Caiu em minhas mãos o livro Buddhism and Science: Breaking new ground [Budismo e ciência: Abrindo novos caminhos] (Columbia University Press, 2003), editado por B. Alan Wallace, autor de outros livros na interface budismo/ciência. Quinze artigos discutem diferentes aspectos da relação entre ciência e budismo, começando com uma excelente introdução de Wallace, que salienta alguns aspectos gerais da visão de mundo budista.
O budismo surgiu em meio às antigas tradições védicas na Índia, em torno do séc. V a.C., propondo um “caminho do meio” de moderação entre a luxúria e as práticas ascéticas extremas. Como as outras tradições místicas do hinduísmo e do jainismo, o budismo se baseia em técnicas de meditação que combatem o sofrimento humano, causado pelo desejo, e que promovem autoconhecimento. O que distingue a visão de mundo budista é a concepção de que nada no mundo é permanente, e o “eu” individual não existe.
O que haveria é uma nuvem de eventos momentâneos que formam complexos que identificamos como uma coisa ou como o eu. Não há assim a noção de uma alma individual e eterna que transmigraria de uma vida para outra. Os budistas acreditam em um ciclo de nascimento e morte, e a ligação seria feita por leis de causa e efeito (e não pela permanência de uma alma), chamados “carma”, onde boas ações levariam a bons retornos. O renascimento poderia se dar em cinco ou seis reinos diferentes, um dos quais é o dos homens. O ciclo cessaria ao se atingir a liberação final do “nirvana”.
O budismo considera que certas perguntas metafísicas não têm resposta, como se o Buda continuou existindo após a morte ou qual a origem do Universo. Valorizam também as atitudes morais da benevolência (bondade amorosa, ou querer que os outros sejam felizes), compaixão (desejo de livrar os outros de sofrimento), alegria simpática (alegria pela felicidade dos outros) e equanimidade (serenidade de espírito e considerar todos os seres como iguais).
As três principais tradições budistas hoje em dia são a Teravada (mais antiga, hoje centrada em Sri Lanka e no Sudeste Asiático), a Mahaiana (originada em torno do no séc. II, e presente no Leste Asiático, incluindo China, Corea, Viet-Nam; o zen budismo do Japão combinaria esta tradição com elementos do taoísmo) e a Vajraiana (derivada da Mahaiana e presente no Tibete e Ásia Central).
Na Antiguidade, antes da ascensão da Mahaiana, havia 18 escolas budistas, cujas doutrinas eram condensadas em textos conhecidos como Abhidarma, que apresentam detalhadas descrições do mundo físico e do mundo psicológico.
Darmas mentais e físicos
No livro em questão, William J. Ames, mestre em física e doutor em estudos budistas, apresenta uma exposição de duas doutrinas budistas distintas, buscando compará-las com as físicas clássica e quântica. A doutrina que Ames considera mais próxima da física clássica está presente nos Abhidarma de escolas antigas, como a Teravada e a Sarvastivada. As coisas do mundo são concebidas em termos de eventos momentâneos, que no caso dessas escolas são vistos como fenômenos reais, chamados “darmas”. Haveria em torno de 80 tipos de darmas, que podem ser mentais ou físicos. Exemplos de darma físico são sons e formas visíveis. Os objetos que perduram no tempo seriam ilusões cinemáticas produzidas pela rápida sequência de darmas semelhantes.
Pelo fato de os darmas serem considerados reais, Ames chama a cosmovisão apresentada nos Abhidarma de “realista”, e a aproxima da Física Clássica, que também buscaria analisar a realidade em termos de partes simples, como partículas e forças. No entanto, o que é chamado de “realismo” no budismo é mais próximo de um “fenomenalismo” na ciência.
A concepção ocidental que mais se aproxima dos textos do Abhidarma é a filosofia empirista radical do escocês David Hume (séc. XVIII), desenvolvida no século seguinte pelo físico Ernst Mach e por filósofos britânicos. Esta visão atribui realidade apenas para o que é observado, não para entidades inobserváveis, e além disso divide o campo observacional em elementos, “dados dos sentidos”, que seriam associados pela mente. Assim como para o budismo do Abhidarma, uma coisa que observamos ou o próprio “eu” seriam na verdade um complexo de sensações elementares. Supor que um objeto tem permanência seria para Mach apenas uma especulação metafísica, e para o budismo apenas uma ilusão.
Em suma, podemos concordar com Ames de que é possível interpretar a Física Clássica de maneira próxima ao budismo do Abhidarma, mas uma concepção “realista” da Física Clássica, que postula a existência de entidades inobserváveis (como átomos, espaço absoluto ou éter luminífero, no séc. XIX), não tem paralelos no budismo. E da mesma maneira que é possível interpretar a Física Clássica em termos fenomenalistas, também é usual fazê-lo na física quântica (ver texto, “Por que há tantas interpretações da teoria quântica?”). Assim, o budismo do Abhidarma também pode ser considerado próximo a uma parte das interpretações da Física Quântica, mas não todas.
A argumentação de Ames, porém, segue outra linha. Para fazer uma aproximação com a Física Quântica, ele escolhe outra escola budista, da tradição Mahaiana, que é a escola Madhiamaca fundada pelo grande filósofo Nagarjuna em torno do séc. II. Uma das novidades introduzidas por esta escola é a noção de “vazio”, que significa “falta de natureza intrínseca” (falta de essência). Por exemplo, para a escola Saravastivada (mencionada acima), o calor seria o darma correspondente à natureza intrínseca do fogo, mas para Nagarjuna esta não pode ser a essência do fogo, pois o fogo depende da madeira e de outros fatores causais antecedentes para existir. Esta questão é análoga ao “problema da mudança” lançado pelo filósofo grego Parmênides, mas a solução de Nagarjuna de negar essências não foi seguida pelos gregos posteriores a Parmênides (talvez só Heráclito se aproximasse).
Enfim, para a escola Madhiamaca, não haveria propriedades intrínsecas às coisas, mas todas as propriedades seriam relacionais, dependentes das relações entre os darmas. Ames salienta que isso se aproxima da interpretação ortodoxa da teoria quântica, que não atribui a um elétron uma posição ou velocidade: estas só aparecem em relação a um aparelho de medição. Porém, Ames nos lembra que um elétron tem algumas grandezas intrínsecas, como massa e carga: assim, o paralelo entre a visão Madhiamaca e a física quântica não seria completa. No entanto, existem físicos que defendem uma interpretação completamente relacional da física. Novamente Mach compartilhava desta visão (além de outros filósofos, como Leibniz e Berkeley), e hoje em dia podemos mencionar o inglês Julian Barbour e o brasileiro André Assis, entre outros. Assim, ao que parece, seria possível interpretar a física moderna de acordo com esta concepção relacional Madhiamaca.
Dalai Lama: ciência X budismo
Voltando ao livro em questão, um dos nomes mais importantes da área de fundamentos da física quântica, Anton Zeilinger, apresenta um relato do encontro entre um grupo de cientistas e de budistas com Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama (de uma das cinco escolas da tradição Vajraiana do Tibete), em 1998. Dentre vários tópicos discutidos, o Dalai Lama salienta que se a ciência chegar a uma conclusão segura que viole os ensinamentos do budismo, então esses ensinamentos budistas deverão ser abandonados.
David Finkelstein, nome importante e radical dos fundamentos lógicos da física, apresenta um artigo intitulado “Vazio e Relatividade”, que parte de uma explicitação do conceito de “vazio” para o budismo, que seria a tese de que tudo é relativo, de que não há entidades absolutas no Universo. Ele apresenta cinco pontos de semelhança entre a visão de mundo budista e a física moderna.
Semelhanças entre a visão do mundo budista e a física moderna
(1) O uso de lógicas não clássicas.
(2) O mundo visto como padrões de eventos de destruição e criação.
(3) Concepção atomizada do tempo (haveria uma unidade mínima de tempo, às vezes chamada “crônon”).
4) Holismo ou não decomponibilidade do mundo.
(5) A incompletude de qualquer representação do mundo.
O filósofo da ciência francês Michel Bitbol compara o budismo Madhiamaca, iniciado por Nagarjuna, com a filosofia de Immanuel Kant. Bitbol é bem conhecido por reavivar a tradição de interpretações neokantianas da mecânica quântica, esboçada na década de 1930 por Ernst Cassirer, Grete Hermann e Carl von Weizsäcker, salientando porém que a teoria quântica não deve ser vista como “representando” os fenômenos, mas sim como fornecendo “instrumentos” para agir na realidade fenomênica (uma postura mais pragmática).
No Brasil
No Brasil, a filósofa Patrícia Kauark Leite (UFMG) segue esta tradição neokantiana na mecânica quântica. Mas voltando ao texto de Bitbol, este sugere três maneiras de incorporar as preocupações Madhiamacas/kantianas na física quântica. Primeiro, desconstruindo as ilusões ontológicas da física, ou seja, atacando a noção de que existem objetos reais independentes do observador. Bitbol pode ser enquadrado na contemporânea corrente “pós-modernista” (relativista) da filosofia, bastante forte na França, e que combate a noção de uma “realidade objetiva”.
Em segundo lugar, aplicando a lógica dialética, de raciocinar a partir de opostos, para a antinomia entre determinismo e indeterminismo na física quântica (lembrando que nenhuma dessas duas posições pode ser provada). Terceiro, argumentando que as relações entre as entidades é mais importante do que as próprias entidades, ponto este explorado por Ames, conforme visto acima.
O livro apresenta também uma série de artigos comparando noções psicológicas ocidentais com aquelas do budismo, incluindo os estados atingidos através da meditação. Estes artigos incluem um texto do Dalai Lama e outro do biólogo chileno Francisco Varela. Dois outros artigos traçam aspectos históricos da relação entre budismo e ciência, como o de José Ignacio Cabezón, que não deixa de mencionar o bem conhecido livro de Fritjof Capra, O Tao da Física, lançado em 1976. Capra ressaltara a inseparabilidade do sujeito e objeto, incorporado na noção de “observador-participante” do físico John Wheeler, também mencionado por Ames.
Outro ponto, expresso nos textos Avatamsaca do Budismo Mahaiana, e também nos tantras do Budismo tibetano, é a concepção de uma teia cósmica de relações mútuas entre todos as partes do Universo. Isto seria semelhante à concepção holista da física quântica, exemplificado especialmente por partículas em estado “emaranhado”. No entanto, pode-se argumentar que na Física Clássica também ocorre uma interação mútua entre todas as partes do Universo, a diferença sendo que nesta as forças sempre diminuem com a distância de separação entre as partes.
Para finalizar esta breve comparação do budismo com a física quântica, vale mencionar o caso de um físico brasileiro que abandonou a carreira científica para se tornar mestre budista. Trata-se de Alfredo Aveline, professor de física na UFRGS, em Porto Alegre, que agora é o Lama Padma Samten. Uma amostra de suas idéias está no site:
http://www.cebb.org.br/images/stories/docs/ciencia_mente_lama_padma_samten_univ_sao_marcos.pdf .
Para ele, o que aproxima a física quântica do budismo é o fato de que o observador não pode ser separado dos fenômenos observados. Assim, não se poderia falar em uma realidade independente da mente, nem na física nem no budismo. Vimos este ponto sendo salientado também por Capra e Ames. Podemos dizer que tal conclusão é correta para uma parte das interpretações da teoria quântica, que chamamos “fenomenalistas”, e que incluem a concepção de Niels Bohr, citado por Samten, mas ela não é aceita pelas interpretações mais realistas da teoria quântica.
Busca de paralelos
Para concluir, gostaria de tecer um comentário sobre a busca de “paralelos” entre as tradições místicas orientais e a física moderna, para usar a expressão de Capra. Uma visão de mundo geralmente apresenta teses filosóficas muito gerais sobre o mundo (por exemplo, “Deus criou o mundo” ou “não há permanência no mundo”), e muitas vezes pode também apresentar teses factuais testáveis a respeito do mundo (por exemplo, “o homem evoluiu a partir do cação”, como defendia Anaximandro).
Quanto às teses testáveis, às vezes uma concepção filosófica antiga pode afirmar algo que é aceito hoje em dia pela ciência, como que existem átomos (Demócrito) ou que o Universo se iniciou em uma grande explosão (Empédocles). No entanto, não se pode atribuir essas antecipações das teses empíricas científicas a um poder de premonição ou capacidade intuitiva de perceber verdades profundas, que os antigos teriam. Trata-se apenas do fato de que os antigos, em qualquer continente, eram muito inteligentes e imaginativos, e propuseram diversas visões de mundo diferentes, cobrindo uma boa parte das possibilidades de como o mundo poderia ser. Alguns acabaram acertando, de maneira aproximada.
Uma avaliação distinta se aplica às concepções gerais de mundo, as “cosmovisões”. Estas geralmente não podem ser derrubadas pela ciência, e portanto é sempre possível adaptar uma visão filosófica geral ao conteúdo factual da ciência, nas chamadas “interpretações”. Assim, não é surpreendente que se possa propor para Física Moderna uma interpretação Saravativada ou Madhiamaca, ou mesmo um idealismo budista mais radical, como o Iogacara, para quem só existem representações mentais.
Fonte : Osvaldo Pessoa Jr.-VYA ESTELAR
Fé e razão buscam explicação para os fenômenos espirituais. Budistas acreditam em um caminho do meio entre ciência e espiritualidade. Física quântica introduziu mistérios na ciência contemporânea.Veja :
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