VAN GOGH - CONHECENDO O GÊNIO EM 12 PASSOS




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O primeiro passo do leitor deve ser dado em direção ao Masp (Museu de Arte de São Paulo), que possui quatro obras excepcionais do artista. Os retratos "A Arlesiana" ("Madame Ginoux") e "O Escolar" ("Camille Roulin") e as paisagens "Banco de Pedra no Jardim do Hospital Saint-Paul" e "Passeio ao Crepúsculo" —todos eles pertencentes aos dois últimos anos da vida de Van Gogh —são suficientes para que se perceba sua potência expressiva. Em todas elas, a mesma matéria densa e os contrastes de cores. Ainda que pessoas, objetos e paisagens sejam "esculpidos" com linhas nítidas e grossas e mergulhados em atmosferas de alta temperatura cromática, permanecem impuros, como se deles emanasse uma força bruta e misteriosa. Note, por exemplo, que a luminosidade de "O Escolar" não compensa a estranheza da divisão do fundo em amarelo e vermelho, a posição do garoto apoiado numa cadeira que, como ele, projeta-se em diagonal para fora da pintura, e mesmo a expressão do menino, absorto na contemplação do nada.

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A palavra é forte, mas, em relação a Van Gogh, não há como não puxar por ela: gênio. Autodidata, incomunicável, marginalizado, sujeito a acessos de loucura. "Preferiria minha loucura à sabedoria dos outros", escreveu em 1883. Gênio e louco. Binômio tão difícil de explicar quanto sua certeza em relação ao seu trabalho. Mais ainda quando se sabe que, até quatro anos antes da frase, em 1879, nem sequer se sabia artista —não havia desenhado ou pintado nada digno de nota, não passava de um pastor religioso fanático, uma personalidade atormentada por paixões fulminantes e infelizes. É assim que o artista emerge nas principais biografias, como "Van Gogh", de Meyer Schapiro (Thames & Hudson, 1985, em inglês). Como compreender que, em pouco mais de dez anos, realizaria uma obra fulgurante? Uma explosão vulcânica de efeitos duradouros?


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Tão certo quanto o fato de que as erupções vulcânicas alteram as paisagens, depois de Van Gogh a arte não foi mais a mesma . Se quiser conferir seu alcance, vá, por exemplo, ao encontro do nosso grande pintor Iberê Camargo (1914-1994), a começar por seus sombrios carretéis de linha, pintados entre os anos 50 e 60, versões dramáticas, feitas, a partir de pinceladas rudes e tintas espessas, do único brinquedo que o menino pobre do interior do Rio Grande do Sul possuía. A genealogia de Van Gogh é vasta, e seus "filhos" se espalham ao longo do século 20 por vários países.


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Habitualmente classificado como impressionista, a verdade é que Van Gogh travou contato com as pinturas de alguns deles somente em 1886 , quando já era um artista consumado. É fato que, quando se mudou para Paris, onde viveu por dois anos, aproximou-se de Toulouse-Lautrec (1864-1901), Paul Signac (1863-1935) e Georges Pierre Seurat (1859-1891), entre outros. A experimentação de seus colegas na redução do elenco de cores utilizadas e a busca por uma pintura realizada ao ar livre ("plein-air"), fundada na reverberação da luz nos objetos, alteraram substancialmente sua pintura. Mas seu caminho era mesmo singular. Paralelamente, foi apurando seu desenho, transformando-o num recurso vigoroso, a serviço de composições secas e equilibradas.

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A grandeza de Van Gogh deriva do fato, de resto muito raro na história da arte, de ele ser tão hábil e ousado na cor quanto no desenho . Cores são temperaturas, relacionam-se com o ar e com a luz, possuem a profundidade característica de ambos. Já o desenho concerne ao olhar atento, à tentativa de esquadrinhar as coisas, perceber suas texturas, sua forma exata, o gume dos seus contornos. Van Gogh ousa, porque frequentemente suas cores nada têm de naturalistas. Afastam-se das coisas como se celebrassem sua condição de cor, como se se libertassem do compromisso de serem o predicado disto ou daquilo. O desenho, efetuado com o pincel encharcado de tinta pastosa, não é o resultado do encontro de planos lisos, mas, antes, uma atitude afirmativa, um sulco de cor aberto no campo virgem da tela.


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Em Van Gogh, o desenho é feito com o pincel e não funciona como um arcabouço , uma estrutura tênue a ser eclipsada pelas camadas de tinta aplicadas posteriormente. A pincelada é, em si mesma, estruturante, como se pode ver no quadro "Passeio ao Crepúsculo", do acervo do Masp. Nele, a paisagem se movimenta em sentidos variados, de acordo com os diversos elementos retratados. Os ciprestes que, ao fundo, ultrapassam a linha do horizonte, realizados em pinceladas verticais, contrastam com a circularidade das pinceladas que representam as oliveiras, mais baixas e dispersas por toda a cena. As montanhas erguem-se abruptamente por efeitos dos feixes de cor produzidos por pinceladas curtas e ritmadas. A paisagem é um vórtice energético no qual cada componente desempenha um papel em particular. Os timbres cromáticos conservam suas peculiaridades do mesmo modo que os instrumentos de uma orquestra.


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Como transpor para a superfície da tela a coisa vista? Como representar uma simples cadeira se ela é o resultado do trabalho humano efetuado sobre a madeira, uma árvore, um organismo repleto de seiva? A objetividade com que Van Gogh busca representar o mundo não se esgota na sua aparência superficial, nas pinceladas difusas e diáfanas de alguns de seus colegas impressionistas. A energia que ele capta nas coisas parece conferir energia ao seu gesto , carrega-o de paixão. A massa de sua pintura, seu empastamento ostensivo, não é somente um método de trabalho mas a firme convicção de que pintura é trabalho.


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"A Arlesiana" é uma mulher do povo, e o menino Camille Roulin, de "O Escolar", filho do carteiro. Pouco antes de se descobrir artista, Van Gogh trabalhou como pregador entre mineiros de carvão na Bélgica. Sua relação com essas pessoas simples, o respeito que devota aos trabalhadores e mendigos, aos objetos toscos, ao banco de pedra do hospital, ao quarto monástico que habita em Arles a partir de 1888, a uma das cadeiras desse quarto, protagonista de uma pintura célebre, assim como suas botinas, peça que deu origem ao importante texto de Martin Heidegger "A Origem da Obra de Arte" (Edições 70, 76 págs., R$ 35,98), a devoção a todos esses elementos dá conta de sua filiação ao realismo de Gustave Courbet (1819-1877), de Jean-François Millet (1814-1875) e de Honoré Daumier (1808-1879).


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A profusão de auto-retratos —35 realizados entre 1886 e 1889—, aliados à peculiar relação que ele mantém com o próprio corpo, cujo ponto culminante é o episódio da mutilação de sua própria orelha, devidamente retratado posteriormente, coloca Van Gogh como o artista que introduz o próprio corpo como matéria-prima da arte. Em algumas imagens, particularmente aquelas executadas com pinceladas curtas e rápidas e em cores fortes e alternadas, o artista nos coloca diante da evidência de que seu corpo é o resultado de uma coesão fugaz de matéria. Ao par de servir como um termômetro efetivo de sua vida psíquica e de atuar como suporte para o exercício de técnicas pictóricas, o exame continuado e sistemático do próprio corpo entroniza o artista como alguém que testa seus próprios limites, que indaga sobre o enigma da própria existência.


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A solidão de Van Gogh foi atenuada pela presença de seu irmão Theo van Gogh —o único que suportava sua natureza afoita e excessiva, seu ciúme neurótico, que afastava de si mulheres e amigos, como Gauguin, com quem ele contava para organizar em Arles uma comunidade artística. Theo van Gogh amava e sustentava seu irmão. Em troca, recebeu cartas copiosas, cujas falhas ortográficas são compensadas por seu valor, sem precedentes na história da arte, como testamento estético profundo e sem concessão de qualquer espécie, e pelo sentimento de compaixão que nos desperta o relato de sua vida atormentada ("Cartas a Theo", de Vincent van Gogh, L&PM Editores, 470 págs., R$ 19). Quando Theo confessa que está em dificuldades financeiras, isso, talvez não por acaso, coincidirá com o suicídio de Vincent. Passada sua morte, Theo empenha-se para que se faça justiça à obra do irmão, propondo, em vão, exposições e catálogos. Em menos de sete meses, após sucessivas crises de loucura, é Theo van Gogh quem morre. Seu corpo repousa ao lado do do irmão no cemitério de Auvers-sur-Oise, perto de Paris.
Um dos auto-retratos de Van Gogh

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Na altura em que se completavam cem anos de sua morte, em 1987, um de seus quadros de girassóis alcançou quase US$ 40 milhões . O mercado ainda não se havia recuperado quando, num segundo leilão, "O Retrato do Dr. Gachet", em 1990, foi arrematado por um magnata japonês pela astronômica soma de US$ 83 milhões. O recorde se mantém até hoje, o que torna ainda mais irônico o fato de que Van Gogh tenha vendido somente uma tela durante toda a sua vida. Essa venda solitária consagra-o como o maldito entre os outros malditos que compunham "a sagrada trindade impressionista": Paul Gauguin (1848-1903) e Paul Cézanne (1839-1906).

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A internet, como se sabe, é um abismo infinito. Em vez de acessar as milhares de páginas relacionadas a Van Gogh, bastam duas entradas: o Museu Van Gogh, de Amsterdã —que programou duas exposições comemorativas: "A Escolha de Vincent", que vai até 15 de junho, e "Gogh Moderno", de 27 de junho a 12 de outubro—, e o http://www.vggallery.com/, de responsabilidade do pesquisador canadense David Brooks. Neste último, você encontrará as 2.154 obras do artista —mil desenhos, 871 pinturas, 150 aquarelas e 133 esboços—, além de uma avalanche de informações sobre elas. Ah, e tem o site do MASP, que reproduz as quatro obras de sua coleção. O artista também foi alvo de homenagens por parte de quatro grandes diretores do cinema: Vincent Minelli ("Sede de Viver", 1956, com Kirk Douglas), Akira Kurosawa ("Sonhos", 1990), Robert Altman ("Vincent e Theo", 1990) e Maurice Pialat ("Van Gogh", 1992).


Autoria : Agnaldo Farias: Professor de história da arte do curso de arquitetura e urbanismo da USP de São Carlos. É autor de "Arte Brasileira Hoje" (Publifolha, 2002)

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