ESTADO DE TRANSE : COMO FUNCIONA

Estado de transe: como funciona

Atenção focada, sono, lembranças passadas – descubra o que é e o que de fato acontece no período de semiconsciência chamado estado de transe.


O livro estava tão interessante que você não ouviu o telefone tocar, alguém chamá-lo ou, até mesmo, passar por você. Quem nunca passou por essa experiência? Esta é apenas uma das situações cotidianas nas quais vivenciamos o estado de transe, que consiste em direcionar de forma intensa o foco de atenção para algo específico, abstraindo os outros estímulos do ambiente. No uso psicoterapêutico, o transe hipnótico nos ajuda a acessar memórias, cenas e fatos que pontuaram nossa história e que guardam muitas das respostas que procuramos, fundamentais para desenvolver novas formas de pensar e lidar com a vida.
Em linhas gerais, o transe é um estado de alteração da consciência e da percepção do que está ao redor. “É como se o paciente deixasse de olhar para fora”, diz o psiquiatra e hipniatra Carlos Laganá de Andrade, coordenador do Serviço de Hipnoterapia do Centro de Dor do Hospital das Clínicas, em São Paulo. A atenção se volta ao mundo interior, às vivências que ocasionaram traumas, conflitos e ajudaram a construir hábitos, crenças e a maneira como sentimos o mundo.
Há transe sem hipnose, mas não há hipnose sem transe. A hipnose só acontece mediante o estado de transe, “que é pegar a atenção da pessoa e direcionar para um ponto em especial”, define o psicólogo e hipnoterapeuta Odair José Comin. Durante o transe hipnótico, o paciente fica mais receptivo aos estímulos e sugestões do hipnoterapeuta, o que pode ajudá-lo na resolução de conflitos e na mudança de comportamentos. “Uma frase dita durante o transe tem um impacto muito maior do que quando eu a digo numa conversa informal. É esse impacto que faz a diferença”, aponta Comin. Neste sentido, a Sociedade Brasileira de Hipnose diz que o transe é um período no qual as limitações do paciente “ficam temporariamente alteradas, de modo que ele se torna receptivo aos padrões, às associações e aos moldes de funcionamento que conduzem à solução de problemas”.
Presidente do Instituto Milton Erickson de São Paulo, o psicólogo Bayard Velloso Galvão acrescenta que o processo neurofisiológico de alteração vivido em momentos intensos de violência, como um assalto ou sequestro, ou em situações dolorosas, como a perda de alguém ou o fim de um relacionamento, também desencadeia momentos de transe.
Segundo Bayard, no estado de transe, são trabalhados “os mesmos processos neurofisiológicos provocadores dos traumas”, mas desta vez para desenvolver formas mais positivas de pensar e agir.
 

Fenômenos hipnóticos

Estabelecer um laço de confiança entre paciente e hipnoterapeuta – o que os profissionais chamam de rapport – é determinante para que a pessoa se solte, passando de um relaxamento profundo ao transe. Para ocorrer esta passagem, o profisional utiliza a técnica de sugestão verbal, que prima pelo uso rítmico, monótono, débil e persistente da voz. “Há, inclusive, uma relação com o ritmo cardíaco, com o qual estamos acostumados desde a vida intra-uterina”, afirma Dr. Carlos Laganá.
O paciente percebe o que está a seu redor de forma distorcida, enquanto o ambiente vai ficando cada vez mais distante. Imerso no mundo do hipnotizado e acompanhando as experiências que ele relata, o terapeuta pede movimentos, sugere sons, sabores, aromas, valendo-se de todos os sentidos, até que ele esteja totalmente concentrado.
“O único momento em que a pessoa perde a noção do real é quando ocorre o fenômeno hipnótico da regressão de idade. Se questionada, ela vai dizer que tem seis anos, por exemplo. Então é preciso saber articular mediante aquilo que está acontecendo, pois você está conversando com uma criança”, aponta Odair Comin.
Durante o transe, os pacientes podem sentir o corpo mais leve ou mais pesado, ter movimentos involuntários, ouvir sons que só eles escutam e outros fenômenos hipnóticos – induzidos ou não pelo terapeuta. “Posso falar uma frase que a mãe do paciente dizia quando ele era criança e isso levar a uma regressão. Ele também pode pensar em alguma coisa, independentemente do que eu estiver falando, que leve a outro fenômeno hipnótico”, esclarece.
Todas as pessoas são hipnotizáveis, diz Comin. Mas os caminhos para hipnotizá-las são diferentes. Pessoas mais sensíveis são facilmente hipnotizadas, diz Dr. Carlos Laganá. Já os considerados menos hipnotizáveis são, geralmente, pessoas com grande dificuldade de concentração, excessivamente ansiosas, pouco flexíveis ou com tendência a ouvir menos e interromper mais.
 

Mentes que brilham

Ao contrário do que acontece no estado meditativo, quando a mente tende ao vazio, no estado de transe há alta atividade psíquica. “Se você tirar uma foto do cérebro de uma pessoa em transe e de uma outra em relaxamento, verá no relaxamento um pontinho luminoso. Já no transe você vai ver uma árvore de natal: o cérebro todo se ilumina, porque vários pontos estão em atividade”, ilustra Odair Comin.
Ele menciona que existem pesquisas, com medições feitas antes e depois do transe. Tais experimentos mostram neurônios “que eles chamam de luminosos” e que podem estar ativos ou inativos. Com o transe é possível colocar em ação certas partes inativas do cérebro . “O transe trabalha o aumento da capacidade mental... Com ele, mais áreas do cérebro vão ser utilizadas. Daí os bons resultados terapêuticos que provoca”, diz.
Esse aumento na capacidade cerebral começa pela capacidade de focar a atenção, reforça o psicólogo. “Digamos que você pegue 10% de energia cerebral para realizar alguma tarefa do dia-a-dia. Se está dirigindo, por exemplo, vai prestar atenção em várias coisas ao mesmo tempo, distribuindo 3% dessa energia aqui, 5% ali, 2% lá... No transe você pega esses 10% e joga tudo num lugar só. Por isso há um resultado maior, porque vai haver um impacto maior.”
Saber mais a respeito das reações cerebrais durante o transe hipnótico também ajuda a desmistificar as fantasias a respeito do poder do hipnotizador sobre o hipnotizado. Durante o transe, alguém só comerá cebola acreditando que está saboreando uma maçã, se se propuser a fazer isto. Além disso, nenhum hipnotizado corre o risco o de não conseguir do transe. “Justamente por estarmos entregues a uma situação, nosso estado de alerta é maior. Se algo agride seu sensor crítico, seus valores éticos e morais, você sai automaticamente do transe. Temos um sistema de alerta fisiológico no cérebro, que nesse estado fica mais alerta ainda”, esclarece Dr. Carlos Laganá.  
 

Memórias do transe

Logo na primeira sessão, o publicitário Rondon Fernandes, 34 anos, “apagou” em apenas alguns minutos de transe. Rondon tem o vício de roer unhas, problema que o incomoda há anos. “Na primeira sessão, o hipnoterapeuta pediu que eu fechasse os olhos, enquanto dizia um texto neutro, mas num tom que me levou ao transe. Comecei a sentir leveza no corpo, fui entrando num relaxamento profundo... Até que apaguei. Acordei descansado, com a sensação de ter dormido por várias horas, mas tinha estado em transe só por alguns minutos”, conta o publicitário.
Rondon faz parte do grupo de pessoas chamadas sonambúlicas, explica o psiquiatra Carlos Laganá. Essas pessoas são altamente sugestionáveis e chegam ao grau máximo do estado de transe em poucos minutos. Nesse caso houve uma distorção do tempo, que deixou no publicitário a sensação de ter acordado de um longo e bom sono. “Nas sessões seguintes, o transe não foi tão intenso, permaneci ouvindo e ciente do que estava a minha volta”, diz o rapaz, que se submete ao tratamento com hipnose desde outubro de 2005. Durante o estado de transe o corpo chega a ficar “oco de tão leve... Na volta, vem uma sensação etérea”, descreve.
Os resultados vêm se traduzindo em novas formas de administrar a agressividade reprimida (segundo o terapeuta, diretamente relacionada ao hábito de roer unhas), na melhora da concentração e na autoconfiança – que se manifesta até nos sonhos. “Recentemente sonhei que estava dando uma caneta [quando o jogador passa a bola entre as pernas do adversário] no Ronaldo, o Fenômeno... Quer demonstração melhor de autoconfiança?”, brinca o publicitário.
Fonte:Texto • Erica Franquilino-http://www.triada.com.br/

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