A TEIA DA VIDA-FRITJOF CAPRA






A MUDANÇA DE PARADIGMA

 Na minha vida de físico, meu principal interesse tem sido a dramática mudança de concepções e de idéias que ocorreu na física durante as três primeiras décadas deste século, e ainda está sendo elaborada em nossas atuais teorias da matéria. As novas concepções da física têm gerado uma profunda mudança em nossas visões de mundo; da visão de mundo mecanicista de Descartes e de Newton para uma visão holística, ecológica.
A nova visão da realidade não era, em absoluto, fácil de ser aceita pelos físicos no começo do século. A exploração dos mundos atômico e subatômico colocou-os em contato com uma realidade estranha e inesperada. Em seus esforços para apreender esta nova realidade, os cientistas ficaram dolorosamente conscientes de que suas concepções básicas, sua linguagem e todo seu modo de pensar eram inadequados para descrever os fenômenos atômicos. Seus problemas não eram meramente intelectuais, mas alcançavam as proporções de uma intensa crise emocional e, poder-se-ia dizer, até mesmo existencial. Eles precisaram um longo tempo para superar essa crise, mas, no fim, foram recompensados por profundas introvisões sobre a natureza da matéria e de sua relação com a mente humana.
As dramáticas mudanças de pensamento que ocorreram na física no princípio deste século têm sido amplamente discutidas por físicos e filósofos durante mais de cinqüenta anos. Elas levaram Thomas Kuhn à noção de um “paradigma” científico, definido como “ uma constelação de realizações – concepções, valores, técnicas, etc – compartilhada por uma comunidade científica e utilizada por essa comunidade para definir problemas e soluções legítimos”. Mudanças de paradigmas, de acordo com  kuhn, ocorrem sob forma de rupturas descontínuas e revolucionárias denominadas “mudanças de paradigma”.
Hoje, vinte e cinco anos depois da análise de kuhn, reconhecemos a mudança de paradigma em física como parte integral de uma transformação cultural muito mais ampla. A crise intelectual dos físicos quânticos na década de vinte espelha-se hoje numa crise cultural semelhante, porém muito mais ampla. Consequentemente, o que estamos vendo é uma mudança de paradigmas que está ocorrendo não apenas no âmbito da ciência, mas também na arena social, em proporções ainda mais amplas. Para analisar esta transformação cultural, generalizei a definição de Kuhn de um paradigma cientifico até obter um paradigma social, que defino como “ uma constelação de concepções, de valores, de percepções e de práticas compartilhadas por uma comunidade, que dá forma a uma visão particular da realidade, a qual constitui a base da maneira como a comunidade se organiza.
O paradigma que está agora retrocedendo dominou a nossa cultura por várias centenas de anos, durante as quais modelou nossa moderna sociedade ocidental e influenciou significativamente o restante do mundo. Esse paradigma consiste em várias idéias e valores entrincheirados , entre os quais a visão do universo como um sistema mecânico composto de blocos de construção elementares, a visão do corpo humano como uma máquina, a visão da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência, a crença no crescimento material ilimitado, a ser obtido por intermédio de crescimento econômico e tecnológico, e – por fim, mas não menos importante – a crença em que uma sociedade na qual a mulher é, por toda a parte, classificada em posição inferior à do homem é uma sociedade que segue a lei básica da natureza. Todas essas suposições têm sido decisivamente desafiadas por eventos recentes. E, na verdade, está ocorrendo, na atualidade, uma revisão radical dessas suposições.

ECOLOGIA PROFUNDA
O nosso paradigma pode ser chamado de uma visão de mundo holística,, que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas. Pode também ser denominado de “visão ecológica”, se o termo “ecológica” for empregado num sentido mais amplo e mais profundo que o usual. A percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos , e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados em processos cíclicos da natureza (e , em última análise, somos dependentes desse processos).
Os dois termos, ‘holístico” e “ecológico” , diferem ligeiramente em seus significados, e parece que “holístico” é um pouco menos apropriado para descrever o novo paradigma. Uma visão holística, digamos, de uma bicicleta significa ver a bicicleta como um todo funcional e compreender, em conformidade com isso, as interdependências das suas partes. Uma visão ecológica da bicicleta inclui isso, mas acrescenta-lhe a percepção de como a bicicleta está encaixada no seu ambiente natural e social – de onde vêm as matérias-primas que entram nela, como foi fabricada, como o seu uso afeta o meio ambiente natural e a comunidade pela qual ela é usada, e assim por diante. Essa distinção entre “holístico” e “ecológico” é ainda mais importante quando falamos de sistemas vivos, para os quais as conexões com o meio ambiente são muito mais vitais.
O sentido em que eu uso o termo “ecológico” está associado com uma escola filosófica específica e , além disso, com um movimento popular global conhecido como “ecologia profunda”, que está, rapidamente, adquirindo proeminência. A escola filosófica foi fundada pelo filósofo norueguês Arne Naess, no início da década de 70, com sua distinção entre “ecologia rasa” e “ecologia profunda”. Essa distinção é hoje amplamente aceita como um termo muito útil para se referir a uma das principais divisões dentro do pensamento ambientalista contemporâneo.
A ecologia rasa é antropocêntrica, ou centralizada no ser humano, Ela vê os seres humanos como situados acima ou fora da natureza, como fonte de todos valores, e atribui apenas um valor instrumental, ou de “uso”, à natureza. A ecologia profunda separa seres humanos – ou qualquer outra coisa – do meio ambiente natural. Ela vê o mundo não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes . A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida.
Em última análise, a percepção da ecologia profunda é percepção espiritual ou religiosa. Quando a concepção de espírito humano é entendida como o modo de consciência no qual o indivíduo tem uma sensação de pertinência, de conexidade, com o Cosmos como um todo, torna-se claro que a percepção ecológica é espiritual na sua essência mais profunda. Não é pois, de se surpreender o fato de que a nova visão emergente da realidade baseada na percepção ecológica profunda é consistente com a chamada filosofia perene das tradições espirituais, quer falemos a respeito da espiritualidade dos místicos cristãos, da dos budistas, ou da filosofia e cosmologia subjacentes às tradições nativas norte-americanas.
Há outro modo pelo qual Arne Naess caracterizou a ecologia profunda. “A essência da ecologia profunda”, diz ele, “consiste em formular questões mais profundas.” É também essa a essência de uma mudança de paradigma. Precisamos estar preparados para questionar cada aspecto isolado do velho paradigma.(LY) Eventualmente, não precisaremos nos desfazer de tudo, mas antes de sabermos isso, devemos estar dispostos a questionar tudo. Portanto, a ecologia profunda faz perguntas profundas a respeito dos próprios fundamentos da nossa visão de mundo e do nosso modo de vida modernos, científicos, industriais, orientados para o crescimento e materialistas. Ela questiona todo esse paradigma com base numa perspectiva ecológica: a partir da perspectiva de nossos relacionamentos uns com outros, com as gerações futuras e com a teia da vida da qual somos parte.

ECOLOGIA SOCIAL E ECOFEMINISMO
Além da ecologia profunda, há duas importantes escolas filosóficas de ecologia. A ecologia social e a ecologia feminista, ou “ecofeminismo”. Em anos recentes tem havido um vivo debate, em periódicos dedicados à filosofia. A respeito das méritos relativos da ecologia profunda, da ecologia social e ecofeminismo. Parece-me que cada uma das três escolas aborda aspectos importantes do paradigma ecológico e, em vez de competir uns com os outros, seus proponentes deveriam tentar integrar suas abordagens numa visão ecológica coerente.
A percepção ecológica profunda parece fornecer a base filosófica e espiritual ideal para um estilo de vida ecológico e para o ativismo ambientalista. No entanto, não nos diz muito a respeito das características e padrões culturais de organização social que produziram a atual crise ecológica. É esse o foco da ecologia social.
O solo comum das várias escolas de ecologia social é o reconhecimento de que a natureza fundamentalmente antiecológica de muitas de nossas estruturas sociais e econômicas está arraigada naquilo que Riane Eisler chamou de “sistema dominador” de organização social. O patriarcado, o imperialismo, o capitalismo e o racismo são exemplos de dominação exploradora e antiecológica. Dentre as diferentes escolas de ecologia social, há vários grupos marxistas e anarquistas que utilizam seus respectivos arcabouços conceituais para analisar diferentes padrões de dominação social.
O ecofeminismo poderia ser encarado como uma escola especial de ecologia social, uma vez que ele aborda a dinâmica básica de dominação social dentro do contexto do patriarcado. Entretanto, sua análise cultural das muitas facetas do patriarcado e das ligações entre o feminismo e ecologia vai muito além do arcabouço da ecologia social. Os ecofeministas vêem a dominação patriarcal de mulheres por homens como o protótipo de todas formas de dominação e exploração: hierárquica, militarista, capitalista e industrialista. Eles mostram que a exploração da natureza, em particular, tem marchado de mãos dadas com a das mulheres, que têm sido identificadas com a natureza através dos séculos. Essa antiga associação entre a mulher e a natureza liga a história das mulheres com a história do meio ambiente, e é a fonte de um parentesco natural entre o feminismo e ecologia. Consequentemente, os ecofeministas vêem o conhecimento vivencial feminino como uma das fontes principais de uma visão ecológica da realidade.

NOVOS VALORES
Neste breve esboço do paradigma ecológico emergente, enfatizei até agora as mudanças nas percepções e nas maneiras de pensar. Se isso fosse tudo o que é necessário, a transição para um novo paradigma seria muito mais fácil. Há, no movimento da ecologia profunda, um número suficiente de pensadores articulados e eloqüentes que poderiam convencer nossos líderes políticos e corporativos acerca dos méritos do novo pensamento. Mas isso é somente parte da história. A mudança de paradigmas requer uma expansão não apenas de nossas percepções e maneiras de pensar, mas também de nossos valores.
É interessante notar aqui a notável conexão nas mudanças entre pensamentos e valores. Ambas podem ser vistas como mudanças de auto-afirmação para integração. Essas duas tendências – a auto-afirmativa e a interativa – são, ambas, aspectos essenciais de todos os sistemas vivos. Nenhuma delas é, intrinsecamente, boa ou má. O que é bom, ou saudável, é um equilibrio dinâmico; o que é mau, ou insalubre, é o desequilíbrio – a ênfase excessiva em uma das tendências em detrimento da outra. Agora, se olharmos para a nossa cultura industrial ocidental, veremos que enfatizamos em excesso as tendências auto-afirmativas e negligenciamos as interativas. Isso é evidente tanto no nosso pensamento como nos nossos valores, e é muito instrutivo colocar essas tendências opostas lado a lado.

…………………………..PENSAMENTO…………………………….
AUTO-AFIRMATIVO……………………..INTEGRATIVO
Racional…………………………………………Intuitivo
Análise…………………………………………..Síntese
Reducionista……………………………………Holístico
Linear…………………………………………….Não-linear
……………………….VALORES…………………………….
AUTO-AFIRMATIVO……………………INTEGRATIVO
Expansão…………………………………..Conservação
Competição………………………………..Cooperação
Quantidade…………………………………Qualidade
Dominação………………………………….Parceria
Uma das coisas que notamos quando examinamos esta tabela é que os valores auto-afirmativos – competição, expansão, dominação – estão geralmente associados com homens. De fato, na sociedade patriarcal, eles não são apenas favorecidos como também recebem recompensas econômicas e poder político. Essa é uma das razões pelas quais a mudança para um sistema de valores mais equilibrados é tão difícil para a maioria das pessoas, e especialmente para os homens.
O poder, no sentido de dominação sobre os outros, é auto-afirmação excessiva. A estrutura social na qual é exercida de maneira mais efetiva é a hierarquia. De fato, nossas estruturas políticas, militares e corporativas são hierarquicamente ordenadas, com os homens geralmente ocupando os níveis superiores, e as mulheres, os níveis inferiores. A maioria desse homens. E algumas mulheres, chegaram a considerar sua posição na hierarquia como parte de sua identidade, e, desse modo,, a mudança para um diferente sistema de valores gera neles medo existencial.
No entanto, há um outro tipo de poder, um poder que é mais apropriado para o novo paradigma – poder como influência de outros. A estrutura ideal para exercer este tipo de poder não é a hierarquia mas a rede, que, como veremos, é também a metáfora central da ecologia. A mudança de paradigma inclui, dessa maneira, uma mudança na organização social, uma mudança de hierarquias para redes.

ÉTICA
Toda questão dos valores é fundamental para a ecologia profunda; é, de fato, sua característica definidora central. Enquanto que o velho paradigma está baseado em valores antropocêntricos (centralizados no ser humano), a ecologia profunda está alicerçada em valores ecocêntricos (centralizados na Terra). É uma visão de mundo que reconhece o valor inerente da vida não-humana. Todos os seres vivos são membros de comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de interdependências. Quando essa percepção ecológica profunda torna-se parte de nossa consciência cotidiana, emerge um sistema de ética radicalmente novo.
Essa ética ecológica profunda é urgentemente necessária nos dias de hoje, e especialmente na ciência, uma vez que a maior parte daquilo que os cientistas fazem não atua no sentido de promover a vida nem de preservar a vida, mas sim no sentido de destruir a vida. Com os físicos projetando sistemas de armamentos que ameaçam eliminar a vida no planeta, com químicos contaminando o meio ambiente global, com os biólogos pondo à solta tipos novos e desconhecidos de microorganismos sem saber as conseqüências, com psicólogos e outros cientistas torturando animais em nome do progresso científico – com todas essas atividades em andamento, parece da máxima urgência introduzir padrões “ecoéticos” na ciência.
Geralmente, não se reconhece que os valores não são periféricos à ciência e à tecnologia, mas constituem sua própria base e força motriz. Durante a revolução cientifica no século XVII, os valores eram separados dos fatos, e desde essa época tendemos a acreditar que os fatos científicos são independentes daquilo que fazemos, e são, portanto, independentes de nossos valores. Na realidade, os fatos científicos emergem de toda uma constelação de percepções, valores e ações humanos – em uma palavra, emergem de um paradigma – dos quais não podem ser separados. Embora grande parte das pesquisas detalhadas possa não depender explicitamente do sistema de valores do cientista, o paradigma mais amplo, em cujo âmbito essa pesquisa é desenvolvida, nunca será livre de valores. Portanto os cientistas são responsáveis pelas suas pesquisas não apenas intelectual mas também moralmente. Dentro do contexto da ecologia profunda, a visão segundo a qual esses valores são inerentes a toda natureza viva está alicerçada na experiência profunda, ecológica, ou espiritual, de que a natureza e o eu são um só. Essa expansão do eu até a identificação com a natureza é a instrução básica da ecologia profunda, como Arne Naess claramente reconhece:
“O cuidado flui naturalmente se o “eu” é ampliado e aprofundado de modo que a proteção da natureza livre seja sentida e concebida como proteção de nós mesmos. … assim como não precisamos de nenhuma moralidade para nos fazer respirar… [da mesma forma] se o seu “eu”, no sentido amplo dessa palavra, abraça um outro ser, você não precisa de advertências morais para demonstrar cuidado e afeição… você o faz por si mesmo, sem sentir nenhuma pressão moral para fazê-lo. … Se a realidade é como é experimentada pelo eu ecológico, nosso comportamento, de maneira natural e bela, segue normas de estrita ética ambientalista.”
O que isso implica é o fato de que o vínculo entre uma percepção ecológica do mundo e o comportamento correspondente não é uma conexão lógica, mas psicológica.
A lógica não nos persuade de que deveríamos viver respeitando certas normas, uma vez que somos parte integral da teia da vida. No entanto, se temos a percepção, ou a experiência, ecológica profunda de sermos parte da teia da vida, então ESTAREMOS (em oposição a DEVERÍAMOS ESTAR) inclinados a cuidar de toda natureza viva. De fato, mal podemos deixar de responder dessa maneira.
O vínculo entre ecologia e psicologia, que é estabelecido pela concepção de eu ecológico, tem sido recentemente explorado por vários autores. A ecologista profunda Joanna Macy escreve a respeito do “reverdecimento do eu”; o filósofo Warwick Fox cunhou o termo “psicologia transpessoal”, e o historiador cultural Theodore Rozak utiliza o termo “ecopsicologia” para expressar a conexão profunda entre esses dois campos, os quais, até muito recentemente, eram completamente separados.

MUDANÇA DA FÍSICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA
Chamando a nova visão emergente da realidade de “ecológica” no sentido da ecologia profunda, enfatizamos que a vida se encontra em seu próprio cerne. Este é um ponto importante para a ciência, pois, no velho paradigma, a física foi o modelo e a fonte de metáforas para todas as outras ciências. “toda filosofia é como uma árvore”, escreveu Descartes. “As raízes são a metafísica, o tronco é a física e os ramos são todas as outras ciências.”
A ecologia profunda superou essa metáfora cartesiana. Mesmo que a mudança de paradigma em física ainda seja de especial interesse foi a primeira a ocorrer na ciência moderna, a física perdeu o seu papel como ciência que fornece a descrição mais fundamental da realidade. Entretanto, hoje, isto ainda não é geralmente reconhecido. Cientistas, bem como não cientistas, freqüentemente retêm a crença popular segundo a qual “se você quer realmente saber a explicação última, terá de perguntar a um físico”, o que é claramente uma falácia cartesiana. Hoje, a mudança de paradigma na ciência, em seu nível mais profundo, implica uma mudança da física para as ciências da vida.


Do livro: A TEIA DA VIDA (The Web of Life), do cientista nas áreas de física quântica e ecologia profunda FRITJOF CAPRA



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