'VALE-FOLIA'. POR QUE O BRASILEIRO EXTRAVASA NO CARNAVAL?

 O que acontece com as pessoas durante o Carnaval?

O que acontece com as pessoas durante o Carnaval?

'Vale-folia'. Por que o brasileiro extravasa no Carnaval?

Fantasias e rituais carnavalescos são saudáveis para a sociedade, segundo especialista

Por Renata Abritta

Publicado em 04 de março de 2025 | 06:00

Época de liberdade, diversão e ousadia. Tempo de “se jogar” nas fantasias, deixar de lado o decoro, pois, em poucos dias, a rotina crua estará de volta. No fim da década de 60, Chico Buarque definiu nas frases da canção “Noite dos Mascarados” as possibilidades de assumir novas identidades e a efemeridade da folia: “Mas é Carnaval! Não me diga mais quem é você! Amanhã tudo volta ao normal”.

O período de folia precede a Quaresma e, por isso, alguns consideram que seria permitido “pecar”, já que tem longos 40 dias à frente para se redimir. São inúmeras crendices e definições sobre a festa momesca, mas o que se vê na prática é uma grande mudança de comportamento com relação ao resto do ano. Afinal, o que acontece com as pessoas durante o Carnaval?


Lucas Batista, 24 anos, é um jovem tímido que trabalha em um escritório como analista financeiro. Ele, que não é fã de multidão, se viu absorvido por um bloco de rua de Belo Horizonte, em 2023, fantasiado de “As Branquelas” com os amigos, vestindo uma saia super curta, que mostrava um pouco demais e que ele jamais usaria em outra ocasião. Apesar de um pouco desconfortável, Lucas virou um folião. 

“Eu tomei um gosto pela festa junto com a minha namorada. E desde então, todos os anos eu busco usar pelo menos um adereço. Ou alguma coisa nesse sentido para pelo menos dar um pouco mais de alegria e diversão, né? Porque o Carnaval é pra isso. Se for pra se vestir igual no dia a dia, a gente nem sai de casa”, afirma o analista financeiro.




Boca no trombone

E não sai mesmo. Que o diga o economista Luiz Felipe Innecco Garcia, de 52 anos. Além de não vestir o mesmo estilo de roupa social com que passa a maior parte do ano, ele - que é diretor de uma empresa de tecnologia e membro de conselhos de administração - troca o computador por um trombone no Carnaval. Ele abandona de vez o clássico ambiente corporativo e toca seu instrumento musical em mais de dez blocos de rua, ficando quase irreconhecível para seus clientes.



“O Carnaval funciona pra mim como um período de “altas” da vida normal. Tenho um sentimento que no capitalismo a gente é meio domado, com a vida dedicada à trabalhar e produzir. No Carnaval não. No carnaval (principalmente de rua) não tem hierarquia, não tem condição social, não tem grau de instrução ou quantas línguas cada um fala… é o momento de dar vazão ao nosso lado menos “cabeça. É permitido andar na rua fantasiado, ou de sunga, às 8h da manhã. Pode beber na rua bebidas que você não beberia normalmente. É um momento especial para o brasileiro, uma vez que a nossa marca é a desigualdade. O Carnaval é o momento daquele cara que trabalha o ano inteiro anônimo, invisível, poder ter visibilidade, cantando, tocando, sambando na avenida principal da cidade”, destaca.

Sem urgência

E se Caetano Veloso inventou, em 1968, que “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, a corretora de imóveis Tereza Cristina Rodrigues Brant, de 39 anos, levou a música a sério demais. Prova disso é que, há 12 anos, ela caiu na folia durante cinco dias com o pé literalmente quebrado. “Eu tinha 17 anos, tinha acabado de entrar na faculdade, era o primeiro Carnaval em turma, naquela ansiedade. Nós chegamos em Tiradentes na sexta-feira e, no sábado, eu fui cumprimentar um casal de amigos, virei o pé e caí igual a uma jaca. Ficou inchado, doeu, mas aí eu sentava toda hora, o pessoal pegava gelo pra mim”, lembra.


Só no domingo, por insistência de um amigo, ela recorreu a um Hospital em São João del Rei para ver o tamanho do problema. O médico decidiu engessar, mas a foliã se recusou. “Eu falei que eu ia pra Belo Horizonte e que engessaria lá com um médico da minha confiança. Enfim, não fui. Fiquei pulando Carnaval todos os dias, tomando bebida de dose, tipo vodka e pinga, pra aguentar a dor”, relata.

Ao retornar a BH ela ficou três meses com o pé engessado para conseguir reverter o prejuízo. “Eu fui penalizada por isso, mas foi uma loucura de Carnaval, uma insanidade de juventude de não querer parar aquele momento que estava tão feliz, tão especial. Podia ter dado alguma coisa mais grave, mas graças a Deus foi isso. Fiquei mais tempo com gesso, fiquei tomando remédio, virou história pra contar. Mas realmente, hoje, eu nunca faria isso porque a gente aprende que a gente tem que priorizar a saúde da gente”, destaca Tereza.

A despersonalização na folia

Segundo o doutor em psicologia social e professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG, Cláudio Paixão Anastácio de Paula, toda manifestação coletiva envolve um fenômeno de despersonalização, que explica o extravasamento e a despreocupação com regras que ocorrem durante o Carnaval.


“Na psicologia, a gente chama de desindividuação. O que acontece? Ao longo da vida inteira você aprende a ser uma pessoa na sociedade. Você adequa a sua vida, seus comportamentos, seus desejos, suas fantasias, suas ações a uma regra coletiva. Então, nessas atividades em grupo, no anonimato da multidão, essa dimensão de mais controle da personalidade é atenuada, você começa a funcionar coletivamente de forma a garantir uma adaptação a esse grupo, ao que esse grupo tá fazendo. É como se fosse uma contaminação, uma sintonia”, detalha.

O especialista lembra que desde tempos remotos, situações como a folia são uma oportunidade de viver em igualdade, pelo menos enquanto estiver na multidão. “Desde a Antiguidade, nas cerimônias assemelhadas ao Carnaval, escravos e patrões estavam no mesmo nível, às vezes, dançando juntos no mesmo ambiente. Pessoas ricas e pobres, homens e mulheres, pessoas de várias orientações sexuais… Isso gera uma possibilidade de a gente colocar pra fora coisas que a sociedade reprimiu. Porque ninguém vê. Ninguém enxerga aquilo que eu estou extravasando, pois eu estou dançando no grupo. Então isso me protege de alguma forma”, explica Paixão.

O professor da UFMG explica que ao se fantasiar e usar máscaras a pessoa pode estar exacerbando uma característica camuflada na personalidade, apagada pelas regras da moralidade. “Essa máscara fala algo da minha característica que pode ser o fato de eu querer ser um pouco mais alegre, um pouco mais colorido, um pouco mais sensual, um pouco mais livre pra experimentar coisas. Muitas vezes quando o homem se veste de mulher, através dessa fantasia, ele coloca pra fora uma sensibilidade, uma fragilidade, uma suavidade - ainda que de forma jocosa e caricata - que a sociedade não permite que ele coloque normalmente. Ele pode brincar com algo que ele não é. E não quer dizer que ele seja homossexual”,  analisa Paixão.



Ao se fantasiar e usar máscaras a pessoa pode estar exacerbando uma característica camuflada na personalidade, apagada pelas regras da moralidade. Foto: Igor Stepovik/Divulgação

Sociedade saudável

De acordo com o profissional, esse momento de insurgência, rebeldia e extravasamento demonstra uma sociedade livre, saudável e rica culturalmente. “Uma sociedade que tem o Carnaval permite que sejam quebradas, ainda que eventualmente, as barreiras que separam aquilo que você chamou de loucura, daquilo que eu chamo de correntes, das grades, das cadeias que a sociedade capitalista, a sociedade conservadora, a sociedade moralista, a sociedade cheia de padrões de consumo criam. A gente pode liberar essa energia a qualquer momento, de qualquer forma, mas o fato de ter um ritual coletivo, essa experiência é muito mais intensa e organizada. Os rituais criam contenção pra gente viver uma experiência. É o espaço seguro. O carnaval é um espaço seguro pra viver a ‘loucura’, o espaço onde eu não vou ser criticado, onde eu não vou ser atacado”, pontua o psicólogo social.


Fonte:https://www.otempo.com.br/interessa/2025/3/4/vale-folia-por-que-o-brasileiro-extravasa-no-carnaval

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