Pular para o conteúdo principal

SOBRE A ANATOMIA DOS SINOS DO VENTO



Sobre a anatomia dos sinos de vento


Atado a ponta de um barbante vermelho, para uma das oito paredes do resplandecente Pagode de Porcelana de Nanjing, conjuremos através dessas linhas um sino de vento. Façamos que surja em um dia que termina quente. Quando, de nossa imaginação vaporosa, surgir para nós este objeto, não haverá ainda brisa e ele estará imóvel, o suficiente para que possamos contemplar seu artesanato enquanto durar esse ocaso – mas nem um segundo a mais.
O barbante que o prende ao teto espraia-se do nó coroa até a argola em uma trama de oito fios, cada um deles terminando em oito tubos de metal escuro ou madeira ornados e de diferentes alturas. Entre esses tubos, um último fio central ultrapassa todos os outros em profundidade, sendo composto à meia altura por um badalo, peça que colide com os tubos e produz o som; e em sua ponta, o pêndulo, uma pequena pá de madeira que captura com eficácia e convida o vento ao toque. O fim da reverência milenar do sol de desaparecer por trás do vale libera uma brisa que começa, devagar, a soprar vida em nosso sino e nos oferecer um ângulo obtuso de onde possamos extrair, desse objeto tão peculiar e delicado, alegorias nascidas do ar. Seria possível vê-lo como um símbolo do universo, ou ainda como a forma da Divindade, que ao mesmo tempo que é a realidade, rege-a?



parauma breve história dos sinos de vento, acesse (em inglês): http://www.outdora.com/brhiofwich.html

Desçamos os olhos do nó superior, raiz e nascente como Mito de Criação. Seguindo nessa linha de pensamento, partindo dessa origem, poderíamos considerar cada um dos oito fios como emanação e articulação de sua existência; um aspecto de sua imagem no mundo, um diferente tubo formando um diferente som para representá-lo. Considero haver beleza nessa observação por si própria. Seria possível haver um sino de vento com apenas um tubo, teria ele a mesma riqueza sonora? Penso que não. De forma similar, pois seria possível começar a compreender a Divindade se ela possuísse apenas uma forma, ou observando somente uma de suas representações, uma de suas faces? Acredito que, para vislumbrar em sua totalidade o que é a Deusa e seu tao, precisamos do inumano que é coexaminar todas as suas faces: é no ouvir simultâneo de todas as suas vozes, em harmonia, tecidas pelo vento, que verdadeiramente tentamos a compreensão da Divindade como ela é. Podemos inclusive estender nossa compreensão metafórica de cada um dos tubos, que anteriormente assumimos como as faces da nossa Divindade, se entendemos esses rostos múltiplos como diferentes planos do nosso universo. Suas crescentes alturas podem ser concebidas na estrutura circular na qual essas esferas de realidade se encontram circunscritas, contudo, apresentadas de forma espiral; semelhante aos laços anômalos de Hofstadter, fractal e não-transitivamente se encontram contidas umas nas outras. A música do sino de vento, sob essa análise, representa a interação metafísica entre os diferentes planos do universo, entre as diferentes faces ou representações da Divindade suprema.
Se nos deixamos carregar, entretanto, pelas lufadas do argumento teológico que diz que o Homem foi construído em Sua imagem, faria sentido que da mesma forma pudéssemos encontrar na anatomia de nosso artefato de estudo um mapa para nossa condição mortal. Essa rota, contudo, parece-me levar a uma armadilha do pensamento, pois não parece-me correto concluir que todo mortal é como um sino de vento, pois esse objeto é um objeto criador, de sons e de música, e nem todo homem nasce debaixo do inescapável jugo de criar. Ofereço-nos então a questão: seria o sino de vento uma representação de todo e qualquer deus? Talvez não. Muitas mitologias recorrem a uma entidade, certas vezes superior a todo seu panteão, frequentemente não antropomórfica, energia disforme, responsável pela criação de todas as coisas, até mesmo os deuses. A mitologia grega, por exemplo, oferece-nos o amorfo Khaos. A verdadeira translação mundana da alegoria seria considerar, concluimos, que nossos sinos representam aqueles dotados da carga criadora pura. E quem são, dentre os homens, os progenitores de universos?
Como resposta, nem que por somente mais algumas linhas de texto e devaneio, tentemos com nossas cansadas imaginações pensar numa fábula mais perfeita do que a inexistente história do artista transformado em sino de vento. Os músicos, os pintores, os escultores: sim, esses e outros que vivem de criar e que se rendem à estagnação quando não lhes sopra a Musa e definham, mudos. Os artistas são como os sinos de vento. Capturando o ar desfraldado pelos deuses, desarmados de como conceber de onde vem, capazes apenas de dançar sob a força de suas correntes e produzir, de sua nenhuma resistência, vida. Quando o tempo está calmo, ficam tesos, expectantes como galhos vergados pelo peso das frutas. Precisam daquilo que os atice. Deles somente pelo sopro repentino temos melodia. Sua espera exasperada é sua espátula, pincéis e flautim. À boa observação de um sino de vento a trabalhar, nunca nos parece ser indústria tranquila: é sempre penosa, de aguardo sem fim seguido de convoluta tecelagem produzida como resposta a uma desconfortável vazão; sem a qual, porém, ele é miserável.
Podemos pensar no capturador do sino como os sentidos do artista, concedendo ao mundo autoridade para possuí-lo. Podemos pensar no badalo como a alma do poeta, central ao seu corpo, responsável por se chocar contra as oito vidas e oito máscaras que todo artista veste, por dentro ou por fora. Mas cansam-nos essas analogias sem propósito, rodopiando ao redor da verdade… Do artista, só se pode saber que é instrumento, dobrado pelo vento como quem tem pouca escolha, ou tem nenhuma.


Fonte:https://medium.com/em-portugues/a6d834f52f2

Comentários