A economia que sustenta a
vida não é financeira
Lama
Samten fala sobre a monetização dos fluxos e elementos naturais e aconselha a
reconexão com as economias não financeiras
Pergunta: A ideia é evitar ficar
transmigrando, mas também há a natural perda de interesse nas bolhas em que nos
encontramos. A bolha do budismo parece muito mais brilhante. Mas, e quanto às
coisas necessárias à manutenção de vida, o básico do trabalho, quando se começa
a perder o interesse nisso? Isso não me parece muito lúcido.
Lama Padma Samten: É uma pergunta justa, apropriada, mas não tem uma solução.
Contudo, ela pode ser transformada em caminho. Faz sentido imaginar que a gente
começa a eventualmente perder tempo. Mas tem esse ponto: se a pessoa não tem
uma mãe muito amorosa, um pai que paga tudo, como vai fazer sua carreira de
Bodisatva? Como fazer essa coisa funcionar? É um tema bem interessante.
Neste momento estamos dentro do paradigma econômico, estamos
dentro da economia financeira. E eu tenho procurado encontrar palavras para
tratar disso. O Buda trabalhava dentro de uma economia, mas não era uma
economia financeira. Hoje, também temos a economia que não é financeira, mas
ela não é visível, porque não há palavras para defini-la. Quando estamos sendo
cuidados pelos pais, há uma atividade aí: não é uma atividade financeira, mas é
uma atividade econômica.
Quando começamos a entender que existe um tipo de atividade na
qual precisamos de moeda, vamos chamar isso de economia financeira. Mas existe
outro tipo de atividade que não precisa de moeda. Vamos descobrir que existe
uma vastidão de riqueza não financeira, que, num tempo de paradigma econômico,
as pessoas da economia financeira tentam monetarizar.
Por exemplo, você não pode captar água da chuva nem fazer
cisterna; você precisa de autorização para isso, tem de pagar imposto para
pegar água da chuva. Mas a água da chuva opera dentro da economia não
monetária, não financeira; ela pertence à generosidade natural do ambiente onde
nós estamos. O fluxo dos rios pertence à generosidade natural de todas as
coisas; a luz do sol e o vento pertencem a isso. Mas daqui a pouco tem de pagar
para usar o vento, para usar a energia solar. Estamos monetarizando todas as
coisas.
A superfície da Terra é um
lugar que sempre permitiu a sustentação da vida. As matas regulam tudo, então
elas têm um trabalho muito importante, não financeiro. Mas, uma vez que não
está monetarizado, parece que isso não existe. Outro ponto curioso é que todos
os seres nascem dentro dessa biosfera, que funciona de forma não financeira, de
uma forma generosa. Mas então as pessoas se apropriam de pedaços e dizem: “Tudo
o que cair de bênçãos neste pedaço é meu”. Se vocês fizerem a conta, o número
de pessoas proprietárias de espaços é muito menor que o número de pessoas que
dependem daquilo. Quando as pessoas delimitam o que é seu – rio, vento, sol,
fertilidade do solo, etc. –, elas na verdade estão excluindo os outros. Os
outros estão perdendo a natural riqueza a que tinham direito quando nasceram.
Um tempo atrás falava-se que cada brasileiro já nasce devendo:
basta dividir a dívida total do país pelo número de habitantes. Mas devíamos
pensar que cada habitante nasce como um dos herdeiros, um dos seres vivos que
têm direito a esta vastidão de generosidade que é a terra, o sol, o vento, a
água, etc. A economia financeira vai privatizando a economia não financeira. No
fundo dessa escala, encontramos os moradores de rua, que não têm nem espaço
para deitar direito à noite, não conseguem colher uma plantinha, não têm
direito a coisa alguma. A economia financeira cria uma massa de excluídos,
porque, quando as pessoas se apropriam, elas excluem.
Estamos num tempo em que a economia financeira se torna cada vez
mais aguda. Ela constrói muros, exércitos e defesas contra aqueles que não
puderam pegar um pedaço e construir seus próprios muros. Não acho que haja
grande diferença entre os que construíram muros e os que ficaram de fora. Quem
está do lado de fora, se for para dentro, aumentará ainda mais o muro,
defenderá também aquilo.
Estamos dominados por um tipo de doença, mas ela não é muito grave.
A doença grave é a ignorância. Isto faz parte do processo de ignorância, de
estreiteza da mente. Nas classes de ensinamento, isto se encaixa na Primeira
Nobre Verdade, a verdade do sofrimento. Não há nada que você faça que não cause
algum tipo de desequilíbrio.
A gente sempre opera com alguma economia financeira, mas minha
sugestão é que, quanto mais próximos estivermos da economia não financeira,
melhor. Isto é, que estejamos mais próximos de receber diretamente as bênçãos
na forma de alimento, na forma de água, de energia, de espaço… Isso é melhor.
Se dependemos do fluxo financeiro para todo alimento, toda água, toda energia,
todo deslocamento, toda moradia, estamos numa situação muito frágil. Dependemos
de um fluxo financeiro seguro. Mas cada uma dessas áreas é impermanente. O
processo da rede econômica é muito frágil. Estamos vendo agora com o
coronavírus, que está gerando um problema econômico da ordem de dezenas de
bilhões, por enquanto. Eventualmente, a pessoa acredita que conseguirá fazer
tais e tais coisas, e aquilo evapora na frente dela.
Já os Guaranis estão
sobrevivendo há 500 anos. Eles seguem olhando a economia não financeira, olham
as bênçãos de Tupã, ou seja, a natureza inteira. Consideram que nós estamos
sendo atacados por um tipo de vírus. Eles imaginam que, se ficarem quietos, o
vírus vem e vai. E Tupã continua, o sol continua, a chuva, tudo continua.
Tenho acompanhado as notícias sobre Minas; crateras surgindo por
aqui e por ali. Sob o ponto de vista das pessoas que estão imersas neste mundo,
com o olhar limitado, o prefeito é o culpado. Mas, sob o ponto de vista de
Tupã, os rios se reconstroem, sobem e descem, é simples. Você consegue cortar
as árvores, mas você não consegue cortar o fluxo das águas. Você consegue
destruir as florestas, mas não consegue destruir os rios: a água vem e a água
vai. Quando não entendemos de forma mais complexa, aquilo começa a ficar
difícil. Esta é a Primeira Nobre Verdade, que explica como os vários
empreendimentos naturalmente têm dificuldades, problemas.
Nós vamos ter problemas econômicos. Se estivermos num mundo
econômico formal, temos problemas. Num mundo econômico não financeiro, também
temos problemas. Em todos os lugares, o melhor conselho é estabelecer relações
positivas em todas as direções. Relações positivas geram méritos.
Por exemplo, as crianças, de modo geral, nascem com uma reservinha
de méritos. Ou seja, quando elas nascem, alguém as olha e acolhe. Maravilhoso!
Mas nem todas. Isso é de dar dó. Como algumas crianças nascem e não têm alguém
que as olhe e cuide delas? Isso é comovente. Mas há muitas crianças que recebem
muitos olhares amorosos e cuidados. Isso é mérito. Durante a vida, podemos
ampliar esses méritos. Se olharmos para os outros seres amorosamente, nos
interessarmos pelos outros seres, fizermos boas coisas para eles, eles andam.
Esse é o ensinamento econômico do Buda. O Buda fez isso o tempo todo. Nunca
faltou nada nem pra ele, nem pra sanga, que era uma sanga e tanto! Andaram bem
por todo lugar.
Fala do Lama Samten durante o
Retiro de Verão 2020, no CEBB Caminho do Meio (Viamão-RS). Para conferir o
vídeo do ensinamento completo, clique aqui.
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