A ARTE DAS QUEIXAS E CORTESÃS


No século XVII, surgiram lugares exclusivamente voltados para os divertimentos. Os “bairros de prazer” estavam sob controle estrito do shogunato. Novo Yoshiwara florescente, xilogravura, Watanabe Nobukazu, 1903.

 

A arte das gueixas e das cortesãs

 

Com a delicadeza de uma flor, elas manejam o pincel e dedicam-se ao canto, à dança, à poesia e à cerimônia do chá. Elas estão ali para satisfazer os homens. Sem jamais caírem na prostituição



O termo “gueixa” (em Kyoto, a palavra utilizada com mais frequência é geiko) apareceu em época bastante tardia no Japão. Significando literalmente “pessoa que se distingue nas artes”, surgiu por volta do final do século XVII, no momento em que o país ingressava na era moderna de Edo (1603-1868). A palavra recobria uma realidade que se esboçava desde o século XV, mas trazia em si a herança de uma noção bem mais antiga e mais vasta, aquela das mulheres que, devotadas à diversão dos homens, expressada em textos já a partir do final do século X, e que foram chamadas mais amplamente de cortesãs, como relata a grande especialista Jacqueline Pigeot em Femmes galantes, femmes artistes dans le Japon ancien – XIe-XIIIe siècle (Gallimard).

As gueixas do período Edo eram, de fato, versadas em artes tão diversas entre si quanto a dança, o canto, o alaúde tradicional, a cerimônia do chá, o arranjo floral, a composição poética ou a conversação, mas, que fique bem entendido, elas não se entregavam à prostituição. Ainda no começo do século XVIII, o termo para dançarina, odoriko, era mais amplamente empregado, e foi difícil, ao longo de todo o Edo, estabelecer uma nítida distinção entre gueixas e cortesãs, estas últimas sendo igualmente, com frequência, artistas renomadas.

A existência de mulheres que faziam de seu poder de seduzir uma profissão transparece ao longo dos textos que se multiplicam no século XI. Por mais que seja provável que seu aparecimento remonte a tempos mais recuados, é notável que relatos de viagem, cartas íntimas, poemas, façam eco, sob penas masculinas, do conteúdo dessa arte e da realidade de sua sedução.

EM VEZ DE REPROVAÇÃO, RESPEITO

Um texto do final do século X fez a constatação da existência, sublinhando o caráter quase irresistível do prazer experimentado na convivência com as gueixas. Longe de qualquer reprovação moral – ainda que, em algumas passagens, o prazer dessa sedução apareça em oposição à sabedoria –, o escrito celebra o fato de que a presença da gueixa constituía fonte de gozo inegável, saboreado tanto por simples viajantes quanto por aristocratas.

O olhar singular dirigido desde esse momento a essa prática, aliado à expressão frequente de uma compaixão para com a condição dessas artistas, explica sem dúvida a tolerância, mas também o respeito com que elas desde muito cedo foram tratadas. Desenhou-se assim, no período medieval, o retrato literário de cortesãs atraindo com suas canções, com seus barcos atracados ao longo das vias fluviais, viajantes que dificilmente pareciam ter condições de resistir à sua sedução. “Suas vozes detêm as nuvens, seus cânticos fazem tremer as águas e os ventos. Não existe viajante que não esqueça de seu próprio lar”, escreveu Ôe no Masafusa (1041-1111).

Se o grau de perfeição de sua arte é louvado ao longo do período Edo, o amor carnal é exaltado com delicadeza no cerne desses testemunhos, de forma decididamente isenta de qualquer aspecto pornográfico. A dimensão itinerante, quase aleatória, da presença dessas cortesãs, que parecem atuar fora de qualquer quadro administrativo ou territorial, é uma característica dessa época, evocada pelos temas recorrentes do barco, do vai e vem, da atracagem... Aliás, a poética dessas “idas e vindas” ecoa metaforicamente a própria ideia de diversão – o termo “mulheres de diversão” aparece como uma designação dessas cortesãs, mas também das gueixas do período Edo. A existência das gueixas, aliás, foi precedida no século XIII pelas otoko-gueisha, as gueixas-homens, com o encargo de servir e distrair, especialmente, os daimiôs (senhores feudais) e, depois, o público em geral.

HONOLULU MUSEUM OF ART
Cena do novo Yoshiwara, xilogravura, Utagawa Toyoharu, c. 1770.

É impossível não aproximar essa prática da existência de trupes mistas de artistas de rua, chamados de marionetistas, atividade exercida exclusivamente por homens, registrada desde o século XII e acolhida por algumas famílias nos círculos do poder. Certas pinturas do período Edo dão testemunho da permanência dessa espécie de gueixas-homens até meados do século XIX.

Entre as transformações mais importantes provocadas pela organização social rígida do período Edo, esteve o surgimento, no século XVII, de lugares exclusivamente voltados para os divertimentos, os “bairros de prazer”, colocados sob o controle estrito do governo Tokugawa.

A emergência desses bairros reservados inscreveu-se em um contexto urbano particular: o crescimento da capital. Por ocasião do recenseamento de 1733, Edo (futuramente, Tóquio) contava com 536. 380 habitantes; já por volta de 1750, eram mais de 1 milhão de citadinos. Registrava-se uma forte desproporção em favor da população masculina – 63,4 % –, em razão notadamente da presença temporária de proprietários de terras, obrigados por lei a permanecerem parte do tempo na capital, ou de samurais sem trabalho. Comerciantes e trabalhadores itinerantes completavam a fauna que era a parte mais importante da clientela desses animados distritos.

POPULAÇÃO CRESCENTE
 
Nesses bairros rodeados por altos muros e fossos, em cujo interior o tempo escoava de maneira diferente e todas as estritas barreiras sociais nipônicas se desagregavam, elaborou-se uma etiqueta eminentemente complexa, regendo a um só tempo o universo recluso das cortesãs e mulheres da arte de seduzir, e a progressão, no seio desse universo, de seus visitantes. Estabelecido desde 1617 perto de Nihonbashi, transferido depois do incêndio devastador de 1657 para o norte da cidade, nas vizinhanças do templo de Asakusa, o bairro de Yoshiwara abrigava no século XVIII cerca de 1% da população da capital. Entre 1725 e 1787, sua população cresceu de 8.679 para 14.500 habitantes, dos quais 2.500 eram gueixas, cortesãs, prostitutas e kamuro, assistentes, ainda crianças, de cortesãs de alta estirpe.

Se todas as grandes cidades possuíam seus bairros segregados, Yoshiwara era o mais célebre. Os visitantes, flaneurs ou simples transeuntes, chegavam encaminhados pelos guias da época, que obedeciam a uma espécie de encenação espacial: a via de acesso, ao longo do Dique do Japão, era assinala- da pela presença de um salgueiro chorão, chamado de “o salgueiro de onde se volta”. Aquele era o último ponto, sem dúvida, antes da separação do mundo real da cidade.

Antes de alcançar a única porta de entrada, o caminho fazia três curvas fechadas, de maneira a não permitir a um desavisado transeunte qualquer contato visual com aquele universo de prazeres. Tão logo a porta era transposta, abria-se a artéria principal de Nakano-chô, lugar favorito para os deslocamentos dos cortejos das grandes cortesãs, bem como dos clientes, tendo em suas bordas múltiplas casas verdes. Finalmente, dessa avenida partiam ruas de menor importância, que abrigavam casas de chá, locais de encontros e estabelecimentos dedicados a diversões de toda ordem.

OS BAIRROS NA PINTURA
 
Cada uma dessas etapas de um percurso tão urbano quanto mental foi objeto de numerosas representações pictóricas, ao longo de todo o período Edo. A corrente artística chamada de Ukiyo-e (literalmente, “imagens do mundo flutuante”) encontrou na descrição desse tecido social um tema importante, que se desdobrou lado a lado com os próprios retratos dos ídolos desses lugares: cortesãs e atores de kabuki dos quarteirões dos teatros.

Uma de suas problemáticas residiu precisamente nesse deslocamento, efetuado entre a primeira e a segunda metade do século XVII, de uma pintura de gênero de tipo tradicional rumo à concepção de verdadeiros retratos de mulheres individualizadas, denotando por esse novo enfoque personalidades singulares. A importância crescente do papel dessas mulheres – gueixas ou cortesãs de alto escalão – é uma chave na interpretação do discurso estético e intelectual desenvolvido em torno da ideia de mundo flutuante. Com efeito, quem melhor que essas mulheres artistas poderia encarnar a consciência velada da precariedade dos prazeres e glória fugidios desses bairros?

TOKYO NATIONAL MUSEUM
Especializadas em dança e canto, as gueixas eram formadas também em caligrafia, composição poética e conversação
Caso se tente discernir melhor a silhueta das gueixas de Yoshiwara nos séculos XVII e XVIII, a pintura e a estamparia permanecem como fontes essenciais, sublinhando-se, no entanto, uma presença mais rara, proporcionalmente, que a das outras categorias de mulheres desses bairros. Certas obras do século XVII oferecem alguns critérios de distinção, num tempo no qual a fronteira entre gueixas, cortesãs de alta estirpe e dançarinas nem sempre é nitidamente delineada. Um biombo de Hishikawa Moronobu, do final do século XVII, desenvolve, na descrição de um cortejo de cortesã na avenida Nakano-chô, um panorama cheio de imagens dessas distinções sutis. É graças a um detalhe representando um jantar em uma casa de encontros que podem ser isoladas duas gueixas, uma dançando vestida com um quimono furisode de mangas largas, a outra dedilhando as cordas de seu shamisen, alaúde tradicional. Acompanhadas por um tocador de tambor e um músico cego, elas atendem, com sua simples presença e algumas apresentações dançadas e musicais, ricos clientes reunidos para um banquete entre amigos. É o papel que lhes é estritamente atribuído, e o preço de sua companhia é de tal monta que só aos visitantes mais prósperos é possível gozar desse prazer, muitas vezes reservado com muita antecedência. É em meados do século XVIII que o estatuto das gueixas aparece pela primeira vez claramente definido, e desde então lhes é, por decreto governamental, proibido se entregar à prostituição.

MULHERES ABASTADAS
 
Ainda que a maior parte delas estivesse sob contratos livres com as casas de Yoshiwara, algumas evoluíram fora desse recinto, notadamente no bairro não controlado de Fukagawa, a nordeste de Edo, ou no distrito de Gion, em Kyoto. Parece que nesses locais as proibições puderam ser um pouco transgredidas – algumas estampas ecoam esse aspecto –, assim como seus talentos artísticos puderam se exprimir por meio de formas extremamente diversas, entre elas a recitação de canções para o teatro de marionetes, ou mesmo a interpretação de peças cômicas teatrais.

Idolatradas entre todas, representadas até o século XIX por artistas de l’Ukiyo-e que rivalizavam entre si na fixação da melhor cena, ainda que nem sempre fosse fácil identificar nesse contexto o seu status com precisão, as gueixas ocuparam um lugar determinante na edificação de um cadinho cultural singular, que floresceu sobretudo nos séculos XVII e XVIII no coração dos bairros controlados de Edo ou de Kyoto para espalhar para o mundo “secular” o seu brilho. Se a sua elegância e o seu estilo eram copiados, como dão testemunho as imagens pintadas ou impressas das mulheres da burguesia de Edo, foi sobretudo sua educação artística e literária de alto nível, ultrapassando o grau de conhecimento das jovens mulheres das classes abastadas, que lhes garantiu o poder real de sedução e o impacto intelectual que elas tiveram sobre suas contemporâneas. Especializadas nas artes da dança e do canto, elas eram também formadas em caligrafia, na composição poética e na arte da conversação, e exploraram os caminhos do chá, dos incensos e dos arranjos florais.

Para além do desempenho, essa educação intransigente e vasta explica que sua presença, longe de ser simplesmente ornamental, tenha contribuído em Yoshiwara para a emergência de uma sensibilidade estética e de posicionamentos existenciais inéditas, de um refinamento extremo, que influenciou toda a sociedade japonesa.
 
 

por Hélène Bayou*


*Hélène Bayou é curadora do Museu Nacional de Artes Asiáticas – Guimet


Fonte:http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/a_arte_das_gueixas_e_das_cortesas.html

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