UMA REFLEXÃO SOBRE A SOLIDÃO

INTRODUÇÃO
Solidão - etimologia do termo: Só, desacompanhado, solitário, único, próprio. Do latim solus. Solipsismo – doutrina filosófica segundo a qual a única realidade do mundo é o próprio eu.(1)
A solidão é algo inerente à condição humana, é constitutivo do ser. Surge com o nascimento e se esvai com a morte. Isto para aqueles que vêm a morte como o fim da existência. Ser só é diferente de estar sozinho. Todos somos sós. Estar sozinho é a situação onde o outro não está presente. Ser só é semelhante a ser único. Eu sou um, ele é um, você é um. A solidão criativa não traz sofrimento, ela é uma opção de contato com este nosso aspecto constitutivo. Neste contexto é a expressão da nossa unicidade. Segundo Schopenhauer, "solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais".
Sofremos com a solidão porque ela nos demonstra o quanto necessitamos do outro. Temos que aceitar o ser humano como um ser social, que precisa do grupo para sobreviver. Ela, a solidão, está sempre aí, acontece que por vezes os contextos em que vivemos evidenciam a sua existência. Os fins de tarde e os domingos por exemplo, são momentos em que o mundo ao nosso redor pára. A máquina do mundo interrompe suas atividades e é o momento do voltar-se para a vida pessoal. É o momento do esvaziamento operacional que ocupa o dia a dia, é o momento do desentulho material, já que o meio da semana, preenchido com o trabalho, desocupa a pessoa dela mesma. É o momento de contato com a solidão, momentos em que entra-se em contato com temas difíceis da existência.
A solidão pode estar associada a vários aspectos e pode ser abordada segundo diversos focos: a real ausência do outro, o suicídio, a velhice, a vida religiosa e a solidão associada ao tédio. E é sobre esta última que gostaria de dissertar. E justifico minha escolha na constatação de que o tédio é a dor de ver a existência passar e não estar vivendo todas as possibilidades que nos são oferecidas pela vida. Tem a ver com a falta de perspectiva de evolução, com a vivência de uma vida sem sentido. Tem a ver com a concepção do tempo e da angústia. É uma solidão que expressa a falta de cuidado, o descaso em relação à própria vida. Sua contrapartida, a solidão criativa, envolve a formulação de um projeto, depende de um pelo que viver. A solidão criativa é uma atitude, é a definição de uma postura diante da conscientização da realidade da vida. A intenção deste texto é refletir sobre estes aspectos do tema solidão.
A SOLIDÃO, O TÉDIO, O TEMPO, A ANGÚSTIA E O SENTIDO...
Existe uma inquietação que é inerente ao ser humano, que se expressa por um impulso natural na busca de sentido e progresso. Existe porém, o tédio, que se configura na paralisação do ser diante da impossibilidade da realização de suas aspirações. Acontece quando a pessoa deixa de viver a realidade tal como ela é, uma vez que esta não se configura da maneira como gostaria que fosse. Deixa de trilhar os caminhos possíveis. A vida torna-se impossível e portanto vazia.
O preenchimento da vida tem a ver com a noção de tempo e temporalidade. A questão que se faz presente na colocação sobre este assunto é: O que é o tempo? Vejamos o que Husserl e Heidegger pensam sobre o tema.
Husserl desenvolve um esquema temporal, onde o movimento da consciência é descrito em três momentos distintos: a impressão originária, a retenção e a protenção. O primeiro momento caracteriza o agora, o presente. O segundo, a maneira pela qual o presente é retido, já se transformando em passado. E o terceiro momento, refere-se ao horizonte de orientação quanto ao futuro. Esta forma de associação envolvendo estes três momentos permite a percepção da gestalt.
A relação entre tempo e ser foi postulada por Heidegger e é onde a dualidade essência - existência foi superada. O conceito de Dasein ou ser-aí, já se refere ao tempo na existência humana. Para ele, o tempo não é uma coisa, está na consciência, coexiste com o passado e o futuro. O conceito de temporalidade se desenvolve em Heidegger a partir de articulações entre o conceito de Dasein e Sorge (cuidado), onde temporalidade é o sentido do cuidado. Este cuidado tem a ver com as possibilidades, o "por-vir" da existência. O Dasein é assim concebido numa conjugação entre o "ser-sido", o "estar em situação" e o "por-vir". Ou: passado, presente e futuro. Ou ainda: O nada/o não-ser, o tempo/o cuidado e novamente o nada/não-ser. Heidegger apresenta uma fórmula para a compreensão da noção de cuidado, descrita em três momentos: 1º- A antecipação - ser à frente de si, projetar-se; 2º- O estado de abandono - já em um mundo, presente; 3º- O "estado de resolução" - como ser junto de, em relação com o outro. Este cuidado é o "estado de resolução", é o que resulta, é a maneira como o ser se assume, se projeta, programa sua existência em relação ao sentimento de incompletude. É o se saber como ser para a morte. É a maneira como o ser se coloca diante de si mesmo, do outro e do social que envolve a questão da temporalidade.
Tanto para Husserl quanto para Heidegger, o futuro apresenta uma relevância significativa na existência humana já que se concretiza numa dimensão originária, que impulsiona, que oferece sentido e intenção à existência e sem o qual não existiria consciência nem Dasein. O futuro é dinâmico e se refere àquilo que está por trás do visível.
Compreende-se desta forma a temporalidade como a própria existência e não como um atributo desta. Tempo e sujeito têm significações que se fundem e se processam simultaneamente. Esta concepção nos coloca frente à frente com nossa própria existência, nos associando naturalmente à experiência do tédio, da angústia, da liberdade e da busca de sentido.
Viktor Frankl nos falando sobre esta questão do futuro, diz que não importa o que temos a esperar da vida, mas o que a vida espera de nós. É a vida, neste contexto que indaga de nós o que temos a oferecê-la e daí a necessidade realização e de estabelecer para nós mesmos algo ou alguém que nos espere no futuro. Neste contexto, segundo Friedrich Nietzsche, quem tem um por que viver, suporta qualquer como. A falta disso estabelece um vazio existencial que se configura no tédio e na angústia.
A noção de angústia se faz presente no ponto central da concepção de existência para Heidegger. Os conceitos de existência, tempo e angústia se equivalem. A angústia se localiza na capacidade do ser, ou a falta dela, de lidar com o aspecto criador e destruidor do tempo. A angústia, para Heidegger, também está na "condição original" do ser. A angústia é uma característica ontológica, enraizada na existência. Representa uma ameaça aos alicerces desta existência, é a experiência da ameaça, da iminência do não-ser. É o estado subjetivo da conscientização por parte do sujeito de que sua experiência pode ser destruída, de que ele pode perder o próprio ser e o mundo.
A angústia ocorre no momento em que uma possibilidade ou potencialidade desponta em relação à probabilidade do ser preencher sua existência. Essa possibilidade implica o ser no contato com a destruição de si, enquanto ser-no-mundo. Leva ao anúncio do perigo. A angústia é assim, a expressão imediata do "cuidado" do homem pelo seu ser. É adiantar-se à morte, é escolher a si mesmo, ir em direção ao futuro, optando pela vivência no cotidiano, sabendo que a morte estará presente e que ela é parte essencial da vida.
Paul Tilich define a angústia como o estado do ser em que se tem consciência de seu possível não-ser. É a angústia de finitude, quem está na angústia está em desamparo. Ele define três tipos de angústia: angústia do destino e da morte, angústia de vacuidade e insignificação e angústia de culpa e condenação.
Já vimos que existe no ser uma recusa contra o tempo, ao mesmo tempo em que ele pode ser tomado como um aliado. Nesta luta, o homem quer se fazer reconhecer por um outro através de uma obra própria, que permanecerá e o salvará da solidão e da morte. O desejo realizado no trabalho é um desejo que nasce de um projeto e se realiza no tempo, movido pela promessa, real ou imaginária, de reconhecimento. A dor do tempo é o receio de que ele passe, assim como o ser, sem ter deixado sua marca no mundo. O desejo de reconhecimento garantiria a imortalidade ou sobrevivência simbólica. A ameaça não é da ausência do outro ou da morte em si, mas da falta de significação, da perda da perspectiva de realização pessoal. Se não houvesse o desejo de preenchimento do que falta e de reconhecimento, e se não houvesse a própria falta, não teríamos mais em que investir. Na perspectiva temporal a vida não teria mais sentido. Sentido significando uma direção no tempo, um projeto.
A solidão neste contexto surge como um espaço de vida, um local onde é possível formular uma maneira de conceber a vida e de vivê-la. Ela é um dos tons da existência e expressa o sentido colocado pelo ser para existir. A atitude de dimensionar-se no tempo demanda um posicionamento diante da vida que se vive, demanda administração.
Vejamos que administrar é gerir situações tornadas difíceis pelos nossos excessos (desusos ou abusos das possibilidades). É diferente de solucionar. Solução é algo perene, fixo e falso a nível do humano. É usar todos os recursos disponíveis, num exercício diário, natural e fluido. É a capacidade de intermediar recursos nos três níveis da nossa estrutura (o corpo e as sensações, a mente e as emoções, o espírito e os sentimentos), conduzindo-os para o objetivo, meta ou realização. O desejo constante de aprender pela certeza de que a toda dúvida corresponde uma pergunta, que por sua vez possui um par que é a resposta, marca uma atitude pró ativa perante a própria existência. Para bem administrar é preciso possuir auto referência. Vale dizer que a referência é um indicador confiável e relativo. Então, referência é aquilo que parte de nós, é relativa pois serve para mim mas não serve para o outro e é confiável porque se baseia na minha experiência - já experimentei e sei qual é o resultado. É ainda preciso fazer por merecer e por merecer-se, acionando a causa e os efeitos positivos (uma vez que todo ato e não ato tem conseqüências, por exemplo a ação de falar e a ação de silenciar), saindo da teoria e passando à prática testando os conhecimentos (criar a auto referência), fazendo uso do próprio potencial (tomar posse do que já é seu, ter domínio de si, ser dono de si), aceitando a realidade tal qual é e não como gostaria que ela fosse (a realidade é o espaço de realização), transformando culpas em responsabilidades, remorsos em arrependimentos e erros em acertos. Administrar enfim é isto: começar a se situar diante da própria verdade.
A solidão situada desta forma passa a ser um caminho de expressão individual, como uma porta que dá passagem ao existir. A solidão administrada é a solidão utilizada e por isto criativa.
A solidão criativa implica na opção pelo estar só. Esta atitude por si só pode promover um afastamento da solidão desesperadora. A produção criativa está associada ao isolamento. O estar só em momentos de criação enriquece a alma no sentido de permitir uma introspecção até os seus limites máximos. É claro que unicamente o fato de se optar pelo isolamento, não garante o aproveitamento criativo desta solidão, mas fica nítido que "as realizações obtidas nas situações de isolamento mostram que a solidão vivida doce e suavemente traz indícios da própria grandeza da alma humana. Igualmente é na solidão que a própria introspecção adquire contornos de espiritualidade praticamente impossível de ser alcançada noutras circunstâncias."... "A solidão apresenta facetas de encantamento inigualável. Ao mesmo tempo que se apresenta desesperadora, por outro lado nota-se a própria essência da vida existindo somente a partir da solidão" (2).
CONCLUSÃO
Percebe-se que a solidão descrita do ponto de vista teórico é algo encantador e convidativo à alma humana. Chega a representar um porto seguro ou um local onde o ser sente seguro e confortável, um refúgio a um espaço terno e familiar: dentro de si mesmo. Do ponto de vista prático entretanto, percebe-se a solidão como sendo um dos aspectos torturantes da existência. No contexto prático ela surge associada à angústia.
Compreendendo a angústia como a presença de uma possibilidade, percebemos a vinculação do conceito de angústia ao de liberdade. Há quem renuncie à liberdade para livrar-se da angústia. Quando a liberdade, as possibilidades e a angústia são rejeitadas, se faz presente a culpa, onde o indivíduo está em débito com aquilo que é dado em sua origem. A culpa também é uma característica ontológica e um modo de ser do Dasein. Esta diferencia-se da culpa e da angústia neurótica ou mórbida, que acarretam formação de sintomas. A angústia existencial não pode ser curada, pode ser assumida pelo que Tilich denomina a "coragem de ser". A reflexão sobre a angústia leva ainda à reflexão sobre o desespero, que é a incapacidade do ser se posicionar diante do não-ser.
Enfim, a solidão para o senso comum, para a sociedade, é vivida como algo desesperador e nos leva a reflexões ainda mais extensas sobre o tema. Não é possível concluir o assunto, mas refletir sobre alguns aspectos que lhe são pertinentes e esta foi a proposta do presente texto. O que se ressalta no estudo sobre a solidão é que ela marca nossa excepcionalidade enquanto ser, marca nossa unicidade e vivê-la de forma criativa ou não, depende de uma opção: escolher a si mesmo. Não é mágica, não é mistério, é um processo lento e gradual de nascimento para a própria existência. É um processo de mudança que precisa ser trilhado pela humanidade passo a passo, respeitando-se o primeiro passo que acredito ser a intenção – ação interna – de escolha de si mesmo. Assim vejo o começo e assim concluo: "Todo início é sagrado porque possui as energias do começo. Todos os passos em direção à mudança começam do primeiro, o mais difícil. Quando uma pedra se parte não se pode determinar qual foi a martelada vitoriosa: se a primeira ou a centésima..."(3) Faço votos de que todos nós possamos iniciar um contato com a solidão da existência humana.
BIBLIOGRAFIA:
(1) CUNHA, Antônio Geraldo da - Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa - Ed. Nova Fronteira - Rio de Janeiro - 2ª Edição - 1986 .
(2) ANGERAMI – CAMON, Valdemar Augusto – "Solidão: a ausência do outro"- Ed. Pioneira – 2ª edição – São Paulo – 1992.
(3) Registros pessoais e textos diversos referenciados no repensar – Sistematização do Pensamento Crítico coordenado por ANDRADE, Alcione A. - Belo Horizonte - 1996/1997.
GARCIA, José Newton – "Considerações Sobre o Tempo na Filosofia" - Belo Horizonte – Maio 1995 – (mimeo)
FRANKL, Viktor E. – "Em Busca de Sentido"- Ed. Vozes – 7ª edição – Petrópolis - 1991.

Fonte : http://www.fraterbrasil.org.br

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