VERDADE OU FICÇÃO
Entre o personagem histórico que mobilizou comunidades judaicas em nome de um ideal de fé e purificação, a partir da crença nos ensinamentos de um Deus, e um personagem fictício, não divino e secundário, que apenas se casou com uma mulher -- essa sim, líder de discípulos que espalhariam a Boa Nova pelo mundo --, há uma distância abismal. O homem citado acima nas duas histórias possui o mesmo nome: Jesus Cristo. Para os seguidores da primeira versão -- e eles não são poucos, atendem pelo nome de cristãos e representam boa parte da civilização do mundo --, ele era o filho de Deus, que veio ao mundo para perdoar os pecados humanos e preparar seu povo para o Juízo Final. Já os que conhecem o segundo relato sabem que se trata do personagem principal do polêmico livro do ex-professor ginasial norte-americano, Dan Brown.
"O Código Da Vinci", obra que trata da vida desse último Jesus, foi lançado há pouco mais de um ano nos Estados Unidos e há um mês no Brasil. De lá para cá, além de alcançar a surpreendente marca de 6 milhões de exemplares vendidos, o livro também conseguiu promover muita polêmica. Católicos, protestantes e estudiosos das religiões afirmam que se trata de uma afronta à figura histórica do Jesus de Nazaré. Críticos literários colocam que essa é apenas uma obra de ficção. Já o autor garante que as teorias presentes na história têm valor. O resultado disso é que Igrejas e teólogos estão se mobilizando e lançando novos livros que rebatem as idéias contidas em "O Código Da Vinci", e um autor feliz da vida por ver sua cria figurar há 56 semanas no topo da lista das ficções mais procuradas pelo público dos EUA. Isso tudo, claro, permeado por muita confusão na cabeça das pessoas comuns.
"É uma ficção e deve ser lido assim. O Jesus que aparece no livro nada tem a ver com a figura histórica de Jesus Cristo. O autor batizou o personagem dele com o mesmo nome claramente para gerar polêmica, simplesmente porque a discussão ajuda a vender os livros", começa a desvendar o mistério o professor de Teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Fernando Altenmeyer. Contudo, segundo Dan Brown, o enredo está baseado em passagens verdadeiras da vida de Jesus, que a Igreja Católica fez questão de esconder. "Mais ou menos. O livro segue alguns momentos que, de fato, estão descritos, mas segue só o que interessa. Pula acontecimentos, mistura as coisas", rebate Altenmeyer.
Segundo a obra, a Igreja Católica teria suprimido 80 evangelhos primitivos por motivos políticos. Esses textos trariam grandes revelações. Entre elas, a de que Jesus era um homem comum, que casou e teve filhos com Maria Madalena. Mais que isso, aquele Jesus não teria sido o líder que aprendemos a conhecer. Esse papel seria cumprido por sua mulher, que comandou os apóstolos que celebravam, na verdade e por sua vez, a sabedoria e a sexualidade. A essa altura, a cabeça do leitor já deve estar fervilhando de questões: homem sem divindade? Casado e com filhos? Com uma mulher por vezes traduzida como prostituta? Seguidor e não líder? Tudo isso não contraria o que aprendemos?
Com sua voz serena, o professor Fernando Altenmeyer esclarece os dilemas. "A Igreja achou por bem selecionar os escritos. Seria impossível fazer uma Bíblia com 5 mil escritos", responde à primeira questão, referindo-se à real existência dos apócrifos citados por "O Código". Esses documentos foram encontrados depois de a Escritura Sagrada ficar pronta, mas são conhecidos. O Vaticano inclusive reconhece sua existência. Sobre a natureza do filho de Maria, ele diz que "está claro para a Igreja que Jesus é dotado de divindade. Essa afirmação foi aceita por seus seguidores desde os primórdios da Igreja". Isso significa que, historicamente, o homem Jesus de Nazaré existiu mesmo e que, para os cristãos, essa mesma figura era Deus feito homem.
A idéia do Cristo ter sido casado e ter tido filhos é antiga, já persegue a humanidade há tempos. Ela vem de uma necessidade de provar que Jesus era um homem como outro qualquer, sem poderes mágicos. O fato de ter deixado descendentes mostra uma vontade de encontrar, ainda hoje, um elo palpável com a divindade. Ao que o professor Fernando rebate: "Claro que ele era um homem comum. De carne e osso. Mas os Evangelhos mostram que ele não casou e nem teve filhos". Não porque tivesse algum problema, ou fosse contrário a isso. Mas parecia que Jesus estava tão envolvido com sua causa e acreditava tanto que o Juízo Final estava próximo, que o investimento de energia numa família não valia a pena. Conta a História que algo semelhante se passou com o líder da libertação da Índia, Mahatma Ghandi. Em determinado momento de sua luta contra os ingleses, Ghandi combinou com sua mulher que ela não mais seria sua esposa, mas sim sua irmã. "Pode parecer desprezo pela mulher, mas quem quer abraçar o mundo coloca a vida nessa causa. Dedica-se somente a ela. E foi o que aconteceu com Jesus", afirma Altenmeyer.
Em princípio, não haveria problema algum para a Igreja Católica admitir que Jesus teve mulher e filhos. Mas, alega-se, não há nenhum documento -- mesmo entre os apócrifos -- que confirme essa versão. Pelo contrário. De acordo com a Bíblia, Jesus teria feito o voto de Nazireus. Ele era o primeiro filho e o voto o colocava no papel de cuidador da família, já que, ao que tudo indica, seu pai teria morrido muito cedo. Os cabelos longos seriam uma prova dessa posição.
Tudo isso também derruba a idéia do envolvimento com Maria Madalena. Se Jesus cuidava da família e, mais ainda, se dedicava a um movimento, não faz sentido que tivesse uma companheira. É verdade que os "Evangelhos de Maria Madalena!" falam que o Cristo tinha um grande amor por Madalena e que a beijava mais que aos outros, "mas esse é um costume muito comum entre muitos povos, beijar o rosto de homens e mulheres como sinal de afeição", explica o professor de teologia. Ele continua: "segundo [Sigmund] Freud, Jesus era um não neurótico, ou seja, não tinha nenhum problema em tocar ou ser tocado".
Esse ponto torna-se delicado quando entendemos esse tocar com uma conotação sexual. E soa entranho pensar que o filho de Deus pudesse ter desejo. "Também não há problema algum em supor que Jesus tinha algum afã sexual. Ele era um homem. E não era castrado", coloca, sem constrangimentos, o entrevistado. E quanto ao fato de Maria Madalena ser prostituta? É verdade que essa descrição só aparece em algumas versões da Bíblia,ou seja, não se confirma. "O problema maior não é a ocupação dela, mas sim que há várias Marias e Madalenas na Bíblia. Qual é qual?", aponta Altenmeyer. Segundo o professor, a pecadora arrependida (e não necessariamente prostituta), a mulher que lava os pés de Jesus, a que está aos pés da Cruz e a que nota sua ressurreição são, no mais das vezes, descritas como a mesma. Todas são Maria Madalena. O que não está confirmado nos Evangelhos. Os escritos falam em Miriam, que é a palavra árabe para Maria, mas não especifica quem é quem. Se são as mesmas, ou se cada uma é uma -- fica a dúvida.
Se as polêmicas em torno de Jesus Cristo colocadas em "O Código Da Vinci" podem todas ser explicadas, então por que as Igrejas e os estudiosos estão se apressando em escrever e lançar livros desmentindo as teorias que aparecem no livro? "A instituição que se sentir lesada tem o direito de responder. Não sei se precisa tanto. Mas embora historicamente a figura dele esteja bem consolidada, talvez o povo, os fiéis, não o conheçam muito", responde o professor Fernando.
Se toda essa polêmica acendeu no leitor a vontade de conhecer o personagem ficcional de Dan Brown e de desvendar um pouco mais profundamente o personagem histórico para, no final ter uma opinião pessoal, Fernando Altenmeyer dá mais uma dica: "Leia ‘O Código Da Vinci’ e depois confronte-o com o Evangelho de São Marcos". O professor de Teologia da PUC-SP garante que o leitor se tornará capaz de tirar as próprias conclusões. Agora, é só mergulhar
Fonte:texto de Elisa Marconi e Francisco Bicudo
http://www.historianet.com.br/
Este texto foi publicado no Boletim Eletrônico do SINPRO-SP (Sindicato dos Professores), ano II, No. 52, recebido pelo HISTORIANET em 15 de maio de 2004.
http://www.historianet.com.br/
Este texto foi publicado no Boletim Eletrônico do SINPRO-SP (Sindicato dos Professores), ano II, No. 52, recebido pelo HISTORIANET em 15 de maio de 2004.
Comentários
Postar um comentário