CONTEMPLAÇÃO ARTÍSTICA



Durante quase aproximadamente 2 milênios desde que a fé saiu das catacumbas, os cristãos empregaram a arte –e os artistas– para construir igrejas, enfeitá-las e inspirar os fiéis. Como resultado disso, o cristianismo fez uma enorme contribuição à arte. A arte religiosa em todas suas formas, desde as vestes sacerdotais, retábulos, estátuas, gárgulas, baixo-relevos e vitrais, sempre educou os analfabetos e os meninos na fé. E ainda o faz.

Durante a Idade Média, a arte religiosa contribuiu com a maior parte das imagens que um europeu médio veria durante sua vida. Esse era praticamente o único meio visual disponível para as massas –a Internet de nossos dias, a televisão, o cinema e a mídia escrita, todos juntos num só local–. Inclusive depois da invenção da imprensa, quando os cristãos rezavam com textos –salmos, parábolas e memoráveis passagens da Escritura e outros clássicos religiosos– continuaram usando as imagens na meditação e na oração. As capelas privadas nas casas aristocráticas continham pelo menos um objeto de arte, principalmente uma pintura ou uma estátua. Os cristãos que tinham recursos também compravam pequenos ícones, o suficientemente pequenos para levá-los consigo e usá-los com regularidade. A classe média também adotou essa forma de devoção à medida que foi-se desenvolvendo.

Hoje em dia, as peças mais importantes da arte cristã estão nas igrejas, principalmente na Europa, mas muitas delas foram compradas por museus em todo o mundo. Seguindo o exemplo de nossos antepassados na fé, por que não usar o grande tesouro da arte cristã como fonte de oração, meditação e devoção?

Um amigo que visitou um museu estatal em Moscou, há pouco tempo, surpreendeu-se ao ver pessoas de joelhos, com a cabeça inclinada, rezando com reverência em público frente aos ícones e outras obras cristãs da exposição. Alguns fiéis deixaram uma flor ou uma vela no chão, ao lado da obra. Aparentemente, estes gestos são comuns. Que estes cristãos tenham encontrado estas obras fora da igreja parece não ter nenhuma importância, já que a arte em si, nessa cultura e entre os ortodoxos, era vista como digna de veneração.

Em compensação, nossa cultura tende a fragmentar a experiência, deixando cada tipo diferente discretamente em seu lugar. Como resultado, nós desconectamos nossa sensibilidade religiosa em nosso lugar de trabalho e em público, e a conectamos na igreja e em lugares explicitamente religiosos. No entanto, podemos manifestar nossa experiência religiosa através da arte.

Revelações de um museu

A primeira vez que vi as pinturas de Les Halles de Vincent Van Gogh, uma grande coleção exibida no Metropolitan Museum de Nova York, há muitos anos, senti-me quase abrumada, respondendo visceralmente, inclusive fisicamente às obras. Era como se o artista tivesse apresentado como se veria um mundo ressuscitado e –esta foi minha grande revelação nessa ocasião– era nosso mundo. Entrei numa igreja próxima, rapidamente, para sentar-me no silêncio e ponderar o que acabava de ver. Devido à quantidade de gente, nesse momento não passou pela minha cabeça que eu podia ter rezado no museu.

Há anos, numa sexta-geira santa visitei as galerias européias do Met, procurando cenas da crucificação, em busca de uma imagem que me mostrasse o significado desse dia. Olhando cena trás cena cuidadosamente, olhando como um fiel, já não como crítico de arte ou um estudante de arte, consegui uma experiência espiritual enriquecedora. Algumas das salas estavam vazias e em silêncio. Algumas tinham assentos onde podia ficar em paz e descansar. Para prolongar o tempo desapercibidamente fui anotando meus pensamentos numa caderneta, servindo tanto como um truque como também uma ferramenta para ajudar-me na concentração de dois quadros que me impressionaram ao extremo. Desde então planejei muitas visitas similares, especialmente durante o Advento/Natal, Quaresma e Páscoa e recomendo a todos essa prática. Neste hábito reside a crença de que a arte pode comprometer o espectador de uma maneira visual e poderosa, e por aí mediar com o espírito de Deus.

A maior parte das cidades sempre tem um museu de arte e a maioria dos museus tem pelo menos uma pintura ou escultura adequada para a reflexão cristã. Os que vivem em áreas afastadas ou estão confinados em suas casas podem procurar na rede ou em livros de reproduções artísticas. A questão é a contemplação lenta e meticulosa da obra de arte, deixando que esta modele nossos pensamentos, sentidos e reflexões.

Alguns preferirão passar tempo ante uma imagem, concentrados e em silêncio num museu e depois ir a alguma igreja próxima para orar em paz. Para fazê-lo, não obstante, incorre no risco de romper a concentração e perder a imagem e suas dádivas. Poderíamos também tentar fazer ao contrário, rezar em casa frente a uma gravura ou imagem on-line, antes de ir ao museu ver a obra original. O original mostra a tela usada pelo artista (o tamanho, seja pequeno ou grande, causa impacto); revela as pinceladas do pintor (cinzel, rebite, ou as soldaduras de um escultor), a assinatura do artista, os estragos do tempo ou os benefícios de uma recente restauração. É o objeto real inimitável, completo com (às vezes) erros e tudo.

Selecionando uma imagem

Já que ninguém fica diante de uma obra de arte como se estivesse na frente de um quadro vazio, deve-se começar por onde estamos. Percorri uma galeria de arte com a paixão de Cristo inscrita em minha mente, tendo acabado de sair da missa ou de um serviço religioso inundado de música e homilias sobre justiça social; encontrei a arte que mostra o nascimento de Jesus e sua infância com uma nova profundidade, olhado retrospectivamente sob a posição de vantagem de sua morte. Também, durante Páscoa, consciente de que a morte foi debilitada, as imagens de um Jesus sofredor –traído, açoitado, cravado e escarnecido– podem aparecer iluminadas, tingidas de permanente felicidade. No entanto, a maioria certamente encontrará que as cenas da vida de Jesus que o conduzem à crucificação, como as mais potentes para a reflexão da quaresma.

Escolher uma imagem para a reflexão é muito pessoal e depende do gosto e de como a pessoa entender a arte. Nem todos gravitarão abertamente para temas religiosos, mas a maioria sim. Mesmo assim, os temas são muitos. Abundam as obras clássicas da Idade Média e Renascimento e alguns museus têm salas cheias de pinturas européias que podemos ver. Alguns podem preferir obras do século 19, como as de Paul Gauguin, Vincent Van Gogh, Georges Rouault, Henry Ossawa Tanner e Thomas Eakins, um pintor americano que pintou uma crucificação realista, em tamanho natural. Quanto ao século 20, considere Emil Nolde, Salvador Dalí ou Marc Chagall, que apesar de ser um artista judeu, pintou várias imagens emocionantes da crucificação. (Uma imagem surpreendente que merece ser vista é A Ressurreição, Cookham, de Sir Stanley Spencer, que costumava usar os membros de sua família e vizinhos como modelos; esta imagem, contrariamente a muitas das que estou recomendando, que estão nos Estados Unidos, está na Tate Gallery de Londres). As obras de Paul Klee e de Marc Rothko não são tão claramente religiosas e cristãs.

Para não ficar perdido com a riqueza de imagens que um museu grande pode oferecer, considere navegar pela internet através de uma coleção permanente, para encontrar uma imagem interessante e depois ir ao museu para observá-la. Ou se você tiver facilidade para freqüentar um museu, por que não visitar a coleção adequada para ver quais das obras o seduz e o fazem voltar?

Nem todo mundo se sente atraído por temas especificamente religiosos, inclusive como ajuda na oração. Alguns preferem arte evocativo, talvez fotografias de pessoas e lugares, paisagens ou abstrações. As formas dançantes de Matisse podem manifestar alegria e vida não limitadas pela morte tanto como qualquer cena de Jesus parado na frente ou sobre um túmulo vazio. Há alguns trabalhos de Jackson Pollock. Esculturas que voam ou nos chamam, abstrações que elevam nosso olhar e nos baixam a guarda, combinações de cores que nos levam ao mais profundo –todas são dignas de serem contempladas–. Algumas pessoas desejarão procurar um artista favorito: Rafael, Caravaggio, Tissot, El Greco, Rembrant.

Como prova, procurei na Internet a pequena coleção permanente do Kimbell Art Museum de Forth Worth, Texas. Há muitos candidatos para a reflexão espiritual, incluindo A Ressurreição de Lázaro (de Duccio dei Buoninsegna), um belo trabalho de guache sobre madeira, de Siena; A Bênção de Cristo (de Giovanni Bellini); e uma cena interior Jantar em Emaús (de Jacopo Bassano, reproduzida acima), que inclui dois criados que presenciam a cena. O Museu Kimbell também tem muitos quadros: a Madonna com o menino, e pelo menos um da Fuga da Sagrada Família para o Egito; estas seriam apropriadas para uma reflexão em qualquer época do ano, já que os cristãos comemoram qualquer acontecimento de Cristo –desde o nascimento até a ressurreição– em qualquer época.

Três imagens do Metropolitan

Dado que tantas pessoas vivem em Nova York e outras visitam-na como turistas, elas podem ver os conteúdos do Metropolitan Museum of Art on-line, selecionei três imagens dentre centenas que estão disponíveis no museu, a fim de ilustrar brevemente o tipo de contemplação que pode levar à oração. (Veja a barra lateral para uma lista de outras obras de arte apropriadas).

A Negação de São Pedro de Caravaggio (Galeria 30). O artista apresenta três personagens –uma jovem, um soldado e o pescador aterrorizado, Pedro, que acompanhou Jesus de perto até este insólito momento–. O espectador é testemunha de um drama privado, quando Pedro, ainda apreensivo pelo medo, é acusado publicamente pela moça. Ele esteve ali, no Jardim de Getsêmani quando Judas entregou Jesus às autoridades e ele sabe que Jesus agora está sendo interrogado pelo Sumo Sacerdote. Os polegares de Pedro apontam para seu próprio peito como acusando-se a si mesmo, apesar das palavras de negação que saem de seus lábios, "Nunca conheci esse homem". Para um cristão, esta pintura demonstra o quão dura pode ser a disciplina. Pedro compreende que sua fé é um assunto de vida ou morte. "Pensei ter matado Jesus", escreveu uma vez monsenhor Philip Murnion, sobre a responsabilidade pessoal do pecador pela crucificação. O que eu faria no lugar de Pedro?

O quadro Crucificação de Salvador Dalí (entrada do primeiro andar para a galeria moderna), em estilo surrealista, apresenta o corpo de Jesus suspenso na metade do caminho, o artista "eleva-o", para usar uma frase bíblica, como a cobra se elevou para sanar os infiéis israelitas nos tempos de Moisés e como Deus de uma vez e para sempre se elevou com a ressurreição. Na pintura de Dali, Jesus está invisivelmente amarrado a uma cruz feita de cubos de bronze. Não vemos sangue, nem marcas de cravos e não há nenhuma expressão facial, não obstante, os dedos de Jesus se contraem em agonia. Embaixo, uma mulher de vestido longo olha para o alto. Ambas caras olham em direção oposta ao espectador. A mulher está de pé num chão embaldosado que conduz a uma praia, água e montanhas. Ela é testemunha da crucificação, assim como o espectador, que também é testemunha de sua presença (dela) ali. Em certo nível, este é um tema tradicional: uma mulher aos pés da cruz. Aqui, no entanto, temos que decidir quem somos em relação a este Jesus: somos somente espectadores, ou algo mais, um seguidor, uma testemunha também? Como interpretamos a morte deste homem? Poderá curar-nos?

Cristo morto com anjos de Edouard Manet (galeria nova dos impressionistas, reproduzida na pág. 17). O tema que Manet escolhe é o momento entre a crucificação e a ressurreição; nós somos parte desse instante de pesar cósmico. Talvez estes dois anjos sejam os que falem a María Magdalena quando ela vier ao sepulcro. O artista pinta um corpo citrino, dilacerado. Jesus não tem expressão alguma; todas as emoções aparecem nos rostos dos anjos. A intenção do artista parece capturada no título, para mostrar-nos o Cristo que ainda não se elevou. A serpente que desliza no primeiro plano, símbolo de Hastas, está por ser vencida quando Deus retirar Jesus deste estado e o encher de vida novamente. O quadro foi objeto de ira quando foi mostrado pela primeira vez, porque o sujeito se via indecoroso e contém uma citação bíblica errada, que o artista não quis corrigir inclusive quando lhe foi indicada.

Encontrar a imagem adequada para contemplar é como escolher um livro para ler. Antes de investir tempo e dinheiro, muitas pessoas consultam comentários de livros, pedem-lhes conselho aos amigos, lêem capítulos on-line ou nas estantes, e depois decidem.

Uma vez feita a seleção, não é necessário pesquisar a figura ou o artista, apesar de que isso não interfere na apreciação. Em vez disso, o objetivo é conectar-se com a imagem simplesmente olhando-a, esperar pacientemente até que os vínculos sejam estabelecidos. Para viver a arte na oração, devemos pensar que os artistas –pelo menos os grandes artistas– comunicam um pouco de verdade sobre a criação ou a condição humana. A arte pode extrair-nos de nós mesmos e introduzir-nos no umbral de um estado de abertura da mente e resposta ao espírito de Deus. Isto é algo que eu experimentei, e a esperança de fazê-lo novamente me obriga a procurar arte nos livros, nas igrejas, na Internet e nos museus.


As imagens enviam mensagens subliminais, como bem sabem os publicistas. Por que não tomar o devido tempo para olhar imagens contemplativamente, interiorizá-las, deixá-las que nos impressionem, por assim dizê-lo? Assim como a música que se escuta atenciosamente, a arte também nos pode levar para um reino espiritual onde podemos ver a presença de Deus. Está aqui, a nosso alcance.

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