NA FONTE DO PENSAMENTO FRANCISCANO - ORLANDO TODISCO


Imagem do livro Prayers for Peace, de 1958

Acima de todas as graças e dons do Espírito Santo, que Cristo concede a seus amigos, está o vencer a si mesmo e com boa vontade, pelo amor de Cristo, suportar penas, injúrias e opróbrios e privações.
(I Fioretti di San Francesco, c. 8 )


Na fonte do pensamento franciscano


O ser como expressão do direito de ser, a existência como reivindicação do que nos pertence e a vida como ostentação do poder

No final da leitura do trecho do Evangelho (Mt, 10, 9) – que nos convida a ir pelo mundo sem “alforje nem bordão”, cobertos apenas pela luz da “boa nova” –, Francisco, com 26 anos, no outono de 1208, exclama na igreja da Porciúncula (Assis): “é o que desejo, é o que quero”, isto é, ir pelo mundo não armado como rico, para se defender ou para humilhar, mas como irmão. É um vento novo que transfigura o movimento de renovação social geral – é a idade das comunas –, eleva sua índole sem recusar as formas, radicaliza a perspectiva sem desacelerar a corrida. O olhar sai do âmbito do eu para a direção do nós, suscitando cenários novos de acordo com uma convivência inspirada na lógica altruísta, não possessiva ou elitista, contra a atitude difundida de apropriação, que atenua o encanto das coisas, fazendo com que estas percam seu sentido em detrimento da total vantagem do lucro. É este o propósito de Francisco, empenhado em desatar aquele nó de concupiscência que nos comprime na profundeza e que nos empurra para formas dissimuladas de violência, alimentadas de modos diferentes porque justificadas segundo pretextos.
Despertar social – O século de Francisco é empolgante e inovador. A passagem do século 12 para o 13 representa uma revolução excepcional, dentre as tantas da história da humanidade, porque marca a passagem do feudalismo para a comuna e, portanto, da hegemonia aristocrática para o sucesso político e econômico da burguesia. Um afluxo mais intenso de vida na maior parte dos países europeus – da Itália até a Catalunha, em Flandres, no vale do Reno, nas cidades alemãs, no vale do Ródano, nos Países Baixos – parece despertar a humanidade de um profundo torpor.
De família dedicada ao comércio, Francisco não pretende frear a corrida, nem interromper o crescimento, mas impedir que sejam gerados desequilíbrios e desigualdades; não quer se libertar do peso de tradições preciosas e de formas herdadas de vida, mas impedir que estas se tornem motivo de dilacerações sociais. Ele não quer que a competição chegue ao rompimento e ao conflito e que o crescimento cause divisões e contraposições entre quem está em cima e quem está embaixo, entre quem tem e quem não tem, entre quem vive como protagonista e quem vive como parasita. Como realizar este ambicioso objetivo de elevação social na paz? Não há outro caminho senão problematizar a índole do poder indo à fonte, onde se ergue a voz do direito de ser e onde se amadurece o direito ao controle sobre aquilo que consideramos estar em nosso serviço. O ser como expressão do nosso direito de ser, a existência como reivindicação daquilo que nos pertence e a vida como ostentação do poder, que, com a força, demonstra que o próprio valor são formas que aludem a uma visão de conjunto. É esta que é necessário retificar, saneando o subsolo.
Formas difundidas de contestação da Igreja e da sociedade – Francisco conhece as muitas formas de contestação em relação à Igreja e de rebeldia em relação ao tecido social. São movimentos que se inscrevem numa época em que a semente evangélica, talvez com dificuldade, mas certamente com força, pressiona, desde as profundezas, a sociedade. Francisco se deixa conquistar por ela, testemunhando a fecundidade e manifestando sua beleza. Qual vida Francisco sente nascer e como a alimenta? Ainda que de modo inicialmente vago, ele sente a lógica do tempo como alheia, porque esta tem uma marca possessiva e individualista. Ele sonha com um estilo de vida de comunhão com todas as criaturas, para além das antigas e novas formas – em sua maioria, divisórias e opositivas. A humanidade está num vórtice de culturas e de problemas que por um lado exigem a inteligência e por outro despertam sentimentos, às vezes de exaltação, mas mais frequentemente de desforra e de rompimento. Qual é o norte que conduz à partilha, além da contraposição, à solidariedade e não à exploração? Isto que Francisco procura é como a ilha de Kant, circundada por mares em tempestade, na qual gostaríamos de morar, mas custamos a vê-la e a alcançá-la. Ele percebe uma voz no ar – basta pensar nos muitos acordos frágeis de paz que, na Assis da época, divididos entre maiores e menores, eram firmados –, uma voz que convida a pôr fim nos conflitos destrutivos, que mortifica a vida e que empobrece a história; percebe profundamente, ainda que sepultada nos abismos do ser, a necessidade de dar antes de tomar, de proteger antes de pisar. Francisco logo compreende que se trata de uma voz que ressoa na história, mas que não é histórica, porque a engloba. É a voz de Deus que, segundo a história do Evangelho, mesmo sendo Absoluto se absolve da condição absoluta e vem habitar no tempo; mesmo sendo Onipotente renuncia à onipotência subindo na Cruz; mesmo sendo Sábio pronuncia a palavra mais alta – amor – a propósito do sujeito mais problemático – o inimigo. Anuncia-se uma espécie de transfiguração do horizonte do ser para além do eu, da razão, da consciência experiencial. Vislumbra-se um movimento para colocar em discussão o poder como “domínio” em favor do poder como “autoridade”, passando do poder de quem impõe ao poder da “coisa” que se propõe – é a lógica da potência sem poder. Sem dúvida, o processo que ele vislumbra contradiz no fundo o caminho da história, assinalado pelo desejo de uma autoafirmação não de escuta, de domínio, não de serviço. Mas esse é um bom motivo para se render ao passo obscuro do tempo, cedendo ao peso de suas contradições? Francisco está convencido que esta semente da cessação do eu em favor do outro, do poder como domínio, em favor do poder como autoridade, de fato faz do potente também impotente, porque, mais do que aquele que propõe, ela fala e persuade a “coisa” proposta contra qualquer narcisismo egolátrico. Trata-se de uma lógica sem lógica, anterior a todas as lógicas – a lógica da gratuidade –, que o Evangelho exalta como autenticamente divina, como um prolongamento daquela que presidiu a criação do mundo – em relação ao qual somos constituídos, não constituintes –, resposta à voz que chama ao ser, não pergunta nem direito. Francisco alimentou essa semente, recebeu dessa fonte, surpreendendo e, no final, encantando os homens do tempo. É a voz da liberdade que, entendida como libertação de vínculos egolátricos e oclusivos, se exprime na gratuidade; ou melhor, é a potência como serviço, ou, se quisermos, é a potência do serviço.
Francisco e a voz que chama
Do domínio ao serviço – A voz do poder como domínio soa potente na História. O nosso tempo é de potência militar, de potência econômica, de potência científica, expressões de uma única potência – a potência da razão –, que subjuga o espaço e sujeita para si o tempo. A humanidade sempre obedeceu essa voz. Agora – essa é a pergunta – é possível fazer ecoar uma outra voz, que não é obra da razão, capaz de abrir um novo capítulo da História e, logo, de olhar de outro modo para as criaturas, sejam elas racionais ou irracionais, no contexto de um objetivo diferente, não de subjugação de um por parte de outro, mas de irmandade de um por obra de outro, não de enfraquecimento de um por parte de outro, mas de oblação de um ao outro com o fim de seu efetivo fortalecimento? Mas como alcançar essa profundidade e perseguir esse objetivo ficando dentro da lógica da razão, que é a lógica da potência como controle e sujeição, com um caráter propriamente mercantil? Não seria ainda uma versão de potência dominadora que, ficando na órbita da razão, quisesse manter sob controle a potência da razão? É esta, no fundo, a arrogância daquele que, por meio do pensamento instituidor, não se contenta em ser imagem de Deus, mas invertendo a relação, faz de Deus a imagem de si em conformidade com a primazia da razão e da sua pretensão legislativa. De fato, aquele que participa do fundamento é dono da construção inteira e, portanto, é tanto o fundamento como a construção. O mesmo se pode dizer de quem, ao mostrar com a razão a fraqueza desta, não percebe que confirma sua potência, mesmo que seja para contestá-la. Se é a razão que mede sua potência – é o prolongamento da lição de Kant –, então inevitavelmente a pessoa é tomada pela prática da potência, com a consequência que a vida só pode ser – e infelizmente parece que é – um campo de batalha, conduzida com armas sofisticadas, não apenas militares, mas também sociais, econômicas, políticas, culturais – formas diferentes desta única potência que oprime uns por parte de outros, todos tomados no vórtice da mesma lógica, alguns para manifestar sua fraqueza, outros para exaltar sua força.
Francisco “sai” do mundo – Francisco, numa rara passagem autobiográfica, diz que, depois de ter passado um certo período entre os leprosos, “sendo misericordioso para com eles”, exivi de saeculo, saiu do mundo, isto é, do modo usual de pensar. Não é possível, de fato, com a razão, abrir-se a algo que não seja ela própria, ou propor com ela algo que lhe seja alheio ou que esteja fora de seu território. Como pode a razão com a razão, continuando fiel a si mesma, sair de si própria para se abrir àquilo que está além dela? E, caso isto aconteça, como reconhecer se é “outra” coisa que não a razão? Se não fosse possível colocá-la em silêncio a não ser com a razão, reconhecer a última palavra quanto à sua potência, seríamos induzidos a considerar o conflito, ou, em geral, a contraposição, como um dado que não se pode problematizar, e nós como espectadores impotentes de um duelo cujo êxito é a vitória do mais forte. De qualquer forma que for exercida, a razão sai vitoriosa, sempre da parte dos poderosos.
Francisco não segue a razão, nem se deixa encantar por sua lógica. Ele muda de rumo: antes da exploração, a contemplação, antes da pergunta, a escuta. Seguindo o Evangelho, ele indica um outro território, ou, ainda, um cenário diferente, não considerando a razão fundamental e originária, mas a derivada, mesmo que preciosa e insubstituível. A sua intuição, não dita, mas implícita naquilo que disse, é que o real não existe porque é racional, prolongamento de uma cadeia que teria origem no eterno e que uniria numa unidade o tempo e seus fenômenos. Deus não criou porque era racional que criasse, nem deu a redenção porque era racional – isto é, lógico – que viesse ao mundo e seguisse as suas criaturas, insensatas e rebeldes. Qual é o papel da razão? Onde está a força da lógica? O criado é um dom por parte de quem, não precisando de nada, quis nos envolver com sua luz. É o início da festa do ser. Como interpretar e viver, então, a própria aventura no tempo, ignorando esta “lógica altruísta”, ou, pior, subordinando-a a uma lógica reivindicativa e protestativa? É esta decisão simples e revolucionária que Francisco toma com a ousadia e a profundidade do Cristo, dom do Pai para a humanidade. Ele propõe como modelo não os apóstolos ou a Igreja primitiva, mas o próprio Cristo, portanto, não propõe formas específicas de redenção, mas a própria fonte da redenção. O problema não concerne aos direitos de alguns e aos deveres de outros, ou aos bons que devem ser favorecidos e aos injustos que devem ser condenados. O problema concerne a todos – àqueles que têm razão e àqueles que não a têm, aos ativos e aos preguiçosos – na medida em que se trata de dar início ao motivo inspirador da existência ou, ainda, ao saneamento do subsolo. Em qual lugar procurar o segredo daquilo que desata para unir, que alimenta comungando, que revela os segredos dos corações, a não ser nos abismos da bondade divina? Qual estilo a ser proposto, a cultura a ser elaborada, as orientações a serem assinaladas para enfrentar as oscilações do tempo, em vista de um salto de qualidade? O que Francisco quis dizer quando, no Testamento, relembrando a sua conversão e os primeiros passos de seu projeto de vida, escreve que “ninguém sabia me dizer o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo me revelou que eu devia viver segundo o santo Evangelho”? Qual o alcance desta anotação, aparentemente autobiográfica, mas, na verdade, uma abertura distraída e provocante sobre seu tempo?
Justamente por ser uma época de grandes mudanças, as divisões se tornam mais marcadas e a ostentação mais visível, assim como se mostra mais urgente a comunhão, em vista de um modo de ser vivido na festa, não no luto, mas na solidariedade, não na contraposição entre irmãos, mas entre inimigos ou estranhos. O que permanecia efetivamente inativo? Qual semente estava secando? Francisco está perturbado e pensativo – com desejo de ativar uma força que se revele na comunhão e que, exprimindo-se na criatividade, transforme os sujeitos em protagonistas, não em patrões – firmemente convencido de que a grandeza não está em ter ou sujeitar, mas em dar e servir. A filiação divina, fruto da obra de redenção de Cristo, se impõe e é testemunhada como fraternidade humana, alargada a todas as criaturas. É a grande “boa nova” do Evangelho, que, perante sua luz, inverte a perspectiva dominante, isto é, não mais a fé em função da razão ou a razão em função da fé, mas o envolvimento da razão e da fé na lógica altruísta, segundo a qual antes de ter é preciso dar, antes de interrogar é preciso escutar, assumindo que o Evangelho não é um feixe de verdade, mas um lugar de fraternização universal.
Além da objetivação da razão e da fé
A doação, alma inspiradora dos percursos da razão e da fé – O objetivo a ser alcançado é o da comunhão entre todas as criaturas, ou seja, o sacrum commercium omnium creaturarum, reativando uma circularidade que não exclua nada, além do âmbito da razão e além dos caminhos da fé.  É o de colocar-se, para além destas duas asas, à procura daquilo que permite o voo. A energia divina, que a encarnação do Verbo divino introduziu no tempo, se mostra bloqueada, às vezes, desviada, ou, talvez, apenas menosprezada, mas, certamente, não colhida em sua radicalidade explosiva. Isso porque a atenção se deixa capturar por uma forma específica de vida ou por uma dimensão do ser, conforme as forças em campo se coagulam e se impõem. O olho parece incapaz de alcançar aquela profundidade abismal em que se perdem as nossas raízes. Seguindo os percursos da razão ou as indicações da fé, tendemos a absolutizar uma aventura dentre as tantas possíveis, acreditando, erroneamente, que se pode circundar as verdades, que, porém, nos guiam. Em que momento começa e acaba o  bem? Como é possível defini-lo? É preciso educar o olho para ver as coisas de outro modo. A pluralidade das situações, das expressões religiosas e culturais, mais que em termos de desforra de umas contra outras, deve ser interpretada como confirmação de uma fonte originária, para a qual os riachos, nos quais muitas vezes nos perdemos, devem conduzir. Este é um dos sentidos do convite de Francisco para ser minores et subditi omnibus, isto é, para não estar fora, sobre ou contra os outros, mas para testemunhar um modo de ser que ajude a desatar a rigidez dos estilos de vida, herdados e nunca problematizados, em nome da fonte comum, para cuja luz todas as coisas parecem preciosas e caducas ao mesmo tempo. Os inimigos não existem fora de nós. A fonte deles é a mesquinhez do espírito, a miopia da inteligência. Francisco quer que se veja a luz também onde ela não brilha. As formas conflituais são a confirmação de dilacerações interiores, que têm raízes distantes, alimentadas por tudo aquilo que suspeitamos que possa contestar o nosso poder ou reduzir seu âmbito. O testemunho de minoridade e de sujeição tem sentido e peso e se amadurece dentro desta lógica de autêntica liberdade criativa.
Contra a tendência de possuir – A recusa do dinheiro, por parte de Francisco, é indicativa, sobretudo do que ele detesta, isto é, o dinheiro como símbolo do poder dominador, instrumento da arrogância social, ao longo de uma hierarquização que muda de grau, mas conserva inalterada a lógica, potestativa e de concupiscência. Francisco quer se afastar desta lógica. A sua prática ascética, rigorosa e constante, não tem outro objetivo senão resistir à tentação de possuir, inimiga da comunhão – aquele que possui, no fim, se mostra possuído por aquilo que possui. Em outubro de 1223, Francisco, excepcionalmente inquieto por causa do rumo que sua Família estava tomando, ouvirá o chamado da amiga Clara: “mas por que você se angustia tanto? A Ordem não é sua, é dele, de Deus, o pastor supremo”. É o toque purificador da fé que se concluirá com a identificação com o Crucifixo em La Verna. É a liberdade como libertação da pretensão de ser proprietário de alguma coisa cuja fecundidade é medida em base à capacidade de ampliar os espaços de vida e de pensamento. Enquanto não envolve o espírito, tornando-o transparente, a liberdade é uma bandeira que assinala uma prisão.
O outro não é o não-eu – O ponto central é constituído pelo lugar que é atribuído ao eu, se primeiro e qualificante, ou, ao contrário, sucessivo e funcional. O Ocidente sempre colocou no centro o eu – a razão, a consciência, o horizonte experiencial –, medida suprema de todas as coisas, contribuindo para a ocidentalização do mundo. O outro é o não-eu, objetivado ou objetivável, a ser assimilado em si numa gama de matizes, da imposição da própria cultura à hostilidade declarada em relação a quem – indivíduo, grupo ou nação – não aceita as nossas ideias ou se rebela a elas, excluído do debate comunitário, ou relegado à posição subalterna. É a lição da Europa colonizadora. Mesmo onde é contestada, tal Europa domina; mesmo que seja rechaçada, é rechaçada com as suas próprias armas. “Não há conflitos que não sejam conflitos originariamente próprios da Europa, quaisquer que sejam as terras ou os mares em que ocorrem. Para esta europeização do mundo não foi mais necessário ter o continente europeu como centro. Uma vez que a Europa se expandiu em todo o mundo, o espírito europeu não está mais na Europa, transmigrou alhures. Na América do Norte, por exemplo, mas não creio que seja menor na Ásia – no Japão em primeiro lugar, depois na China, cada vez com mais intensidade e convicção, e, em seguida, nos vários países do sudeste asiático”. Nesta transmigração, a “razão” europeia, a razão enquanto potência, acentuou seu lado prático-operativo porque foi identificada com o eu – res cogitans – conforme à lógica daquela egolatria narcisística que eliminou do horizonte toda demanda que pudesse atrapalhar sua afirmação. Domesticando o objeto para a sua lógica, a razão colocou apenas as perguntas que estavam a seu alcance durante um percurso ou método que considerou produtivo, para confirmar seu primado e sua força resolutiva.
O conhecimento como re-conhecimento – Pois bem, no centro da Europa veio erguendo-se uma outra voz, que abriu um outro caminho, revelou uma outra perspectiva, segundo a qual ao eu – a razão, a consciência experiencial… – não cabe o primeiro lugar, a partir do momento que este eu existe apenas se quisermos que exista, portanto, ele é derivado e devedor. O eu não é o primum. O eu é derivado. Se for assim, o eu deve crescer com uma atitude animada por profunda gratidão. No princípio é aquele – Deus, os pais, a sociedade… – que podia não nos querer. O conhecimento, do modo que for alcançado, deve ser no fundo re-conhecimento, na consciência de que aquilo que se conhece é, no fundo, expressão de um gesto de gratuidade original, isto é, que emerge daquele fundo de infinitas possibilidades do qual a liberdade criativa o conduz ao ser. É a luz que dá alimento e cor à nossa existência, empenhada em renovar sua lógica através de uma gestualidade análoga. Do domínio à admiração: este o grande salto de qualidade que Francisco propõe. Isto foi antecipado naquela cena espetacular, imortalizada por Giotto, que retrata Francisco discutindo com o pai Bernardone – na praça de Assis. A fé e a razão. Francisco escolhe a fé como horizonte de luz, Bernardone escolhe a razão como instrumento de poder, a primeira revestindo-se de fraqueza, a segunda de potência; uma a serviço dos outros, a outra em defesa de si próprio. Uma discussão apaixonante, que se repete na história nem sempre de forma transparente, mas ainda sim com a mesma radicalidade. A razão do poder se mede com a razão da fraqueza, a razão triunfante com a razão crucificada – o cenário que a fé revela não faz parte do circuito da “loucura” segundo os gregos, como diz São Paulo? É o imenso panorama da fé cristã que Francisco revela, incitando a razão a deixar de lado sua arrogância e, ainda que confiando nela para se difundir, a ser ousada, não na submissão, mas na liberdade criativa, graças à qual nos tornamos protagonistas mas não déspotas, partícipes do banquete da vida com respeito, sem arrogância, enriquecendo-o, não depredando-o.
Originalidade do pensamento franciscano – A força revolucionária da família franciscana emerge deste confronto, e a sua proposta, atenta em recuperar a inspiração originária do cristianismo com o retorno às origens, ou melhor, ao Evangelho como forma de vida, se mostra sugestiva. É uma voz nova que suscita entusiasmo e faz pensar. Aliás, pode-se talvez dizer, não sem um pouco de exagero, que a época medieval é uma época original em relação tanto à época grega quanto à moderna por causa ou graças à presença franciscana (Boaventura, Scotus, Ockham). De fato, à pergunta:  “Qual a perfeição que melhor resume e qualifica o rosto de Deus e do homem, a razão ou a vontade, a necessidade ou a liberdade?” a escola franciscana responde, de modo substancialmente concorde, que o verdadeiro rosto de Deus e do homem é constituído pela liberdade criativa, que deve ser salvaguardada e alimentada, não só como chave hermenêutica do texto sagrado, como fez Joaquim de Fiori, mas garantida também como uma autêntica fenomenologia teológica (Boaventura), como uma teologia de tipo prático (Scotus), como um sistema político adequado (Ockham), como uma ação pastoral de tipo ecumênico (Raimundo Lúlio).
Em suma, trata-se de um novo modo de pensar, radical a ponto de exigir também que se deixe de lado uma certa terminologia, filosoficamente consolidada. De fato, o mundo e as suas criaturas são um dom, não um efeito. A lógica do dom vai bem além da lógica do efeito, sendo este uma figura empobrecida da doação, no sentido que, remetendo à categoria de causa, o efeito faz parte do circuito da doação, mas não exprime a sua substância. De fato, a doação obedece a exigências infinitamente mais complexas e potentes em relação às fontes, bastante modestas e de tipo operativo, do que a causalidade eficiente. Além disso, expressão de um gesto gratuito, o mundo e as criaturas não se submetem ao porquê, a não ser em nível horizontal e imediato e de forma limitada ao conhecimento de seu mecanismo. As coisas não existem porque são racionais. Não é na direção do “porquê” que se descobre o segredo do real, pois as criaturas são “gratuitas”, isto é, sem porquê, mas não por isso irracionais. Interpretando as criaturas como a voz de Deus no tempo, o tema do fundamento se mostra totalmente à margem, aliás, talvez mostre seu rosto alterado, privado da luminosidade liberal própria do grande senhor. O teocentrismo ou o cristocentrismo nos incitam a transcender, sem hesitação, o Deus como “fundamento”. A distância semântica entre a figura do “fundamento” e a figura da “doação” é imensa, pois uma remete à eficiência causal, e a outra ao altruísmo gratuito. Para o franciscano, Deus não é aquele que “funda”, com a conotação de estranhamento e de desencanto. Se a categoria de efeito, com a alusão à causa e, logo, ao fundamento, remete à transcendência de Deus até o estranhamento – Deus causa sui, ou aquilo que Deus é em si, ou que age por si –, a categoria da doação e, portanto, da liberdade criativa no sentido altruísta alude ao Deus fora de si, ao seu fazer-se presente – o Emanuel ou Deus com nós – ao longo dos infinitos caminhos do tempo. Talvez aquilo que seja preciso recordar como compêndio desta mudança de registro também terminológico é a transcendência da área da “objetivação”, para a qual o nosso olhar, tendencialmente científicio, é geralmente educado – as criaturas como objetos dos quais se tira proveito –, em favor da área da “doação”. É esta a figura que bem exprime a sensibilidade teorética, além de pastoral, da família franciscana, porque leva consigo o germe de uma nova ontologia – ser como dom, não como direito –, graças à qual a apropriação ou a manipulação ficam de lado. É a lógica do Cântico das criaturas.
Por Orlando Todisco*
*professor de História da Filosofia Medieval da Universidade de Cassino e no Seraphicum de Roma, Itália
Traduzido por  Pedro Heise
Fonte:http://revistacult.uol.com.br/home/2013/12/na-fonte-do-pensamento-franciscano/

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