DHARMA: QUEM PRECISA DELE? - PEDRO KUPFER



DHARMA: QUEM PRECISA DELE?

Ao montar o programa deste evento, sempre acabo escolhendo os assuntos mais espinhosos, mais difíceis de desenvolver, mais polêmicos e menos conhecidos dentre o enorme leque de opções de estudo que temos no Yoga. Este ano resolvi encarar aquele que talvez seja o assunto mais difícil de se abordar: o dharma. Vocês sabem o que é o dharma? Já ouviram falar nele?

Geralmente pensamos que dharma seja algum tipo de código moral, um grupo de mandamentos ou proibições que nos obriga a andar na linha e que somente lembramos ou invocamos quando nos convém.

Nas últimas décadas, a nossa civilização parece haver perdido sua bússola ética. Nossos líderes políticos ou espirituais pairam no vazio moral, preocupados apenas com as estatísticas, a roubalheira desenfreada e a corrupção em todas suas manifestações.

O poeta irlandês W. B Yeats (1865-1939) falou dos nossos líderes nestes termos:

Os melhores não possuem convicção nenhuma;
Os piores estão cheios de intensidade passional.
Essa crise de valores se estende ao resto da população mundial, que acaba se espelhando nas lideranças. Para você só precisa abrir o jornal de hoje para ver a escalada de desfaçatez e corrupção que rolam soltas. A incoerência entre palavras e ações pode ser vista em qualquer lugar. Lembre que estamos na kali yuga.

É bom lembrar que as nossas ações forjam o nosso caráter e que tudo o que fizermos determinará os nossos karmas futuros.

A palavra virtude vem do latim, virtues, que deriva da mesma raiz que a palavra viril. Então, a pessoa viril, o homem de verdade, não é o que sai dando porrada nos demais. Etimologicamente, a palavra virtuoso designa a pessoa forte, poderosa, independente. Resumindo, as virtudes são qualidades do caráter que nos ajudam a ter uma vida feliz e vigorosa.

Qualquer outra leitura deste termo, como considerar alguém fraco por ser bom ou virtuoso, e uma degradação do conceito de virtude e um sinal da perversão de valores que se consideram desejáveis, que estamos vivendo nos dias de hoje. Isso tudo acontece por conta de avidyá, a ignorância. O remédio prescrito por Patañjali para curar essa doença que é a ignorância e vairagya, o desapego. Porém, cultivar o desapego pode parecer fora de moda neste presente que estamos vivendo, onde aprendemos que morreremos se não mantivermos tudo aquilo pelo qual nos ensinaram a lutar.

E assim, ficamos vivendo nossas vidas inteiras dentro desta equação:
Ignorância ==> senso de permanência das coisas ==> apego

A jornada em direção à iluminação não pode se fazer carregando correntes. Precisamos nos libertar de alguns condicionamentos antes de chegar em algum lugar.

Vamos então entrar no assunto que nos ocupa. Em sânscrito, dharma significa 'suporte', 'aquilo que mantém unido', 'aquilo que aglutina'.

Se existe uma coisa que apóia, que mantém unidas as pessoas, isso é o dharma. O dharma é uma doutrina prática. É a lei inerente à natureza de todos os fenômenos existentes. Não é apenas um conjunto de crenças separadas da vida diária, senão um conjunto de princípios para viver uma vida harmoniosa e benéfica.

O título original da palestra era 'dharma, quem precisa dele?' Entretanto, ele não coube no espaço que tínhamos reservado no folheto da programação. Ficou só 'dharma'. Então, voltamos à pergunta que deu título a esta palestra: quem precisa do dharma?

Do ponto de vista da filosofia hindu, tudo o que podemos querer fazer nesta vida ficará necessariamente dentro de um dos quatro purusharthas, os propósitos humanos ou as aspirações legítimas sancionadas pelo hinduísmo:

1. artha (prosperidade)
2. káma (prazer)
3. dharma (virtude)
4. moksha (libertação ou iluminação)
O dharma é a lei ou a ordem cósmica. Noutro sentido, é a virtude, concebida como um dos objetivos acima citados. É compreendida como manifestação ou reflexo da lei divina.

Enquanto as palavras Yoga e religião significam unir, dharma significa manter unido. O dharma é o que mantém o homem alinado com a sua lei interior, que o conduz da ignorância à verdade. Embora a leitura das escrituras não conduza por si só à iluminação, os ensinamentos nelas contidos provêm uma base e um caminho para viver a espiritualidade.

Apesar de ser a mais antiga religião, a verdade vislumbrada pelos rishis, os videntes védicos, provam que a Verdade presente no hinduísmo está além do tempo e das barreiras culturais.

Nesta altura do campeonato, você pode estar perguntando-se o que é o hinduísmo. A melhor definição que encontramos foi a que B.G. Tilak sugeriu:

A aceitação dos Vedas com reverência; o reconhecimento do fato que os meios ou caminhos para a salvação são diversos; e a tomada de consciência de que o número de deuses a se adorar é grande, são as características que distinguem a religião hindu.
O hinduísmo se chama Sanatana Dharma em sânscrito, a verdade eterna. O hinduísmo não é estritamente uma religião. Está baseado na prática do dharma, o código da vida. Como o hinduísmo não tem um fundador, qualquer pessoa que pratique o dharma pode se considerar um hindu, mesmo que questione a autoridade de alguma escritura, ou até mesmo a existência do Divino.


Quantos deuses existem?
A palavra Deus não existe em sânscrito com o sentido que lhe damos aqui no Ocidente. Claro que alguém poderá ver deuses nos mantras hindus. Pessoalmente, prefiro vê-los como formas de energia, representações simbólicas intuitivas das camadas da existência que transcendem o intelecto. A Brihadáranyaka Upanishad (III:9) deixa isso bem claro neste diálogo:

'Então Vidagdha Shákalya perguntou: ? Quantos deuses existem, Yájñavalkya?
O sábio respondeu de acordo com o seguinte nivid (fórmula invocatória):
? Tantos como são mencionados no nivid do hino a todos os deuses, ou seja, 303 mais 3003 ( = 3306).
? Sim ? disse Shákalya ? mas quantos deuses existem mesmo, Yájñavalkya?
? Trinta e três.
? Sim ? disse ele ? mas quantos deuses há mesmo, Yájñavalkya?
? Três.
? Sim ? disse ele ? mas quantos deuses existem mesmo, Yájñavalkya?
? Dois.
? Sim ? disse ele ? mas quantos deuses há, Yájñavalkya?
? Um e meio.
? Sim ? disse ele ? mas quantos deuses existem, Yájñavalkya?
? Um.
? Sim ? disse ele ? mas quais são os 303 e os 3003 deuses?
Yájñavalkya disse: ? Esses são apenas seus poderes (mahima). Eles são somente trinta e três.
? E quais são esses trinta e três?
? Oito Vasus, onze Rudras e doze Ádityas fazem trinta e um. Com Indra e Prajapati são trinta e três.
? Quais são os Vasus?
? O fogo, a terra, o vento, o sol, o céu, a lua e as estrelas. Estes são os Vasus pois configuram este excelente (vasu) mundo. Por isso são chamados Vasus.
? Quais são os Rudras?
? Os dez ares vitais do indivíduo, mais a consciência, que é o décimo primeiro. Quando eles partem deste corpo mortal, nos fazem chorar (rudra = chorar, gritar). Por isso é que eles são chamados Rudras.
? Quais são as Ádityas?
? Elas são as doze luas do ano. Elas são as Ádityas, porque carregam o mundo inteiro ao longo do tempo. Como elas andam (yanti) carregando (ádá) o mundo, são chamadas Ádityas.
? Qual é Indra? Qual é Prajapati?
? O trovão é Indra. O sacrifício é Prajapati.
? Qual é o trovão?
? O raio.
? Qual é o sacrifício?
? Os animais sacrificais.
? Quais são os seis deuses?
? O fogo, a terra, o vento, a atmosfera, o sol e o céu. Eles são seis pois o mundo inteiro é esses seis.
? Quais são os três deuses?
? Os três mundos (bhúr, bhuva, sváhá), pois é neles que todos estes deuses existem.
? Quais são os dois deuses?
? O alimento e a respiração.
? Qual é o um e meio?
? Aquele que purifica (o vento).
? Mas aquele que purifica é somente um. Como pode ele ser um e meio?
? Porque nele o mundo inteiro prosperou (adhyardhnot). Então, ele é um e meio (adhyardha).
? Qual é o deus único?
? A respiração. Ela é chamada Brahman, o além.'

A conclusão sobre este diálogo, extraído de uma das mais antigas Upanishads, fica com você.




A ética do Yoga é um assunto importante e delicado, que sempre se menosprezou. Ao que parece, os yogis do século XXI estão tão ocupados nos seus misteres, que esqueceram ou passaram a considerar desnecessário deter-se em detalhes aparentemente insignificantes como não mentir ou cultivar o contentamento.

Se você não tiver tempo ou disposição para agir conforme a ética do Yoga, tampouco terá tempo nem atitude para praticá-lo. Por outro lado, é desconfortável falar sobre estes assuntos, porque ninguém gosta de reconhecer-se como mentiroso ou ladrão, para dar os exemplos mais desagradáveis. Ao invés de ver quem vai atirar a primeira pedra, lembremos que yama e niyama são os dois primeiros passos da caminhada, condição indispensável para que a prática dê resultados concretos.

Yama significa controle ou domínio. É o pontapé inicial. Os yamas são as cinco proscrições: não usar nenhum tipo de violência (ahimsá); falar a verdade (satya); não roubar (asteya); não desvirtuar a sexualidade (brahmacharya); e não se apegar (aparigraha). Esses refreamentos pretendem purificar o yogi, aniquilar a subjetividade advinda do egocentrismo e prepará-lo para os estágios seguintes. Desempenham o controle dos impulsos naturais, que se manifestam através dos cinco órgãos de ação (karmendriyas): braços, pernas, boca, órgãos sexuais e excretores.

Niyama, as prescrições psicofísicas, compreendem cinco disciplinas: a purificação (shauchan); o contentamento (santosha); a austeridade ou o esforço sobre si próprio (tapas); o estudo das escrituras do Yoga e de si próprio (swádhyáya); e a consagração a Íshvara, o arquétipo do yogi perfeito (Íshvara pranidhána). Estas atitudes cumprem a função de domínio sobre os cinco órgãos da percepção (jñánendriyas): olhos, ouvidos, nariz, língua e pele. Esse controle dos sentidos aponta à organização da vida pessoal do praticante.

Ahimsá, a não-violência, entende-se como não matar, não agredir, nem causar nenhum tipo de dor a nenhum ser vivo. Os outros quatro yamas são corolários, conseqüências naturais da não-violência. Vyása, comentando o sútra II:30 de Patañjali, diz que 'ahimsá é abster-se de ferir qualquer ser, a qualquer momento e de qualquer maneira. A verdade e as outras formas de refreamento e observâncias se baseiam no espírito da não-violência'.

Satya, a verdade, consiste em fazer coincidir pensamentos, palavras e atos, o que deve entender-se como evitar a falsidade em todas suas formas, tanto nas relações do yogi com as pessoas quanto dele consigo próprio. Satya é procurar sempre a verdade, independentemente de onde essa busca possa nos levar. Entretanto, Vyása esclarece: 'a palavra pronunciada com o propósito de comunicar o próprio pensamento a outrem é verdadeira, desde que não engane ou confunda. A palavra deve pronunciar-se não para ferir, mas para beneficiar. Porque, se ferir, não produzirá harmonia, apenas sofrimento.' Ou seja: a verdade, por mais verdadeira que seja, não dói.

Asteya significa não roubar, não cobiçar ou invejar bens ou conquistas de outrem. Não é apenas não roubar, mas eliminar totalmente o impulso de apoderar-se de objetos (ou idéias) alheios. Vyása ensina que 'steya significa pegar ilegalmente coisas pertencentes a outrem. Asteya é abstenção dessas tendências, mesmo que em pensamento.'

Brahmacharya, o não desvirtuamento da sexualidade pode interpretar-se tanto como total e absoluta abstinência sexual quanto não dissipação da energia através do orgasmo. Em ambos os casos pretende-se, embora por meios diferentes, refrear a força geradora, a fim de entesourá-la para a evolução no sádhana. 'Emprega-se hoje a palavra brahmacharya com o significado de casto, mas a castidade é uma noção ambígua. Nenhum homem é casto, já que de uma maneira ou de outra emite periodicamente seu sêmen, nem que seja dormindo. O que é proibido ao brahmacharin não são as práticas sexuais, são os vínculos e particularmente os atos reprodutores, que, por suas conseqüências, o ligam à sociedade, privando-o da sua liberdade. O brahmacharin não deve ter relacionamentos que impliquem riscos de concepção. Deve ser, de qualquer modo, econômico com seu sêmen, consagrando-se ao estudo.'

Aparigraha, a não possessividade, traduz-se em generosidade e desapego em relação não apenas aos bens materiais, mas também às relações afetivas. O apego nos tira da sintonia necessária para praticar. Vyása esclarece que 'aparigraha significa desistir de cobiçar, considerando que a cobiça e o acúmulo causam problemas, que as coisas estão sujeitas à decadência e que a associação com elas causa desconfiança e rancor.'



Shauchan é a purificação. A purificação externa inclui alimentação vegetariana, exercícios de purificação orgânica (como a lavagem das vias respiratórias e dos aparelhos digestivo e excretor), e manter limpo o ambiente em que se vive. Um organismo poluído por hábitos impróprios como o uso de drogas ou alimentação intoxicante gera comportamentos e condicionamentos contraproducentes para a prática do Yoga. A purificação interna inclui a eliminação das impurezas do pensamento. As técnicas mais refinadas de purificação são tattwa shuddhi e chitta shuddhi (antar mouna).

Santosha, o contentamento, consiste em cultivar um estado interior de permanente alegria, independentemente das circunstâncias externas, o que facilitará muito o progresso na prática. Lembre que o melhor surfista não é o que surfa a maior onda: é o que tem o maior sorriso nos lábios. O melhor yogi não é o que faz o exercício mais complicado: é aquele que sabe viver melhor sua vida (o que está estreitamente vinculado com o tamanho do sorriso).

Tapas é calor, ascese, determinação, força de vontade concentrada, austeridade, esforço sobre si próprio: 'produz a destruição das impurezas, o que conduz ao aperfeiçoamento da sensibilidade corporal.' O objetivo desse esforço sobre si próprio é atingir um estado de purificação que permita ao indivíduo tomar posse do seu corpo, indo além dos limites impostos pela percepção limitada da realidade. 'Uma linguagem que não fira, verídica, amigável e benéfica, o estudo regular das escrituras, tal é o tapas da palavra. A serenidade e clareza de espírito, a doçura, o silêncio, o autodomínio, a total purificação do caráter, tal é o tapas consciente.'

Swádhyáya é o estudo da metafísica do Yoga e de si próprio; abrange não apenas o autoconhecimento através da reflexão sobre a sabedoria das escrituras (shástras), mas também a aplicação prática desse conhecimento. O swádhyáya alarga os horizontes do intelecto, enriquece e estimula a prática. O japa, a repetição de um mantra com fins de meditação, também pode considerar-se swádhyáya. Diz o Vishnu Purána, VI:6.2: 'do estudo deve-se passar ao Yoga. Do Yoga deve-se passar ao estudo. Pela perfeição no estudo e no Yoga, a Consciência Suprema se manifesta. O estudo é um olho com o qual o Ser se percebe. O Yoga é o outro.'

Íshvara pranidhána, é a consagração a Íshvara (Senhor), entendido como o arquétipo do yogi, o modelo ideal a ser seguido pelo praticante. Íshvara pranidhána também significa entregar as ações e seus frutos a uma vontade superior à própria. Pode entender-se como auto-aceitação no momento presente ou ainda como serviço à Humanidade. A Bhagavad Gítá diz que 'o seu dever é agir, sem procurar recompensas pelo que você faz'.

Sankalpa: colocando em prática seu dharma pessoal
Sankalpa significa resolução. É uma frase curta, concisa, clara e altamente evocativa. Tem o objetivo de potencializar algum aspecto positivo da personalidade, em nível subconsciente.

O sankalpa penetra no subconsciente, fortalecendo a estrutura da mente e despertando as forças latentes que facilitarão a realização dos nossos objetivos. Consiste em ativar as qualidades positivas que existem dentro de todos nós mas que permanecem bloqueadas no subconsciente. Isso dará uma direção mais adequada à nossa existência.

É preciso fazer um auto-exame para identificar nossa principal carência e evocar vividamente aquilo que queremos atualizar e melhorar. Embora o sankalpa se faça mentalmente, ele começa no coração.

É uma frase curta, mas carregada de significação. Deve manter-se por dez a quinze sessões sucessivas de meditação ou de yoganidrá, e repetir-se pelo menos três vezes ao iniciar e três ao finalizar a prática. Devem ser poucas palavras, e sempre as mesmas, para fixá-las no pensamento: uma frase curta, do gênero desperto a minha kundaliní, ou lembro sempre que precisar. Deve ser positivo ? por exemplo, estou saudável ao invés de não estou doente. Deve conjugar-se sempre no presente. Se você pensar no futuro, nunca vai conseguir o seu sankalpa, porque a mente subconsciente só entende o presente.

Como você deve estabelecer o seu sankalpa em função da sua necessidade, é preciso em primeiro lugar ver qual é essa necessidade. Para ter isso claro, nada melhor do que uma boa auto-análise, profunda e sincera, que sirva para identificar os aspectos mais marcantes da própria personalidade e detectar os erros mais graves cometidos nos últimos tempos. Feito isso, o sankalpa se estabelece com base nas atitudes opostas àquelas que se precisa eliminar. O sankalpa pode trabalhar nos níveis físico, vital, emocional ou mental, dependendo da sua necessidade.

Alguns exemplos de sankalpa:

1. confio em mim;
2. harmonia física e mental;
3. o sucesso me acompanha em todos os empreendimentos;
4. desenvolvo o meu potencial espiritual.

Repita o sankalpa com vontade, fé, sentimento pleno e consciência.

No final do dia, é bom olhar para o dia que passou para refletir sobre seus desafios. Cada erro é uma lição, cada conquista um aprofundamento do entendimento.



Fonte:http://www.yoga.pro.br/artigos/194/1/dharma-quem-precisa-dele

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