DIÁLOGO SOBRE O DESPERTAR DO KUNDALINI - J.KRISHNAMURTI

 

Diálogo sobre o despertar da Kundalini


Krishnamurti: Antes de mais nada, se você realmente quer falar, quer ter um diálogo sobre a Kundalini, você seria capaz de esquecer tudo o que já ouviu a respeito dela? Seria? Estamos abordando um assunto muito sério. Você está disposta a esquecer tudo o que já ouviu sobre ela, o que os seus gurus contaram a você sobre ela, ou das tentativas para despertá-la? Você pode começar do nada?
Então, você tem de indagar, sem conhecer realmente coisa alguma sobre a Kundalini. Você sabe o que está acontecendo atualmente nos Estados Unidos, na Europa? Os centros de Kundalini são abertos por pessoas que dizem ter tido a experiência do despertar da Kundalini. Os cientistas estão interessados nela, hoje em dia. Eles acham que, ao fazer certos tipos de exercícios, certos tipos de respiração, despertarão a Kundalini. Todo o interesse pela Kundalini se transformou numa máquina de fazer dinheiro, e esse conhecimento está sendo dado a pessoas que são terrivelmente perniciosas.
Questionador: Queremos apenas saber se há uma energia que pode eliminar o condicionamento.
Krishnamurti: Enquanto a atividade egocêntrica existir, você não poderá entendê-la. É por isso que me oponho a qualquer discussão sobre a Kundalini ou sobre o que quer que seja essa energia, porque não fizemos o trabalho preliminar. Não levamos uma vida correta e queremos acrescentar-lhe algo novo e, assim, levar avante o nosso mal.
Vijay Anand: Mesmo depois de despertar a Kundakini, a atividade egocêntrica continua.
Krishnamurti: Eu não sei se a Kundalini foi despertada. Não sei o que você quer dizer com isso.
Vijay Anand: Nós realmente queremos entender isso, porque às vezes trata-se de uma realidade.
Pupul: O senhor conhece uma energia quando a atividade egocêntrica termina? Nós supomos que esteja aí a fonte dessa energia infinita. Pode não ser.
Krishnamurti: Você está dizendo que o fim desse movimento do centro para a circunferência e da circunferência para o centro, o fim disso…
Pupul: O fim momentâneo disso…
K: Não, o fim disso, o fim definitivo disso — é a liberação dessa energia ilimitada?
Pupul: Eu não estou dizendo isso.
Krishnamurti: Eu é que estou dizendo.
Pupul: O que é uma coisa muito diferente do meu modo de dizer.
Krishnamurti: Podemos colocar a energia da Kundalini no seu devido lugar? Um certo número de pessoas teve a experiência do que elas chamam de despertar da Kundalini, o que eu duvido. Não sei se se trata de uma realidade de fato ou de algum tipo de atividade psicológica que é, então, atribuída à Kundalini. Você vive uma vida imoral, no sentido de ser uma vida de futilidade, de sexo, etc. e, então, diz que a Kundalini está desperta. Mas a sua vida diária, que é uma vida egoísta, continua.
Pupul: Senhor, se vamos examiná-la, vejamos como ela se manifesta em alguém. O despertar da Kundalini está ligado a certos pontos psíquicos localizados em determinadas partes do corpo humano. Isso é o que se diz. A primeira pergunta que eu gostaria de fazer é: é isso mesmo? A liberação dessa energia, que não tem fim, tem algo a ver com os centros psíquicos nas partes físicas do corpo?
Achyut: Antes de entrarmos nesses detalhes, senhor, não é importante indagar se a pessoa que adquire essa energia é incapaz de fazer o mal?
K: Não, senhor. Cuidado! Como podemos dizer que alguém é incapaz de fazer o mal? Dizem que muitos gurus na Índia fizeram um mal tremendo desencaminhando as pessoas.
A: É o que eu digo, senhor. Eu sinto que, enquanto o coração da pessoa não estiver purificado do ódio e enquanto essa sede de fazer o mal não for completamente transformada, enquanto isso não acontecer, essa energia não serve para nada, a não ser para fazer mais mal.
K: Achyutji, Pupulji está perguntando sobre a aceitação habitual do poder dessa energia, que passa por vários centros, sobre a libertação da energia, e assim por diante.
A: Eu digo, senhor, que antes de fazer essa pergunta, há na tradição indiana uma palavra que eu acho muito importante. Essa palavra é adhikar. Adhikar significa que a pessoa deve se purificar o suficiente antes que possa fazer essa pergunta a si mesma. É uma questão de purificação.
K: Você está dizendo que, a menos que haja uma parada desse movimento que vai do centro para a circunferência e da circunferência para o centro, essa pergunta de Pupulji não é válida?
A: Eu acho que sim. Usarei outra palavra, a palavra budista sheela. É, na verdade, a mesma cosia. A palavra adhikar usada pelos hindus e a palavra sheela usada pelos budistas significam de fato a mesma coisa.
P: Suyponho que quando alguém faz a pergunta, o faz com um profundo conhecimento de si próprio. Não é possível alguém investigar o eu, que também libera energia, se a sua vida não passou por um grau de equilíbrio interior; se não passou, o que K diz não tem nenhum significado. Quando alguém ouve Krishnaji, recebe a resposta na mesma profundidade com que se expôs e, portanto, penso que está certo fazer a pergunta. Por que essa pergunta é muito mais perigosa do que qualquer outra pergunta? Por que é mais perigosa do que indagar o que é o pensamento, o que é a meditação, o que é isso ou aquilo? Para a mente que compreende, ela compreenderá isso e aquilo. Para a mente que não compreende, ela não compreenderá nem isso nem aquilo. Para a mente que quer fazer uso do mal, ela se ocupará do mal de todas as coisas.
K: A menos que a sua vida, a sua vida diária, seja uma forma de vida completamente não-egocêntrica, o outro não poderá ser aceito.
Vijay Anand: Há o surgimento de energia — há contentamento primeiro e, depois, medo.
Sunanda: Gostaríamos de saber por que essa energia gera medo.
VA: O medo vem mais tarde. Experimenta-se a morte e tudo se esvai. Você está vivo de novo e surpreso por estar vivo de novo. Você redescobre o mundo e os seus pensamentos, as suas posses e seus desejos, e o mundo inteiro, vagarosamente, retornam.
K: Você chamaria isso de despertar da Kundalini?
VA: Não sei, senhor.
K: Mas, por que você rotula isso de o “despertar da Kundalini”?
VA: Durante alguns dias depois disso, durante um mês, toda a vida muda. O sexo e os desejos se desvanecem.
K: Entendo. Mas, você retorna a essa questão.
VA: Retorna-se à questão porque não se entende.
K: Isso é o que estou dizendo, senhor. Quando há um retorno a algo, duvido que você tenha tido essa energia.
P: Por que essa pergunta causa tanta agitação? A maioria das pessoas passa por uma série de experiências psíquicas no processo de autoconhecimento. Alguém também entende, pelo menos alguém entendeu porque ouviu Krishnaji dizer que todas as experiências psíquicas, quando surgem, têm de ser postas de lado.
K: Isso está entendido? A experiência psíquica deve ser totalmente posta de lado.
A: Nós a deixamos de lado; não damos mais importância a ela.
VA: Algumas passagens novas se abrem no corpo, e a energia continua a subir por essas passagens sempre que se faz necessário.
K: Por que o senhor diz que ela é algo extraordinário? Por que nós atribuímos algo extraordinário a isso? Estou apenas sugerindo, pode ser que vocês tenham se tornado muito sensíveis. Isso é tudo. Sensíveis demais.
VA: Tenho mais energia.
K: A sensibilidade tem mais energia. Mas por que vocês a chama de extraordinária, de Kundalini, disto, daquilo ou sei lá do quê?
P: O problema é saber até que ponto sua vida está totalmente mudada. Eu quero dizer que o único sentido do despertar é descobrir se há uma forma totalmente nova de olhar, uma forma nova de viver, uma forma nova de se relacionar.
Questionador: Senhor, eu quero fazer uma pergunta. Aceitando como verdadeiro, que alguém esteja levando uma vida holística, nesse caso há alguma semelhança com a Kundalini?
K: O senhor está levando uma vida holística?
Q: Não.
K: Então não faça essa pergunta.
P: Estou perguntando de um ponto de vista totalmente diferente. Como se sabe, a Kundalini é o despertar de certas energias psíquicas que existem em certos pontos físicos do corpo humano, e que é possível despertar as energias psíquicas mediante várias práticas que, então, à medida que passam por esses vários estados e centros psíquico-físicos, transformam a consciência; quando, finalmente, elas abrem caminho, rompem com qualquer atividade egoísta. Esse deve ser o significado básico de tudo isso.
Apa Pant: A mescalina pode fazer isso; você pode fazer isso.
P: Eu estou simplesmente perguntado a Krishnaji se há uma energia que, ao despertar por si só, não ao ser despertada, se essa energia, ao despertar completamente, elimina o centro.
K: Eu diria isso de outro modo: a menos que o movimento egocêntrico pare, o outro movimento não pode existir.
A: Eu digo que toda tradição de Hatha Yoga criou a crença de que, ao manipular esses centros, você pode fazer coisas para você mesmo. A ideia toda está baseada numa crença errada.
P: Apague tudo.
A: Acho bom.
P: Como não parece ser possível continuar com essa discussão, posso fazer outra pergunta? Qual é a natureza do solo que precisa ser preparado para poder receber aquilo que é ilimitado?
K: Você está cultivando o solo do cérebro, da mente, para esse “plantio”?
P: Eu entendo essa pergunta. Mas eu não posso responder nem sim nem não a ela.
K: Então, por que chama-la de energia e trazer à baila a palavra “solo”? Prepare-o, trabalhe-o. Vivemos uma vida de contradição, de conflito, de miséria. Eu quero descobrir se isso pode acabar com a tristeza, com toda a sua tristeza humana, e indagar acerca da natureza da compaixão.
S: Há alguma outra forma de vida em que a compaixão também faça parte do cultivo do eu? Por que o senhor está fazendo essa pergunta, por que quer cultivar o solo?
K: Eu afirmo que, enquanto vocês tiverem motivo para cultivar esse solo a fim de receber essa energia, vocês nunca a receberão.
S: Qual é o motivo, senhor? É toda a prisão. Ver toda a prisão e perguntar se existe alguma outra saída dela: isso é um motivo? Se assim for, ficamos presos num círculo, numa armadilha.
K: Não, você não ouviu. Vivo uma vida de aflição, de miséria, de confusão. Esse é o meu sentimento básico e isso pode terminar? Não há nenhuma razão?
S: Aqui não há nenhuma razão. Mas o senhor também está fazendo uma pergunta adicional.
K: Não. Não tenho mais perguntas, só essa primeira. Todo esse processo pode terminar? Só então poderei responder às outras perguntas, que têm um significado bastante amplo.
P: Qual a natureza do solo da mente humana que tem de ser cultivado para receber o outro? O senhor me diz que essa também é uma pergunta errada. O senhor diz que estou em conflito, que estou sofrendo e que vejo que uma vida de conflito e de sofrimento não tem fim.
K: Isso é tudo. Se ela não tem fim, então a outra indagação, a outra investigação e o desejo de despertá-la, a fim de eliminar esta, constituem um processo errado.
P: Obviamente.
K: É como contratar uma companhia de limpeza para vir limpar a sua casa. Digo que no ato de limpar a casa, muitas coisas importantes vão acontecer. Você terá uma espécie de clarividência, aquilo que chamamos de siddhis, e tudo o mais. Tudo isso irá acontecer. Mas se você ficar enredado nisso, não poderá seguir adiante. Se não ficar enredado nisso, os céus se abrirão para você. Você está perguntando, Pupul, se existe um solo a ser preparado, não a fim de receber isso, mas sim se o solo tem de ser preparado? Prepare-o, trabalhe nele, limpe toda a casa para que não haja vestígio de fuga. Só então poderemos perguntar qual é o estado sobre o qual estamos falando. Se vocês estão fazendo isso, preparando-se, trabalhando para acabar com a tristeza, não se deixando levar, se vocês estão trabalhando nisso e vêm dizer que há algo conhecido como a energia da Kundalini, então eu me disponho a ouvir.
A: Senhor, a razão pela qual me opus é que no texto Pradipika da Hatha Yoga, afirmamos que essa indagação sobre a Kundalini é feita para fortalecer você na sua busca.
K: Pelo amor de Deus, Achyutji, você está trabalhando na limpeza da casa?
A: Certamete.
K: Agora, qual é a pergunta? Há uma energia que não é mecânica, que é infinita, que está se renovando? Eu afirmo que há. Com toda a certeza. Mas não é o que vocês chamam de Kundalini. O corpo deve ser sensível. Se você está trabalhando, limpando a casa, o corpo fica muito sensível. O corpo, então, tem sua própria inteligência que a mente lhe dita. Portanto, o corpo fica extremamente sensível, não sensível aos seus desejos nem sensível às suas vontades, mas se torna sensível por si próprio. Certo? Então, o que acontece? Se vocês querem realmente que eu fale sobre isso, falarei. Duvido das pessoas que falam do despertar da Kundalini. Elas não trabalharam com os outros, mas dizem ter despertado a Kundalini. Portanto, duvido da sua habilidade, da sua verdade. Não me oponho, mas estou duvidando. De um homem que come carne, que quer publicidade, que quer isto ou aquilo, e diz que a Kundalini foi despertada, digo que ele está sendo contraditório. Deve haver uma limpeza dessa casa o tempo todo. Então Pupul diz: “Podemos falar sobre uma energia que sinto que deve existir?”, não teoricamente, mas da qual ela disse que teve um vislumbre, uma energia que é infinita; e K vem e diz “sim”, isso existe. Há uma energia que está se renovando o tempo todo, que não é mecânica, que não tem uma causa, que não tem início e, portanto, não tem fim. É um movimento eterno. Eu afirmo que ela existe. Que valor ela tem para o ouvinte? Eu digo “sim” e vocês me ouvem. Eu pergunto a mim mesmo que valor tem isso para vocês? Vocês irão no encalço dessa energia e deixarão de limpar a casa?
P: Isso significa, senhor, que, para a pessoa que indaga, o cultivo do solo é o fim do sofrimento; isso é que é essencial.
K: Esse é o único trabalho. Nada mais. É a coisa sagrada, portanto você não pode simplesmente convoca-la. E todos vocês a estão convocando.
A limpeza da casa exige uma disciplina muito grande; não a disciplina do controle, da repressão e da obediência, vocês estão entendo? Em si mesma, ela requer uma atenção muito grande. Quando você dispensa toda a atenção, então vê acontecer um tipo de coisa totalmente diferente, uma energia que nunca se repete, uma energia que não está indo vindo. Não é como tê-la um dia e, um mês depois, não tê-la mais. Ela implica manter a mente completamente vazia. Vocês são capazes de fazer isso?
VA: Por um tempo.
K: Não, não. Eu perguntei: a mente pode manter-se vazia? Então, essa energia existe. Você nem sequer precisa pedir por ela. Quando há espaço, a mente está vazia e, portanto, cheia de energia. Assim, ao limpar, ao terminar de fazer o que deve ser feito com as coisas da casa, com a tristeza, a mente pode estar completamente vazia, sem motivação, sem desejo? Quando você está trabalhando nisso, mantendo a casa limpa, outras coisas vêm naturalmente. Não é você quem está preparando o solo para isso. Isso é meditação.
P: E a natureza disso é a transformação da mente humana.
K: Reparem no que Apa Saheb estava dizendo; estamos programados por séculos de condicionamento. Quando ela cessa, há um fim. Se você puxa o plugue do computador, ele não pode funcionar mais. Agora a pergunta é: pode esse centro, que é egoísmo, acabar? Pode deixar de funcionar? Esse centro pode acabar? Quando ele acaba, não há movimento no tempo. Isso é tudo. Quando o movimento da mente do centro para a periferia para, o tempo para. Quando não há nenhuma atividade por parte do egoísmo, há um tipo totalmente diferente de atividade.  
 
Krishnamurti

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