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“Nos demais – eu sei, qualquer um o sabe – o coração tem domicílio no peito. Comigo a anatomia ficou louca. Sou todo coração – em todas as partes palpita.” (Maiakóvski)
A tempestade Maiakovski
A vida intensa e os versos extraordinários
do maior poeta russo do século XX
do maior poeta russo do século XX

Felipe Fortuna, de Moscou
Montagem sobre foto de Roger Viollet/AFP![]() |
O poeta Maiakovski e, ao fundo, reprodução da capa desenhada por seu amigo, o artista plástico Alexander Rodchenko, para o livroMaiakovski Sorri, Maiakovski Ri, Maiakovski Zomba |

Tinha razão o escritor Kornei Tchukovski: "É muito difícil ser Maiakovski". Forças contraditórias agiram sobre o poeta na arena política e cultural soviética. Seu otimismo quanto ao futuro da URSS e a vitalidade com que expunha a utopia de um "estado-comuna" – sem burocratas e sem elite – acabaram produzindo poemas panfletários, inferiores. A maior admiração política do poeta era o revolucionário Vladimir Lenin, morto em 1924. A biografia mostra de que modo o poeta enalteceu o líder político: "apesar de mostrá-lo humano, apresenta-o livre de todas as fraquezas, numa auréola de santidade". Havendo sempre manifestado interesse em encontrá-lo para conversas e leituras de poemas, escreveu a ode Vladimir Ilich Lenin, sob o impacto da morte do líder, na qual lamentava: "Temo / que o mausoléu / e as funções protocolares (...) / possam esconder / a simplicidade de Lenin". Mas, em que pese a oficialidade desses poemas próximos de peças de propaganda partidária, além de textos de "encomenda social", Mikhailov observa o "dualismo na consciência" do escritor – dualismo que desencadeou sua tragédia. Um sintoma dele é a peça satírica O Percevejo, cujo alvo principal é a estrutura burocrática do stalinismo. Escrito em 1929, um ano antes do suicídio do poeta, O Percevejo é a face melancólica e exausta de quem havia escrito, em 1915, o longo poema Uma Nuvem de Calças, notável em seu otimismo e na sua crença revolucionária.
Escrito sem jargão e sem aparato de notas, o livro de Mikhailov também se apresenta como painel de época. Maiakovski surge como figura central do futurismo. Em 1912, com Bofetada no Gosto Público, o escritor, nascido na Geórgia, divulgou o manifesto de um movimento que tinha, inicialmente, propósitos destrutivos. Ao condenar a tradição lírica dos que faziam odes ao luar e cantavam as paisagens do interior, o poeta levou a extremos a idéia de engajamento. O biógrafo é preciso na sua observação: o futurismo de Vladimir Maiakovski e de seu grupo é um fenômeno russo, marcado por tradições nacionalistas e com tendência à valorização dos sentidos e dos sons das palavras, bem como pelo propósito de se dirigir a milhões de pessoas. O poeta ingressou, assim, numa via experimental e de vanguarda: insistia que a nova arte deveria provocar uma "alteração do olhar", já que as coisas haviam sido transformadas pela vida urbana. Versos e palavras eram abruptamente cortados para valorizar formas novas, como na imagem cubista. Antes mesmo de ser poeta, Vladimir Maiakovski descobrira em si talento para o desenho, que demonstrou nos milhares de cartazes produzidos tanto para a divulgação da poesia como para a ação revolucionária. Todo esse conjunto inovador se somava ainda ao gosto do poeta pela declamação em grandes auditórios e por apresentações anárquicas em que surgia com uma escandalosa camisa amarela. Para muitos detratores, ele era o "valentão da periferia", o "saqueador futurista" com "vozeirão de arrombador".
O leitor brasileiro conta com considerável acesso à obra de Maiakovski, apesar das dificuldades da língua original. Estão a seu alcance Minha Descoberta da América (Martins), relato de uma viagem do poeta monoglota, sempre nervoso no estrangeiro, com passagens marcantes pelo México e pelos Estados Unidos. Ou Poética – Como Fazer Versos(Global), que traz a síntese de seu pensamento estético, com o imperdível capítulo "Os operários e os camponeses não vos compreendem". Mais importantes são as coletâneas Poemas(Perspectiva), na criativa tradução de Boris Schnaiderman, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, e Antologia Poética (Leitura), organizada e traduzida por E. Carrera Guerra e hoje somente encontrada em sebos. Esses dois livros capturam um pouco das melhores qualidades literárias de Maiakovski: a busca de comunicação direta com o leitor, sem que para isso haja rebaixamento da linguagem; e a crença no futuro (que ele sabe inapelavelmente urbano). O essencial são os versos, como sabia o próprio Maiakovski e o afirmou em Eu Mesmo: "Eu sou poeta. É o que me faz interessante".
Fonte:http://veja.abril.com.br/160708/p_166.shtml
Maiakóvski: O Poeta da Revolução

CORAÇÃO EM CHAMAS
Reflexões sobre vida e obra de um dos mais importantes poetas do século 20, Vladimir Maialóvski (1893–1930)

“A vida de Maiakovski se desenvolveu num período de entusiasmo irrefreável, de crença plena no futuro, herança da ideologia do progresso cultivada durante todo o século 19”, comenta Alexei Bueno no prefácio. Poeta revoltado, agressivo e inflamado, Maiakóvski segurava a caneta como se fosse uma metralhadora. Seus inimigos? Muitos: a exploração operária, a arte desengajada, os hábitos pequeno-burgueses, os últimos estertores do czarismo, a alvorada sombria da burocracia totalitária.
Maiakovski foi uma personalidade controversa, provocativa, extremada. Testemunhas oculares chegaram a descrever seu surgimento assim: “como se um hipopótamo chegasse numa loja de louças e aprontasse excessos messiânicos…” (Kniazev). Roberto Goldkrin, no prefácio de Como Fazer Versos, o descreve como “um ser contraditório e fascinante, que ao mesmo tempo que destronou a poesia e o poeta do alto de um Olimpo elitista e classicizante, elevou-se a dimensões aquém dos formulários e especificações do fabricante”. Já Boris Schaiderman, professor de língua russa na USP e autor de A Poética de Maiakovski, descreve-o como uma criatura “vibrante e polêmica, toda agressividade e ímpeto”. E o próprio poeta descrevia-se como alguém em quem a anatomia enlouqueceu:
“nos demais – eu sei,
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio
no peito.
comigo
a anatomia ficou louca.
sou todo coração –
em todas as partes palpita.”
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio
no peito.
comigo
a anatomia ficou louca.
sou todo coração –
em todas as partes palpita.”

Poeta das massas, abandonou a torre de marfim para descer ao meio das turbulências sociais. “É necessário partir em mil pedaços a fábula da arte apolítica!”, reclamava. Maiakóvski escrevia sempre centrando fogo na transformação concreta da vida das multidões. Para ele, a poesia não é menos bela por ser útil. “O poeta incita à rebelião e está pronto para marchar na primeira fileira dos rebeldes”, destaca Bueno. O próprio poeta reconhecia-se como um perigo à ordem constituída: “O nariz capitalista farejava em nós a dinamite”, escreveu. Em vários poemas incita à insurreição: “Retirem as mãos vagabundas das calças/ Peguem a pedra, a faca ou a bomba / E aquele que não possui mãos / Venha e lute com a testa!”
“Maiakovski transfere toda a força de negação para a sociedade burguesa. Nela vê o mal que degrada a moral e a própria idéia da arte”, comenta Mikhailov. “O ‘abaixo!’ de Maiakovski era um gesto característico do russo rebelde, estivesse ele pegando em machado, em tocha ardente de incendiário, ou em bomba caseira – e expressava sua prontidão de ir para a batalha e morrer.”
Quando os bolcheviques concretizam sua “grande heresia” e tomam o poder, Maiakovski aplaude com entusiasmo e se entrega ao posto de poeta da revolução, engajadíssimo em fazê-la perseverar e vencer. “Ao encontro de Outubro de 1917, Maiakovski caminhou de peito aberto”, comenta Mikhailov, “pois não assumira, como significativa parte da intelectualidade russa, compromisso com as tradições e outras ligações com a velha cultura. Por isso, quando aconteceu a Revolução, pôde com toda sinceridade dizer: ‘A minha revolução’.”
Liderando a vanguarda futurista, Maiakóvski e seus companheiros colocaram em ebulição a cultura russa. O escândalo foi enorme. Foram acusados de terem uma relação niilista com a cultura clássica, de não possuírem uma base teórica sólida ou de serem meros arruaceiros. O manifesto futurista era mesmo extremista e mandava “atirar fora Puchkin, Dostoievski e Tolstoi do Navio da Modernidade!” Burliuk, um dos líderes do movimento, se justificava dizendo: “Não desejamos virar para trás nossas cabeças, quebrar nossas vértebras cervicais para olhar a poesia com a naftalina dos perversos!”
Apesar das idéias destrutivas em relação à herança cultural, Maiakóvski era um grande conhecedor da literatura clássica. “Ele ouvia a voz viva dos clássicos, mas negava as imposições dos seus cânones para a arte do seu tempo”, sugere Mikhailov. Ou, como o próprio Maia dizia: “Eu vos amo, mas vivos, não como múmias.”

Da biografia de Mikhailov conclui-se que dentro da alma de Maiakóvski desenhou-se uma contradição cruel entre a utopia e a decepção. De um lado, uma vida inteira dedicada à Revolução, à glória de Lênin e ao engajamento na construção do socialismo. De outro, o surgimento do espectro do stalinismo, que trazia a ditadura, a burocracia e o eclipse do sonho. Dividido entre os versos de louvor às conquistas revolucionários e as sátiras ácidas contra as anomalias do novo poder, Maiakóvski viu-se rasgado entre o entusiasmo da entrega total a uma utopia e a tragédia da perda do ideal.
Nos seus últimos anos de vida, Maiakovski parece ter chegado a uma cruel encruzilhada – ele que sempre as enfrentou de peito aberto e palavras em punho. Mikhailov, em sua biografia, arrisca uma especulação magistral a respeito das frustrações de Maiakovski:

Cartaz de Maiakóvski onde se lê: “Ucranianos e russos gritam – Não haverá senhor sobre o trabalhador, Milorde!”
“Em tudo o que ele escreveu durante estes anos, de um lado, estava a glória à Revolução, e do outro, a sátira sobre a sua continuação. O mundo realmente, como afirma Heine, partiu-se em duas metades e a rachadura atravessou o coração do poeta. (…) Sobre a mesa do escritório, bastava levantar a cabeça, estava a fotografia de Lênin, que continuava a personificar para Maiakovski o ideal de líder e de ser humano, a sua crença. Já nos corredores do poder encontra pessoas bajuladoras, burocratas, corruptas e pomposas. (…) É muito significativo que associe o seu ideal somente àqueles que já estão mortos e a nenhum dos vivos.” Já em 1926, quatro anos antes de seu suicídio, “Maiakovski percebe que o nepotismo, a corrupção, a mesquinhez, a burocracia perpassam a nova sociedade de cima para baixo. (…) Percebe que estavam sendo traídos os ideais de Outubro. (…) No coração precipita-se a amargura que minava a crença na justiça social, na vida…”
Mas havia algo mais empurrando o coração do poeta para o despenhadeiro. Ele, que escreveu algumas das mais pungentes poesias líricas que conhecemos, entrou em desespero por não conseguir abocanhar, neste mundo, sua fatia de amor. As paixões que viveu Maiakóvski, quase todas não correspondidas, parecem nunca ter conseguido saciar seu coração faminto. Na nota de suicídio, a frase lapidar: “O barco do amor espatifou-se contra o cotidiano”.
Em uma carta à Lília Brik, amor de sua vida, escreveu: “O amor é vida. O amor é o coração de tudo. Se ele interromper o seu trabalho, todo o resto morre, faz-se excessivo, desnecessário. (…) Sem você não há vida.” Esmagado sob o peso da utopia que se esfarelava e do amor que não conquistou, buscou no sono eterno o descanso para um percurso terrestre que foi, de fato, exaustivo. Mas por ter sido intenso, extremo, inflamado, contraditório — e apaixonante.
Como resume Roman Jakobson em A Geração Que Esbanjou Seus Poetas: “A angústia diante dos limites fixos e estreitos e o desejo de superação dos quadros estáticos constituem um tema que Maiakovski varia sem cessar. Nenhum curral no mundo poderia conter o poeta e a horda desenfreada de seus desejos.”
Maiakovski, que sempre teve uma bandeira de luta hasteada em seu coração incendiado, saiu com estrondo do mundo para entrar, também estrondosamente, na História. Como um dos mais autênticos e vigorosos poetas da Revolução.
Alguns poemas:
A FLAUTA VÉRTEBRA
A todos vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.
Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.
Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
(Tradução: Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)
* * * * *
LÍLITCHKA!
Em Lugar de Uma Carta
(Petrogrado, 1916)De qualquer forma
o meu amor
- duro fardo por certo -
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Em Lugar de Uma Carta
(Petrogrado, 1916)De qualquer forma
o meu amor
- duro fardo por certo -
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos – rodopiante carnaval -
dispersarão as folhas dos meus livros…
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos – rodopiante carnaval -
dispersarão as folhas dos meus livros…
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.
(trad. Augusto de Campos)
Fonte:http://acasadevidro.com/2013/07/21/maiakovski-o-poeta-da-revolucao/
Compre este livro na Livraria Cultura (R$27,00)
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