KALI A FORÇA FEMININA NA ÍNDIA




KALI A FORÇA FEMININA


A Índia sempre me fascinou e acredito que também fascina muita gente. A diversidade e riqueza cultural que lá existe são tamanhas e seus deuses são impressionantes. Nesse artigo resolvi falar de Kali, uma das faces da grande mãe que muitas vezes é mal-interpretada. Espero que gostem!


Nós sabemos que desde a pré-história a deusa mãe é adorada como fonte de vida e fertilidade. Mas na Índia, ela só passou a ser a Grande Deusa, cheia de poderes cósmicos, a partir do século V ou VI, com a composição do Devi Mahatmya (Glória da Deusa), o que fez com que a adoração do princípio feminino adquirisse novas dimensões. Nesse texto, a deusa deixa de ser apenas a fonte misteriosa da vida e passa a ser a própria terra, que tudo cria e consome.


Durante uma batalha entre as forças divinas e anti-divinas, Kali aparece pela primeira vez no Devi Mahatmya, quando emana da testa da Deusa Durga, que é a caçadora de demônios. O nome Durga significa "Além do Alcance" e ela representa a autonomia virginal e cruel da mulher guerreira.


Kali é representada como uma mulher preta com quatro braços; em uma mão ela tem uma espada, em outra a cabeça do demônio que ela caçou, com as outras duas ela encoraja seus adoradores. Seus brincos são dois cadáveres e ela veste um colar de crânios; ela veste apenas um cinto feito de mãos de homens mortos, e sua língua fica pra fora da boca. Seus olhos são vermelhos, e seu rosto e seios estão lambuzados de sangue. Ela fica em pé, com um pé apoiado na coxa e outro no peito de seu marido.


Todo mundo fala da crueldade da aparência de Kali. Mas, apesar de sua forma cruel ser cheia de símbolos assustadores, as pessoas acabam por interpreta-los de maneira errada: o fato de Kali ser negra, por exemplo, simboliza sua natureza compreensiva e abrangente, já que preto é a cor na qual todas as outras cores se fundem; o preto as absorve e dissolve. 'Assim como todas as cores desaparecem no preto, também todos os nomes e formas desaparecem em Kali' (Mahanirvana Tantra). O preto também é a completa ausência de cor, significando também a natureza de Kali como a realidade última. No sânscrito isso é chamado de nirguna (além da qualidade e forma). De qualquer maneira, a cor preta de Kali simboliza sua transcendência de todas as formas.


Um poeta devoto diz:


"É Kali, minha Divina Mãe, de compleição negra?".
Ela parece ser negra porque é vista à distância;
mas quando finalmente conhecida Ela não mais o é.
O céu parece ser azul à distância, mas olhe de perto
e descobrirás que não tem cor alguma.
A água do oceano parece azul à distância,
mas quando chegas perto e a coloca em suas mãos,
descobrirás que é incolor."
... Ramakrishna Paramhansa (1836-86)


A nudez de Kali tem um significado parecido. Muitas vezes ela é descrita como vestida de espaço ou de céu. Em sua nudez absoluta e primordial ela é livre de qualquer cobertura de ilusão. Ela é Natureza (Prakriti em sânscrito), despida de roupas. Isso simboliza que ela é completamente além do nome e da forma, completamente além dos efeitos ilusórios de maya (falsa consciência). Sua nudez representa a consciência totalmente iluminada, não atingida por maya. Kali é o fogo brilhante da verdade, que não pode ser escondido pelas roupas da ignorância. A verdade simplesmente incendeia qualquer roupa que tenta cobri-la..


Ela possui os seios cheios; sua maternidade é uma criação sem fim. Seu cabelo desalinhado forma uma cortina de ilusão, o tecido do espaço-tempo que organiza a matéria do mar caótico de espuma quântica. Sua colar de cinqüenta cabeças humanas, cada uma representando uma das cinqüenta letras do alfabeto sânscrito, simboliza o depósito de conhecimento e sabedoria. Ela veste um cinto de mãos humanas cortadas - mãos que são os principais instrumentos de trabalho e por isso significam a ação do karma. Por isso os efeitos obrigatórios desse karma terem sido superados, cortados, como o foram, por devoção a Kali. Ela abençoou o devoto libertando-o do ciclo do karma. Seus dentes brancos são um símbolo de pureza (do sânscrito Sattva), e sua longa língua, que é vermelha, representa o fato que ela consome todas as coisas e denota o ato de provar ou apreciar o que a sociedade afirma ser proibido, ela aprecia todos os sabores do mundo.


Kali contém o ciclo completo de criação e destruição, e isso é representado por seus quatro braços. Ela representa os ritmos criativos e destrutivos inerentes ao cosmos. Suas mãos direitas, fazendo os mudras de "não temas" e concedendo dádivas, representam o aspecto criativo de Kali, enquanto as mãos esquerdas, segurando uma espada ensangüentada e uma cabeça cortada, representam seu aspecto destrutivo. A espada ensangüentada e a cabeça cortada são a destruição da ignorância e o amanhecer do conhecimento. A espada é a espada do conhecimento, que corta os nós da ignorância e destrói a falsa consciência (a cabeça cortada). Kali abre os portões da liberdade com essa espada, tendo cortado os oito elos que prendem os seres humanos. Finalmente seus três olhos representam o sol, a lua, e o fogo, com os quais ela consegue observar os três modos do tempo: passado, presente e futuro. É daí que vem a origem do nome de Kali, que é a forma feminina de 'Kala', o termo sânscrito para Tempo.


Um outro aspecto simbólico, mas que dá muito o que falar, de Kali é sua proximidade com o solo de cremação:


Ó Kali, Tu és afeiçoada aos solos crematórios;
então eu transformei meu coração em um
para que tu, uma residente de solos crematórios,
possas dançar lá sem cessar.
Ó Mãe! Não possuo outro vão desejo em meu coração;
o fogo da pira funerária está queimando lá;
Ó Mãe! Preservei as cinzas dos cadáveres ao redor
para que Tu possas vir.
Ó Mãe! Mantendo Shiva, o conquistador da Morte, sob Teus pés,
Venhas, dançando ao som da música;
Prasada aguarda com seus olhos fechados
... Ramprasad (1718-75)


A moradia de Kali, o solo crematório, é um lugar onde os cinco elementos (Sânscrito: pancha mahabhuta) estão dissolvidos. Kali mora onde a dissolução acontece. Em termos de devoção e adoração, isso mostra a dissolução de acessórios, raiva, desejo, e outras emoções, sentimentos e idéias que nos mantêm prisioneiros. O coração do devoto é onde tudo queima, e é nesse coração que Kali reside. O devoto faz sua imagem em seu coração e sob suas influências queima todas limitações e ignorância nos fogos crematórios. Esse fogo que queima dentro do coração é o fogo do conhecimento, (Sânscrito: gyanagni), presente de Kali.


A imagem de Shiva deitado sob os pés de Kali representa-o como o potencial passivo da criação e Kali como sua Shakti. Shakti é o princípio criativo feminino Universal e a força energizante atrás de todas as divindades masculinas incluindo Shiva. Shakti é conhecida pelo nome de Devi, da raiz 'div', que significa brilhar. Ela é a Brilhante, que possui nomes diferentes em lugares diferentes e com diferentes aparências, como o símbolo dos poderes doadores-de-vida do Universo. Sem o i, Shiva é Shva, o que em sânscrito significa cadáver. Isso sugere que sem sua Shakti, Shiva é impotente ou inerte.


Kali nos mostra como o mundo é apenas um jogo dos deuses. Ela traz em sua aparência selvagem a criatividade espontânea do reflexo divino. À medida que Kali é identificada com o mundo dos fenômenos, ela apresenta a corporificação do mundo que forma a base de sua natureza efêmera e imprevisível. Em sua dança louca, cabelo desgrenhado, e berro sinistro faz-se a alusão de um mundo vacilante, fora de controle. O mundo é criado e destruído na dança selvagem de Kali, e a verdade da redenção está na nossa percepção de que também somos convidados a fazer parte dessa dança, para permitir a batida frenética da dança de vida e morte da Mãe.


Ó Kali, minha Mãe cheia de Êxtase! Sedutora do
onipotente Shiva
Em Tua alegria delirante Tu danças, batendo
Tuas mãos juntas!
Tua és o Motor de tudo o que se move, e nós
somos nada senão Teus brinquedos
...Ramakrishna Paramhans


Kali e seu cortejo dançam aos ritmos ditados por Shiva (Senhor da destruição) e seus seguidores zoocéfalos que vivem no Himalaia. Associados com o caos e destruição incontrolável, os seguidores de Kali exibem espadas e carregam acima de suas cabeças cálices de caveiras de onde bebem o sangue que os intoxica. Kali, como Shiva, possui um terceiro olho, mas em todos os outros aspectos os dois são diferentes. Os membros negros e definhados de Kali, seus movimentos angulares e caretas cruéis carregam uma intensidade selvagem. Seu cabelo solto, colar de crânios e capa de tigre chicoteiam em torno de seu corpo à medida que ela bate os pés e as palmas ao ritmo da dança.


Muitas histórias descrevem a dança de Kali e Shiva como a que "ameaça destruir o mundo" por causa de seu poder feroz. A imagem de Kali dançando com Shiva segue o mito do demônio Daruka. Quando Shiva pede que sua mulher Parvati destrua esse demônio, ela entra no corpo de Shiva e se transforma com o veneno que é armazenado em sua garganta. Ela emerge de Shiva como Kali, de aparência feroz, e com a ajuda de seu cortejo bebedor de sangue ataca e derrota o inimigo. Kali, no entanto, ficou tão intoxicada com o entusiasmo pelo sangue da batalha que sua fúria e apetite selvagem ameaçaram destruir o mundo todo. Ela continuou sua violência até Shiva manifestar-se como uma criança e cair chorando no meio do campo de cadáveres. Kali, enganada pelo poder de ilusão de Shiva, tornou-se calma à medida que amamentava o bebê. Quando a noite chegou, Shiva fez a dança da criação (tandava) para agradar a deusa. Deliciada com a dança, Kali e seu cortejo juntaram-se a ela.


Essa imagem impressionante e intensa revela perfeitamente a natureza de Kali como a Divina Mãe. Ramaprasad expressa esse sentimento da seguinte forma:


Veja minha Mãe brincando com Shiva,
perdida num êxtase de prazer!
Bêbada com um gole do vinho celestial,
Ela oscila, e mesmo assim não cai.
Ereta Ela permanece no peito de Shiva,
e a terra Treme sob Seu passo;
Ela e Seu Amo estão loucos em frenesi.
Afastando todo medo e vergonha.
... Ramaprasad (1718-75)


Até hoje os devotos de Kali são atraídos para ela por causa de suas qualidades humanas e maternais. Nas relações humanas, o amor entre mãe e filho é geralmente considerado o mais puro e mais forte. Da mesma maneira, o amor entre a Deusa Mãe e sua criança humana é considerado a relação mais próxima e carinhosa com a divindade. Conseqüentemente, os devotos de Kali formam com ela um laço de intimidade e amor. Mas o devoto nunca esquece os aspectos demoníacos e assustadores de Kali. Ele não distorce a natureza de Kali e a verdade que ela revela; ele não se recusa a meditar em seus traços apavorantes. Ele os cita repetidamente em suas canções mas nunca é repelido por eles. Kali pode ser assustadora, louca, a mestra descuidada de um mundo fora de controle, mas ela é, apesar de tudo, a Mãe de tudo. Como tal, ela deve ser aceita por suas crianças - aceita com admiração e pavor, mas mesmo assim aceita. O poeta, num tom íntimo e iluminado, trata a Mãe da seguinte forma:


Ó Kali! Por que Tu perambulas nua?
Tu não tens vergonha, Mãe!
Vestes e ornamentos Tu não tens nenhum;
no entanto Tu te gabas em ser a filha do Rei.
Ó Mãe! É um mérito de Tua família que Tu
Coloques teus pés em Teu marido?
Tu estás nua; Teu marido está nu; ambos vagam pelos solos de cremação.
Ó Mãe! Estamos todos com vergonha de você; coloque tua veste.
Tu jogaste fora Teu colar de jóias, Mãe,
E vestes um colar de cabeças humanas.
Prasada diz: "Mãe! Tua beleza cruel assustou
Teu consorte nu.
... Ramaprasad


A alma que venera sempre se torna uma criança: a alma que se torna uma criança encontra Deus mais freqüentemente como mãe. Numa meditação antes do Sagrado Sacramento, alguma caneta escreveu essa excelente declaração: "Minha criança, você não precisa saber muito para agradar-Me. Apenas Me ame querido. Fale comigo, como você falaria com sua mãe, se ela o tivesse em seus braços."


Nos só ganhamos a dádiva de Kali quando aceitamos ou confrontamos as realidades que ela envia pra nós. Kali, de diversas formas, ensina-nos que dor, mágoa, decadência, morte e destruição não devem ser superadas ou conquistadas com a negação ou tentando explica-las. Dor e mágoa são tecidos na textura da vida humana tão intrinsicamente que nega-los é extremamente vão. Para que nós consigamos realizar a completude de seu ser, para que exploremos nosso potencial como seres humanos, devemos finalmente aceitar essa dimensão da existência. A dádiva de Kali é a liberdade, a liberdade da criança de aproveitar o momento, e só é conquistada após o confronto ou aceitação da morte. Se ignoramos a morte, fingimos que somos fisicamente imortais, fingimos que o ego é o centro das coisas, provocamos em Kali uma risada de deboche. Se confrontamos ou aceitamos a morte, ao contrário, compreendemos um modo de vida que pode encantar-nos e divertiremo-nos com o jogo dos deuses. Aceitando a mortalidade estaremos prontos para ir, cantar, dançar e gritar. Kali é a mãe de seus devotos não porque os protege da maneira que as coisas realmente são, mas porque ela revela a eles sua mortalidade e com isso liberta-os para agir com plenitude e livres, liberta-os da inacreditável teia de ligação que são a pretensão, praticidade e racionalidade adulta.

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