A GRANDE COMPAIXÃO - THICH NHAT HANH




A Grande Compaixão

Saigon, 22 de maio de 1966,

Não é provável que esta coleção de escritos no meu diário, que eu estou chamando de "Perfumadas Folhas de Palmeira", vá passar pelos censores. Se ela não puder ser publicada, espero que meus amigos circulem entre eles os textos. Hoje à noite o céu está estranhamente brilhante. Vou deixar o Vietnã amanhã, mas eu já sinto falta de casa. Eu sei que onde quer que eu vá haverá estrelas, nuvens e lua, mas estou determinado a voltar para casa. Meu coração está um pouco inquieto, mas no geral eu estou em paz. Quero compartilhar esses pensamentos, embora incompletos, enquanto eu estou sentindo essa calma.

Para alcançar o entendimento, você tem que descartar tudo o que você aprendeu. Isso é o que o Sutra do Diamante quer dizer onde está escrito: "A só é A, quando não é A." Eu sei que isso soa estranho, mas quanto mais eu vivo, mais eu vejo que é verdade. Apegar-se ao que você aprendeu é pior do que não aprender de início. Tudo que me foi ensinado no Instituto Budista foi virado de cabeça para baixo. É por isso que eu posso entender o que aprendi lá.

Momentos atrás, enquanto o nosso DC-4 se aproximava de Saigon, vi as formações de nuvens mais requintadas. O sol já havia se posto, mas havia luz suficiente no céu para ver as nuvens suaves e puras espalhadas por baixo do avião como um mar, onda após onda, mais branco que o branco da mais pura neve. Tornei-me um com as nuvens, tão suave e puro como uma nuvem. Por que os seres humanos são tão atraídos por nuvens e tapetes de pura neve, macios e brancos? Talvez seja porque gostemos de coisas que são puras, belas e saudáveis, coisas que reflitam a maneira que queremos nos ver. Pureza, beleza e salubridade não têm uma existência objetiva própria. São apenas nossos pontos de vista.

Nós reagimos a uma folha de papel branco, um riacho de água límpida, um doce refrão da música ou um homem ou mulher atraente da mesma maneira. Uma mulher bonita é muitas vezes comparada à neve, lua ou flores. Quando ela é compassiva, nós a chamamos de uma deusa ou um Buda, porque deusas e Budas são conhecidos por serem belos e gentis. Queremos ser associados com o que nós consideramos belo, puro e saudável e queremos que essas coisas permaneçam da mesma forma.

Mas o que dizer da corrupção, feiúra, crueldade e decadência? Lutamos para permanecer no lado puro e bonito e queremos manter o outro lado longe. O Budismo Mahayana descreve o nirvana como permanência, felicidade, liberdade e pureza. Eu acho que a escolha dessas quatro virtudes para descrever o nirvana demonstra como nós, seres humanos, somos ligados a uma determinada idéia de felicidade.

O Sutra do Coração foi composto para nos ajudar a quebrar tais pontos de vista. Avalokita, depois de olhar profundamente para as coisas, sorri e anuncia: "Todos os fenômenos são marcados com o vazio, pois eles não são produzidos nem destruídos, nem profanos nem imaculados, nem crescem nem diminuem, Desta maneira, na vacuidade não há nem forma, nem sentimentos, nem percepções, nem formações mentais, nem consciência; nem olho, ou ouvido, ou nariz, ou língua, ou corpo, ou mente; nem forma, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, nem objeto da mente".

Enquanto eu me sentava no avião, vi tudo isso a partir de uma perspectiva diferente. Sorri enquanto pensava sobre as diferentes formas da água. Ela pode ser um líquido claro, gelo, vapor, nuvens ou neve. Todas essas formas são H2O, mas a própria H2O está vazia, sem permanência. Ele pode ser dividida em hidrogênio e oxigênio, mas eles também são vazios. Examine o oxigênio e você vai ver que ele é composto de elementos que não são oxigênio, que também são vazios e feitos de outros elementos. Eles são todos interdependentes e interligados. Você não pode separar o oxigênio do não-oxigênio, mas também não se pode dizer que o oxigênio e o não-oxigênio são a mesma coisa.

Neste mundo de constantes mudanças, queremos nos agarrar a algumas verdades permanentes. Suponha que eu me pergunte qual é a coisa mais linda e importante do mundo, e suponha que eu responda "água". A água pode ser clara como um espelho. Ela pode cobrir um pico de montanha ou ficar girando em ondas brancas à beira-mar. Sem água, a Terra iria secar e morrer. Por isso, eu digo que a água é a coisa mais linda e importante.

Mas se eu parar e considerar o fogo, percebo que a vida também não seria possível sem a luz e o calor do sol. De fato, sem luz, como alguém poderia distinguir o que é belo e o que não é? Sem luz, quem poderia ver a água límpida como um espelho, a neve que cobre o pico da montanha ou as ondas girando à beira-mar? Posso entender isso também, mas se eu for obcecado com a água, vou fechar os olhos e me agarrar apenas à água. Isso seria ignorância, não é?

Alguns argumentam que a contínua transformação dos fenômenos apóia a crença na reencarnação. Você pode ter descartado essa crença quando ainda era jovem, entendendo que essa idéia pressupõe a existência de uma alma ou eu permanente e separado que pode transmigrar. Na realidade, não há um eu separado, não há oxigênio ou hidrogênio com uma identidade própria e permanente. No entanto, o mundo do vazio revela-se como eternamente milagroso. Há uma espécie de reencarnação, embora se olharmos profundamente, veremos que nada é permanente ou impermanente, puro ou corrupto, gentil ou cruel, bonito ou feio. Por favor, não repita essas coisas para as crianças, porque os olhos delas não estão abertos o suficiente ainda. Elas podem concluir que não há nenhuma razão para se viver de acordo com a ética se não há nem bom nem mau.

Dada uma escolha, você não iria escolher pureza sobre a corrupção, a felicidade sobre o sofrimento, bondade sobre a crueldade? Isso parece óbvio. Mas, para escolher pureza, felicidade e bondade, a maioria das pessoas assume que nós temos que destruir a corrupção, o sofrimento e a crueldade. É possível destruí-los? Se o ensinamento do Buda: "Isto é assim, então aquilo é assim," é verdadeiro, então, dentro da pureza há corrupção. Se você destruir a corrupção, destrói simultaneamente a pureza. "Este não é, porque aquele não é." Isso quer dizer que devemos nutrir corrupção, crueldade e sofrimento? Claro que não!

Todos os pares de opostos são criados por nossas próprias mentes a partir da nossa consciência armazenadora. Fazemos da felicidade e sofrimento uma enorme luta. Se pudéssemos penetrar a verdadeira face da realidade como Avalokita fez, todas as nossas tristezas e desgraças desapareceriam como fumaça e de fato nós iríamos "superar o mal-estar."

Olhe para o sorriso do Buda. É completamente pacífico e compassivo. Isso quer dizer que o Buda não leva o seu e o meu sofrimento a sério? O Buda enviou Bodhisattva Sadaparibhuta para nos informar que o Buda não olha para ninguém, porque cada ser se tornará um Buda.

Talvez a minha reação ao sorriso do Buda seja causada por um sentimento infantil de inferioridade - que certamente não surge de um sentimento de auto-respeito. É fácil nos sentirmos insignificantes, desajeitados e estúpidos diante do Buda, que vê o nirvana e samsara como meros lampejos de vazio. No entanto, estou certo de que o Buda sente compaixão por nós, não porque sofremos, mas porque não vemos o caminho, o que é a causa do nosso sofrimento.

Desde que eu era jovem, tento entender a natureza da compaixão. Mas a pouca compaixão que aprendi não foi proveniente de investigação intelectual, mas da minha experiência real do sofrimento. Eu não tenho orgulho do meu sofrimento mais do que uma pessoa que confunde uma corda com uma cobra é orgulhosa de seu medo. Meu sofrimento foi uma mera corda, uma mera gota de vazio tão insignificante que deve se dissolver como a névoa ao amanhecer. Mas não foi dissolvido e eu sou quase incapaz de suportá-lo. Será que o Buda não vê o meu sofrimento? Como ele pode sorrir?

O amor busca uma manifestação - o amor romântico, o amor maternal, amor patriótico, amor à humanidade, o amor por todos os seres. Quando você ama alguém, se sente ansioso para que ele ou ela estejam seguros e por perto. Você não pode simplesmente tirar seus entes queridos de seus pensamentos. Quando o Buda testemunha o sofrimento sem fim dos seres vivos, ele deve sentir uma profunda preocupação. Como ele pode apenas sentar lá e sorrir?

Mas pense nisso. Somos nós que o esculpimos sentado e sorrindo, e fazemos isso por uma razão. Quando você fica acordado a noite toda se preocupando com o seu ente querido, você está tão ligado ao mundo fenomenal que pode não ser capaz de ver a verdadeira face da realidade. Um médico que entende com precisão a condição de seu paciente não se senta e fica obcecado em mais de mil explicações ou ansiedades diferentes como a família do paciente. O médico sabe que o paciente vai se recuperar, e assim ele pode sorrir, mesmo quando o paciente ainda está doente. Seu sorriso não é cruel, é simplesmente o sorriso de alguém que capta a situação e não se envolve em preocupação desnecessária. Como posso colocar em palavras a verdadeira natureza da Grande Compaixão?

Quando começamos a ver que a lama preta e branca de neve não é nem feia nem bonita, quando podemos vê-la sem discriminação ou dualidade, então começamos a compreender a Grande Compaixão. Aos olhos da Grande Compaixão, não há nem esquerda nem direita, nem amigo nem inimigo, nem perto nem longe. Não pense que a Grande Compaixão é sem vida. A energia da Grande Compaixão é radiante e maravilhosa. Aos olhos da Grande Compaixão, não há separação entre sujeito e objeto, não há eu separado. Nada pode perturbar a Grande Compaixão.

Se uma pessoa cruel e violenta estripá-lo, você pode sorrir e olhar para ela com amor. É a sua educação, a sua situação e a sua ignorância que o leva a agir de forma tão estúpida. Olhe para ele - aquele que causa a sua destruição e joga montes de injustiça em cima de você - com olhos de amor e compaixão. Deixe a compaixão derramar de seus olhos e não deixe que nem uma onda de culpa ou a raiva suba em seu coração. Ele comete crimes sem sentido contra você e te faz sofrer, porque ele não pode ver o caminho para a paz, a alegria ou compreensão.

Se algum dia você receber a notícia de que eu morri por causa de atos cruéis de alguém, saiba que eu morri com o meu coração em paz. Saiba que em meus últimos momentos eu não sucumbi à raiva. Nunca devemos odiar um outro ser. Se você puder dar origem a essa consciência, será capaz de sorrir. Lembrando-se de mim, você vai continuar em seu caminho. Você terá um refúgio que ninguém poderá te tirar. Ninguém será capaz de perturbar a sua fé, porque ela não dependerá de qualquer coisa no mundo fenomenal. Fé e amor são um e podem apenas surgir quando você penetrar profundamente a natureza vazia do mundo fenomenal, quando puder ver que você está em tudo e tudo está em você.

Há muito tempo atrás eu li uma história sobre um monge que não sentia raiva contra o rei cruel que tinha cortado a sua orelha e perfurado sua pele com uma faca. Quando li isso, pensei que o monge deveria ser algum tipo de deus. Isso era porque eu ainda não conhecia a natureza da Grande Compaixão. O monge não tinha raiva dentro de si. Tudo o que ele tinha era um coração de amor. Não há nada que nos impeça de ser como aquele monge. O amor ensina que todos nós podemos viver como o Buda. Amanhã de manhã eu tenho que partir. Eu não vou ter tempo hoje de ler o que eu escrevi, mas vou ver brevemente Hung amanhã e vou dar-lhe o manuscrito antes de eu deixar a nossa bendita terra natal.

(Do livro de Thich Nhat Hanh - "Fragrant Palm Leaves” – Diário de Thich Nhat Hanh - Tradução Leonardo Dobbin)
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Fonte:http://www.viverconsciente.com/textos/a_grande_compaixao.htm

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