, cicatrizes, lágrimas, pedaços de si mesma soltos, o rosto absorto na dor (fig. 9, 10).
As cirurgias, que ocorriam principalmente em épocas em que estava afastada de Diego, representavam um grito por atenção, e aliviavam seus sentimentos de desconexão. Um de seus médicos afirmou que sua saúde dependia de seus sentimentos por seu marido. Ao se sentir abandonada por ele ou na sua ausência, as crises ocorriam. Quando ele voltava a estar ao seu lado, ela se recuperava.
A história de vida de Frida, e especialmente suas pinturas, nos fazem pensar que não houve um ambiente suficientemente bom nos primórdios de sua vida, para que ela pudesse ter desenvolvido uma integração psique-soma adequada (Winnicott, 1949/1988). Quando isso não ocorre, o bebê precisa desenvolver uma capacidade precoce de cuidar de si mesmo, substituindo a mãe e tornando-a desnecessária. O resultado é uma mente-psique patológica. Há, no entanto, um congelamento da situação traumática, e a esperança de encontrar outra pessoa que apresente o meio ambiente suficientemente bom. O retorno ao psique-soma dependente é o ponto de partida para a conquista de um lugar para existir.
Podemos conjeturar que Diego representava para Frida o objeto em quem ela depositava a possibilidade de voltar ao estado de dependência inicial, do cuidado materno básico. Ela sentia os pedaços de seu corpo soltos, à espera de condições que lhe possibilitassem fazer a elaboração imaginativa de suas partes corporais. A pólio e o acidente com o ônibus agravaram enormemente essas fendas e as cirurgias representavam apelos desesperados por essa costura psíquica, embora isso fosse vivido de modo concreto.
No quadro Duas Fridas (fig. 11), podemos ver as duas representações de si mesma se darem as mãos, talvez expressando seu desejo de construir uma ponte entre as diferenças que sentia existirem em torno de sua identidade cultural e afetiva. A Frida índia à direita tem um coração intacto, cheio, e que bomba sangue. A Frida “colonial europeia” à esquerda é incapaz de deter a hemorragia de seu coração. Ao pintar esse quadro Frida tentava encontrar uma forma de poder integrar partes de si mesma cindidas, com o objetivo de lidar com a dor. Esse quadro foi criado quando Diego iniciou o processo de divórcio, o que gerou nela muito tumulto e desespero. Era um momento em que estava particularmente vulnerável à fragmentação de seu self, e se vê claramente que a Frida Tehuana era aquela que parecia estar à parte de todo esse sofrimento, como se encarnasse uma espécie de manto de invulnerabilidade. A dualidade presente nos remete à sua amiga imaginária da infância, que dançava alegremente enquanto Frida sofria com as consequências da doença de pólio.
Frida sofreu vários abortos, que frustraram seu grande desejo de ser mãe. O sentimento de estar aos pedaços pode ser visto de modo claro no seu quadro Henry Ford Hospital (1932) (fig. 12), no qual se retrata nua, deitada numa cama que parece estar flutuando no ar. Uma lágrima cai de seu olho, e sua mão está conectada com seis imagens, que representam fragmentos de associações e sentimentos que pairam em sua mente em seguida ao aborto. As fitas que ligam as figuras parecem cordões umbilicais, com a função de mantê-la atada às suas diversas partes e de integrar seus sentimentos dolorosos.
O fracasso da elaboração imaginativa das partes do corpo e de seu self, assim como de formação de um ser coeso, pode ser visto na pintura desesperada do seu diário: Eu sou a desintegração (fig. 13) na qual ela aparece como uma marionete sem vida, em cima de uma coluna clássica. Partes dela vão caindo, um olho, uma mão, uma cabeça, retratando seu intenso sentimento de desintegração…



As falhas na identidade feminina

A sexualidade de Frida tinha um papel central em sua vida, assim como em sua obra. Há, na maioria de seus quadros, um clima sensual que coexiste ao lado do sofrimento por suas feridas. As referências aos elementos, masculinos e femininos, os corpos desnudos, as imagens sobre concepção, mostram uma atmosfera de vigor e magnetismo. A ambivalência de Frida em relação à identidade feminina já podia ser vista quando adolescente, ao se vestir de homem (fig. 14). Talvez sentisse que se pudesse substituir o irmão morto que nasceu logo antes dela, ocuparia um lugar especial no coração dos pais.
No quadro O veadinho ferido (fig 15), ela se representa no corpo de um veado macho, com galhos na cabeça. O seu corpo está perfurado por flechas que localizam as múltiplas feridas físicas e afetivas, e seu rosto expressa profunda dor. A renúncia ao gênero feminino parecia associada a uma busca de mais forças para lidar com as dificuldades. Como resposta ao desespero que as infidelidades do marido provocavam nela, Frida cortou seus cabelos e se vestiu de homem. Pedaços de cabelo são pintados por toda a tela, mostrando seu ódio e o sentimento de uma feminilidade despedaçada (fig. 16). Kettenmann (2006) sugere que as diversas representações do cabelo em seus quadros mostram as flutuações na aceitação ou repulsa em ser mulher.
A urgência por um contato íntimo e sintônico parecia, em alguns momentos, abarcar os dois gêneros nos objetos amorosos de Frida (fig. 17). No fundo, ela procurava a si mesma na pele das mulheres com quem se relacionou, buscando restaurar aspectos narcísicos danificados em função de uma maternagem deficiente e de seguidas decepções nos relacionamentos objetais. Como afirma Zimerman (1998), a procura pelo outro do mesmo sexo pode indicar um distúrbio do narcisismo, uma busca pelo seu duplo, como um espelho ou suporte identificatório que indica que a pessoa existe de fato…


Autorretratos: espelhos do self

Do ponto de vista psicanalítico, o que mais chama a atenção na obra de Frida Kahlo é a predominância absoluta de autorretratos. Seu tema central era ela mesma e se expunha de modo profundo e dramático nos retratos que fazia de si. Ela dizia que não pintava símbolos, pintava sua própria realidade. Seus autorretratos tinham uma função primordial em sua vida: a de funcionar como um espelho vivo de sua alma.
Winnicott (1971/1975a) afirma que no desenvolvimento emocional individual, o precursor do espelho é o rosto da mãe. Estas são condições adequadas para a integração do bebê e sua maturação, e quando não são encontradas repercutem em distúrbios no desenvolvimento. Quando, por algum motivo, a mãe não tem a possibilidade de funcionar como esse espelho especial, e o bebê não vê a si mesmo no rosto da mãe, mas um olhar fixo, distante, ou uma preocupação desta consigo mesma, ele recorre a defesas que lhe permitam sobreviver e escapar ao sentimento de caos psíquico.
Frida criava por meio de seus autorretratos um espelho próprio, um olhar que tinha a função de autossustentação e reconhecimento de si mesma. Como mostra Doin (1985), a função especular humana permite o conhecimento de si mesmo, a aquisição e consolidação da identidade e a integração mental, por intermédio de outra pessoa.
Nos autorretratos de Frida podemos notar que ela não está olhando para nós, mas para si mesma e para suas dores. Tentava com isso restaurar a imagem de si mesma, que mais parecia um espelho quebrado, e construía a ilusão de que podia se converter no espelho materno que nunca teve. Ela criou um duplo imaginário de si mesma, que parecia ter funções corretivas para a depressão e para a sustentação de si mesma.

A arte como forma de cura

A característica mais marcante da obra de Frida Kahlo é sua necessidade vital de expressar estados emocionais. Mesmo quando pessoas lhe encomendavam quadros, ela não produzia necessariamente o que lhe havia sido pedido, mas aproveitava a oportunidade para transmitir seu desespero pessoal. No quadro O suicídio de Dorothy Hale (fig. 18), por exemplo, Frida transformou a homenagem que uma amiga faria à falecida Dorothy Hale, na descrição minuciosa de seu suicídio, numa época em que a própria Frida se via às voltas com intensos sentimentos depressivos. Ela dizia que não fazia arte, apenas pintava seus temas privados. Havia quase que uma compulsão a usar o espaço da tela como janela da psique, numa busca desesperada por um sentimento de integração.
Mais do que um processo de sublimação, no qual as pulsões instintivas são desviadas de suas metas para objetivos socialmente valorizados, a pintura de Frida parece representar um movimento dramático e repetido, visando contenção e integração psíquica.
Podemos dizer que a arte para Frida Kahlo se converteu em uma busca de cura, ao lhe permitir representar aquilo que era mais genuíno dentro de si. Seu trabalho artístico lhe possibilitou expressar e elaborar pensamentos e emoções profundas. Isso pode ser visto, por exemplo, na pintura em seu diário: Pés para que te quero, se tenho asas para voar (fig. 19), por ocasião da amputação de seu pé, quando estava tomada por terríveis sentimentos de perda de partes de si mesma. De fato, por meio de seus quadros, Frida desenvolveu asas imaginárias que lhe permitiam sobreviver diante de intensos estados de dor. Seu sofrimento se tornou mais suportável ao pintar sua própria história.


Para Goldsmith (2006), pintar constitui um campo psicossomático unitário, incluindo o artista, a tela e o meio. Os ritmos do corpo do pintor, suas pulsações e emoções preenchem a tela. Ao retratar suas imagens psíquicas, Frida era uma dançarina em frente a uma tela, como sua amiga imaginária aos seis anos de idade.
Segundo Winnicott (1971/1975b), o eu não pode ser encontrado apenas no que é construído com produtos do corpo ou da mente, por mais valiosas que estas construções possam ser em termos de beleza ou arte. A busca do eu depende de uma relação com o ambiente que propicie o desenvolvimento maturacional e criativo do sujeito. Para esse autor, a criatividade relaciona-se com o estar vivo, com o real, pessoal e original de cada um.
Encontramos na obra de Frida Kahlo, a meu ver, uma força imperiosa que a impelia a desenvolver um sentimento de existência própria, que lhe permitisse suprir buracos psíquicos causadores de muita dor. Sua arte lhe servia como ponte para a sobrevivência psíquica. Ao lado disso, contava com um desejo de viver e uma criatividade que podia ser vista nas cores vibrantes de suas obras e no humor e ironia de suas cartas, assim como em seus momentos de irreverência. Nesses movimentos pode-se identificar o viver criativo e único que caracteriza sua vida e produção artística, e que nos impressiona pelo seu impacto afetivo.
Suas palavras falam por si:
Não me permitiram preencher os desejos que a maioria das pessoas considera normal, e nada me pareceu mais natural do que pintar o que não foi preenchido (…) Minhas pinturas são (…) a mais franca expressão de mim mesma, sem levar em consideração julgamentos ou preconceitos de quem quer que seja (…) Muitas vidas não seriam suficientes para pintar da forma como eu desejaria e tudo que eu gostaria. (Herrera, 2002, p. 317)

Referências

Bollas, C. (1992). A sombra do objeto: psicanálise do conhecido não-pensado. Rio de Janeiro: Imago.
Doin, C. (1985). Reflexões sobre o espelho. Boletim Científico, Rio de Janeiro, SBPRJ, n. 16.
Dosamantes-Beaudry, I. (2007). Frida Kahlo: representaciones self-outro y la auto-sanación a través del arte. Rev. Chil. Psicoanal., v. 24, n. 1, p. 66-78.
Goldsmith, M. (2006). Frida Kahlo: abjection, psychic deadness, and the creative impulse. Psic. Rev., v. 9, n. 6.
Herrera, H. (2002). Frida, a biography of Frida Kahlo. New York: Perennial Library.
Kahlo, F. (2005). The diary of Frida Kahlo: na intimate self-portrait/introduction by Carlos Fuentes. New York: Harry N . Abrams.
Kettenmann, A. (2006). Kahlo. Köln: Taschen.
Khan, M. (1974). Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro: Francisco Alves (Trabalho original publicado em 1963).
Winnicott, D. W. (1988). A mente e sua relação com o psique-soma. In: Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves (Trabalho original publicado em 1949).
_____ (1975a). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1971).
_____ (1975b). O brincar: a atividade criativa e a busca do eu (self). In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1971).
Zimerman, D. E. (1988). A face narcisista da homossexualidade: implicações na técnica. In: Graña, R. B.Homossexualidade: formulações psicanalíticas atuais. Porto Alegre: Artes Médicas.


Endereço para correspondência 
Gina Khafif Levinzon 
Rua Artur de Azevedo, 243, Cerqueira Cesar 
05404-010 São Paulo, SP 
E-mail: ginalevinzon@gmail.com

Recebido em: 4.5.2009
Aceito em: 11.5.2009



1 Artigo “Tema Livre” do XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro, 2009. Prêmio Fábio Leite Lobo para membros efetivos.
2 Membro efetivo da SBPSP. Doutora em Psicologia Clínica, USP, Professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica – USP.
3 As figuras expostas, originalmente coloridas, fazem parte do texto original premiado. Foram retiradas da Internet, pela autora, e têm o objetivo de ilustrar, sem comprometimento de reproduzir a obra de Frida Kahlo. N.E.




Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.2 São Paulo jun. 2009

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