A PSICOLOGIA DO SATORI OU ILUMINAÇÃO
Erich
Fromm
O
texto a seguir é reproduzido do boletim “O Teosofista”,
de
outubro de 2009. Ele foi traduzido da obra “Zen Buddhism
and
Psychoanalysis”, de D.T. Suzuki, Erich Fromm e R. De
Martino,
First Evergreen edition, 1963, EUA, 180 pp., ver pp. 115
a 118. Na
edição brasileira da obra, o título é “Zen Budismo e
Psicanálise”.
Se quisermos expressar o que é a
iluminação em termos psicológicos, eu diria que ela é um estado em que o
indivíduo está completamente em sintonia com a sua realidade interna e externa,
em que está plenamente consciente da realidade e a capta de modo integral. Ele está consciente dela, isto é, não se trata
do seu cérebro, nem qualquer outra parte do seu organismo, mas ele, o homem inteiro. Ele está
consciente dela; não como se a
realidade fosse um objeto que ele capta com seu pensamento, mas ele capta a
flor, o cachorro, o homem, em sua realidade
completa.
Aquele que desperta está aberto e é capaz de responder ao
mundo, e ele pode ser aberto e ser capaz de responder ao mundo porque renunciou
a agarrar-se a si mesmo como uma coisa, e assim tornou-se vazio e capaz de
perceber. Estar iluminado significa “o completo despertar da personalidade
total diante da realidade.”
É
muito importante compreender que o estado de iluminação não é um estado de
dissociação ou de transe no qual o indivíduo acredita que está desperto, quando na verdade está
profundamente adormecido. O psicólogo ocidental, naturalmente, terá uma
tendência a acreditar que satori [a iluminação] é apenas um estado subjetivo,
e mesmo um psicólogo tão simpático em relação ao Zen quanto o dr. [Carl] Jung
não consegue evitar o mesmo erro. Jung escreve: “A própria imaginação é uma
ocorrência psíquica, e portanto, não faz diferença alguma se uma iluminação é
qualificada de real ou imaginária. O homem que tem a iluminação, ou alega que a
tem, pensa em qualquer caso que é iluminado (......) Mesmo que ele estivesse
mentindo, a sua mentira seria um fato espiritual.” [1]
Isso
faz parte, é claro, da posição geral de relativismo adotada por Jung em relação
à “verdade” da experiência religiosa. Ao contrário dele, eu acredito que uma
mentira nunca é “um fato espiritual”, nem qualquer outro fato, na verdade,
exceto o fato de ser uma mentira. Mas, de qualquer modo, a posição de Jung
certamente não é compartilhada pelos zen budistas. Bem pelo contrário. Para eles
é de crucial importância saber a diferença entre a experiência autêntica de satori, na qual a aquisição de um
novo ponto de vista é real, e portanto verdadeira, e uma pseudo-experiência que
pode ser de natureza histérica ou psicótica, na qual o estudante Zen está
convencido de haver obtido satori, enquanto o mestre Zen tem que
demonstrar que ele não obteve. Uma das funções do mestre Zen é, precisamente,
estar vigilante em relação à confusão que o seu aluno faz entre a iluminação
real e a iluminação imaginária.
O
completo despertar para a realidade significa, falando em termos psicológicos,
ter alcançado “uma orientação completamente produtiva”. Isso significa não
relacionar-se com o mundo de modo receptivo, explorador, acumulativo, ou
mercantilista; mas sim criativamente, ativamente (no sentido de Spinoza). No
estado de completa produtividade não há véus que separem o eu do “não-eu”. O
objeto não é mais um objeto; ele não fica contra mim, mas está comigo. A rosa
que eu vejo não é um objeto para o meu pensamento, da maneira pela qual, quando
eu digo “vejo uma rosa”, apenas afirmo que o objeto, rosa, cai na categoria
“rosa”; mas da maneira em que se diz que “uma rosa é uma rosa é uma
rosa”.
O
estado de produtividade é ao mesmo tempo o estado da mais alta objetividade. Eu
vejo o objeto sem as distorções provocadas pela minha cobiça e pelo meu medo.
Vejo-o como ele é, e não como eu quero que ele seja, ou que não seja. Neste modo
de percepção não há distorções paratáxicas [através do uso das
palavras] . Há completa vitalidade, e existe uma síntese de
objetividade e subjetividade. Eu tenho uma experiência intensa -- e no
entanto é permitido ao objeto que ele seja como ele é. Eu trago o objeto à vida,
e o objeto me traz à vida. O satori parece misterioso apenas para a pessoa que
não está consciente de até que ponto a sua percepção do mundo é puramente
mental, ou paratáxica. Se o individuo estiver consciente disso, ele também
perceberá uma consciência diferente, que se pode chamar de consciência
completamente realista. O indivíduo pode ter experimentado apenas vislumbres
dela: no entanto, ele pode imaginar como ela é. Um garoto pequeno que estuda
piano não toca como um grande mestre. No entanto a performance do mestre não é
um mistério: trata-se apenas da perfeição da experiência rudimentar que o garoto
tem.
O
fato de que a percepção não distorcida e não-cerebral da realidade constitui um
elemento essencial da experiência Zen é expressado muito claramente em duas
histórias Zen. Uma delas conta a conversa de um mestre com um
monge:
“Você faz algum esforço para tornar-se disciplinado na
verdade?”
“Sim.”
“Como você se exercita
nisso?”
“Quando tenho fome, eu como; quando estou cansado, eu
durmo”.
“Isto é o que todo mundo faz; podemos dizer então que
todos estão fazendo o mesmo exercício?”
“Não.”
“Por
quê?”
“Porque, quando eles comem, eles não comem, mas estão
pensando em várias outras coisas, e assim permitindo-se ficar perturbados;
quando eles dormem, eles não dormem, mas sonham com mil e uma coisas. É por isso
que eles não são como eu.” [2]
A
história dificilmente precisa de alguma explicação. O indivíduo comum, levado
pela insegurança, pela cobiça, pelo medo, é constantemente imerso em um mundo de
fantasias (e nem sempre é consciente disso), no qual ele vê o mundo como se
tivesse qualidades que ele projeta sobre o mundo, mas que não estão lá. Isso era
um fato quando esta conversa ocorreu; e continua sendo um fato verdadeiro hoje,
quando quase todos veem, ouvem, sentem e saboreiam mais com base em seus
próprios pensamentos, do que com base naquelas funções dentro de si que são
capazes de ver, ouvir, sentir e saborear.
A
outra história, igualmente cheia de significado, é a afirmação de um mestre Zen
que disse: “Antes que eu alcançasse a iluminação, os rios eram rios e as
montanhas eram montanhas. Quando comecei a ficar iluminado, os rios não eram
mais rios, e as montanhas não eram montanhas. Agora, desde que estou iluminado,
os rios voltaram a ser rios e as montanhas são
montanhas.”
Outra vez, temos o novo enfoque da realidade. O indivíduo
comum é como o homem na caverna de Platão, que olha só as sombras e pensa que
elas são a substância. Quando reconhece este erro, ele sabe apenas que as
sombras não são a substância. Mas quando se torna um
iluminado, ele troca a caverna e a sua escuridão pela luz do dia. Então ele vê a
substância e não as sombras. Ele está desperto. Enquanto permanece no escuro,
ele não pode entender a luz. (Como diz a Bíblia: “Uma luz brilhou na escuridão e
a escuridão não a entendeu.”[3] ) Uma vez que está fora da escuridão,
ele compreende a diferença entre a sua visão anterior do mundo como sombras, e a
sua visão atual do mundo como realidade.
NOTAS:
[1] Do prefácio de Carl Jung para a obra de
D.T. Suzuki intitulada “Introduction to Zen Buddhism”, London, Rider, 1949, p.
15.
[2] D.T. Suzuki, “Introduction to Zen
Buddhism”, p. 86.
[3] Evangelho segundo João, 1: 5. (Nota do editor de “O
Teosofista”.)
Fonte:http://www.vislumbresdaoutramargem.com/2010/11/psicologia-do-satori-ou-iluminacao.html
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