UMBANDA E CANDOMBLÉ SÃO RELIGIÕES,SIM

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Umbanda e Candomblé são religiões, sim


O triste veredicto de um juiz mal informado


Movimento negro pede punição contra magistrado, acusado de estimular o preconceito


Por Luis Pellegrini


Lamentável e inquietante a recente decisão do juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17a Vara criminal do Rio de Janeiro, ao definir que umbanda e candomblé “não são religiões” e que, por isso, não merecem proteção judicial contra afrontas, ofensas e humilhações na Internet.
A decisão é lamentável porque denota, em se tratando de um magistrado, um inacreditável desconhecimento de causa. Inquietante, porque ela vai contra nossa Carta Magna, a Constituição Brasileira, que garante proteção e liberdade de culto a todos os cidadãos, sem exceção de raça, cor ou credo religioso.

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Umbanda e candomblé não apenas são sistemas religiosos autênticos, reconhecidos por todas as ciências humanas e históricas, bem como pela tradição popular, como estão ambos enraizados na nossa cultura há séculos. Além disso são, todos os dois, herdeiros diretos da mais antiga e persistente tradição religiosa e espiritual ainda existente na face da Terra: o animismo.
O termo animismo foi criado pelo antropólogo inglês Sir Edward B. Tylor, em 1871, na obra Primitive Culture (A Cultura Primitiva). Por esse termo Tylor queria designar a manifestação religiosa imanente a todos os elementos do cosmos (Sol, Lua, estrelas), a todos os elementos da natureza (rios, oceanos, montanhas, florestas, rochas), a todos os seres vivos (animais, fungos, vegetais) e a todos os fenômenos naturais (chuva, vento, dia, noite). O animismo considera a existência de um princípio vital e pessoal, chamado de ânima, o qual apresenta significados variados:
a) Na sua acepção cosmocêntrica, ânima significa energia;
b) Na antropocêntrica, significa espírito;
c) Na teocêntrica significa alma.
Consequentemente, todos esses elementos são passíveis de possuir sentimentos, emoções, vontades ou desejos e até mesmo inteligência. Resumidamente, os cultos animistas alegam que: “Todas as coisas são vivas”, “Todas as coisas são conscientes”, ou “Todas as coisas têm ânima”. A recente Hipótese Gaia, teoria geológica e ecológica formulada pelo ambientalista britânico James Lovelock é, por exemplo, uma teoria científica de fundo claramente animista. Ela afirma que a Terra não é uma imensa porém simples bola mineral rodopiando no espaço sideral. Muito mais que isso, para Lovelock nosso planeta é um organismo vivo, dotado de um corpo, uma inteligência, uma psique sensível e, inclusive, uma alma e um espírito!

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A mais antiga tradição religiosa do mundo

A tradição animista remonta à era das cavernas, aos tempos em que o homem, já dotado de razão, começou a investigar os fenômenos, ciclos e processos da Natureza na tentativa de encontrar respostas e significados para a sua própria existência e a do mundo. De tão antigo, o animismo pode ser considerado o filão primordial e troncal de onde se originaram todas as demais religiões, inclusive as três “Religiões do Livro”: o cristianismo, o judaísmo e o islamismo.
Se a umbanda e o candomblé, religiões de raiz animista, são bastante claras na exposição de tais conceitos, a maior parte dos estudiosos afirma que eles também estão presentes em muitos aspectos – sobretudo ritualísticos – em quase todas as outras religiões. O próprio “milagre da transubstanciação”, instante crucial da missa, no qual, segundo a crença católica, o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue de Cristo, constitui, em última análise, um rito animista. E, no judaísmo, qualquer judeu sabe perfeitamente o que é o rito do kaparoth, quando, na véspera do Yom Kippur, o rabino segura uma galinha viva (para as mulheres) ou um galo vivo (para os homens), fazendo-os girar repetidas vezes ao redor da cabeça do fiel. As fórmulas que ele recita nessa ocasião traduzem claramente a ideia de que as aves absorverão os pecados e as “más energias” das pessoas e que sua morte lhes trará a absolvição. Os animais são em seguidas degolados por um sho‘heth (sacrificador ritual), e em seguida consumidos pela família, que deve oferecer seu valor em dinheiro aos pobres. Exatamente a mesma coisa que se faz em certas linhas do candomblé.
Em sua sentença, o juiz Eugênio Rosa de Araújo argumenta que os cultos afro-brasileiros “não contêm os traços necessários de uma religião”. De acordo com ele, as características essenciais de uma religião seriam a existência de um texto base (como a Bíblia ou Alcorão), de uma estrutura hierárquica e de um Deus a ser venerado.
Com base nesses argumentos, ele rejeitou o pedido do MPF (Ministério Público Federal) para obrigar o Youtube a tirar do ar uma série de vídeos com ofensas à umbanda e ao candomblé. A Procuradoria da República já recorreu da decisão.

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Estudar mais, antes de abrir a boca

Uma pergunta crucial: Por que esse juiz não buscou informação mais abalizada antes de proferir sentença baseada exclusivamente na pobreza de suas convicções pessoais? Supõe-se, comumente, que aos magistrados não falta base cultural de largo espectro, mas parece que também neste quesito a tradição brasileira está desmoronando. A esse juiz bastaria, por exemplo, consultar as obras de Jean Baptiste Romain, doutor em antropologia pela Sorbonne, consultor da Unesco, escritor e ex-presidente da Academia de Ciências Humanas do Haiti. Em seus trabalhos, Romain prova exaustivamente que os estudos científicos a respeito do vodu e dos demais cultos afro-americanos e indígenas mostram que eles contêm todos os elementos básicos de uma religião: uma filosofia, um panteão de divindades, um clero, um ritual, um simbolismo, uma moral, a expressão de uma inquietude sobre o destino final do homem.
O juiz poderia, sem precisar ir à França ou ao Haiti, conversar com Rita Amaral ou Vagner Gonçalves da Silva, ou qualquer outro das centenas de antropólogos, sociólogos e psicólogos sociais que ensinam nas nossas maiores universidades, para que eles lhe dissessem a mesmíssima coisa. Poderia trocar ideias com o monge beneditino pernambucano Marcelo Barros, que foi braço direito de Dom Helder Câmara, é autor de mais de 40 livros e amigo pessoal de pais e mães-de-santo como Estela de Oxóssi, do candomblé Ylê Opô Afonjá, de Salvador, para aprender o que é diálogo inter-religioso e respeito pelas ideias e pelas convicções alheias.
Em São Paulo, Eugênio Rosa de Araújo poderia pedir sugestões de leitura ao editor Carlos Eugênio Marcondes de Moura, o maior especialista nacional em bibliografias sobre as tradições afro-brasileiras. Também em São Paulo, poderia, para sanar suas inquietudes, bater um papo com o babalorixá Carlos Buby, diretor do Templo Guaracy de Umbanda, e um dos mais importantes teóricos dos novos rumos que o movimento umbandista está assumindo em nosso país. Pai Buby certamente teria a paciência de lhe explicar que, no seu entender, a umbanda é uma religião cristã e monoteísta. Ela acredita na existência de um Princípio Divino Único e Universal: Ólorun, que significa: “Deus distante”. Não distante no tempo e no espaço, mas sim distante da nossa limitada capacidade de compreensão intelectual para entender o que é e o que quer o Criador do Universo. Seria exatamente por causa das limitações da nossa mente que, no passado mais remoto, começamos a tentar apreender o que é Deus através da sua obra criada no mundo natural. É por isso, simplesmente, que os animistas sacralizam as coisas e os fenômenos da natureza: um animista não venera uma montanha; ele venera o orixá Xangô, “Deus que se manifesta através da montanha”.
Finalmente, faria bem a esse juiz consultar o espírito de alguns mortos. Em primeiro lugar a antropóloga Dona Ruth Cardoso, ex-Primeira Dama do Brasil, séria estudiosa e analista das tradições brasileiras, e assídua frequentadora de terreiros de umbanda e candomblé em São Paulo e em outros estados. Ela certamente o aconselharia a conversar com o etnofotógrafo Pierre Verger, ou então chamar do paraíso dos dominicanos o saudoso Frei Raimundo Cintra, que conhecia como ninguém os terreiros do Rio de Janeiro e deixou extensa obra literária sobre ecumenismo, diálogo e tolerância inter-religiosa.

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É preconceito racial, social e cultural

Quanto à pergunta que resta – Por que tantos ataques e tanto desrespeito à herança espiritual que foi trazida da África e aqui juntou-se à tradição indígena e ao cristianismo para constituir o mais autêntico sistema religioso brasileiro? – ela encerra talvez o ponto mais importante. Esse ponto tem a ver com uma única e fundamental equação: aquela que relaciona liberdade e escravidão. Tem a ver com preconceito racial, social e cultural.
O sociólogo e psicoterapeuta junguiano Roberto Gambini tem algo a dizer sobre isso. Em sua obra monumental “Espelho Índio”, ele simplesmente defende a ideia de que, se a mente brasileira é, em certa medida, racional e europeia, a nossa alma nacional é fundamentalmente africana e indígena. E é o fato de não termos ainda equacionado devidamente esse quebra-cabeças a origem de tantos problemas e de tanto atraso do Brasil no concerto geral das nações. Da mesma forma que é também a origem profunda do preconceito que ainda viceja em tantas mentes e em tantos corações. Simplesmente, não aceitamos o fato de sermos negros e índios por dentro. E tentamos com todas as forças eliminar os sinais dessa negritude que se manifestam por fora. O candomblé e a umbanda, por estarem muito expostos, são as primeiras vítimas desse complexo que frequentemente se traduz em tragédia.
Não aceitamos o fato de que, se nossa cabeça é branca e europeia, nosso coração é negro africano e indígena brasileiro. Queremos, a todo custo, arrancar de nós mesmos a nossa hereditariedade anímica, e nesse afã não hesitamos – muitas vezes com arrogância e covardia – a vilipendiar os valores daqueles que são materialmente mais frágeis. Esquecendo que nossa única possibilidade de redenção, no sentido da conquista de uma verdadeira identidade brasileira, será através da integração das nossas três heranças fundamentais: a europeia, a africana, a indígena.


Fonte:VortexMundi 

http://www.vortexmundi.com.br/umbanda-e-candomble-sao-religioes-sim/#ixzz37IyaeGYa 

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