Em 2010, Viktor Orbán, o premier húngaro a quem Trump disse admirar, anunciou, como um de seus primeiros atos, a retirada de todas as proteções aos servidores, permitindo que fossem demitidos sem motivação clara. A medida foi derrubada, mas o governo aprovou uma nova regra, em 2011, que abria caminho para a demissão de qualquer funcionário que fosse membro de um dos partidos de oposição.
— Qual o papel do funcionalismo público em um sistema político? É dar um ar de estabilidade — opinou ao GLOBO Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais. — Esses líderes personalistas, populistas, têm muita dificuldade de lidar com representantes do Estado, e não de um determinado governo, porque muitas vezes são eles que vão impedir que muitas coisas sejam feitas.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/r/A/YUAdrESBOdOovC4JtJ4Q/mun-16-02-roteiro-conhecido.png)
Na Polônia, o partido Lei e Justiça (PiS) apostou, no começo do século, no aumento de cargos para aliados, o que, segundo órgãos de fiscalização, abriu caminho para o aumento da corrupção. Em 2015, sob o governo de Jaroslaw Kaczynski, as regras para contratações foram modificadas, contribuindo para o que a ONG Freedom House chamou de “o mais brusco declínio democrático da Europa”.
Nos três primeiros dias de governo, em 2019, Jair Bolsonaro exonerou 3,4 mil servidores, e passou a indicar militares e aliados políticos — mesmo sem credenciais — para funções-chave. Agendas como o combate à mudança climática e a defesa dos direitos humanos foram afetadas, e os órgãos adotaram políticas criticadas dentro e fora do país.
— Com Trump, essa questão está diretamente ligada à tentativa de enfraquecer os sistemas de controle em vigor nos EUA. É uma tendência de governos que hoje são claramente autoritários, mas também de lideranças que têm aspirações ou com perfis autoritários — disse Thiago Oliveira, pesquisador do Observatório Político dos EUA (Opeu).
Além de tentar eliminar barreiras burocráticas, Trump se alinhou ainda mais com a elite econômica, da qual já fazia parte antes de entrar para a política. Ainda na campanha, costurou alianças com grandes conglomerados, especialmente as big techs. Elon Musk, dono do X e da Tesla, se tornou seu braço direito, e Mark Zuckerberg, do Facebook, fez acenos antes da posse.
— Não é a primeira vez que nós temos esses barões, líderes importantes da economia, com uma relação muito estreita com o governo — aponta Poggio. — Mas acho que o grau que isso está acontecendo agora, com a participação de Musk no governo, é inédito.
Manter o PIB ao seu lado é um receituário de líderes como Vladimir Putin, que construiu seu domínio do Estado russo mesclando populismo e gestos aos oligarcas. A mensagem é simples: façam o que eu peço, fiquem fora do caminho e não terão problemas. Além dos bilionários que lucraram com a queda da União Soviética, Putin criou uma nova elite, ainda mais leal.
Na Turquia, Recep Tayyip Erdogan mesclou políticas sociais e benefícios a empresários de setores como o da construção civil, responsável por cerca de 5% do PIB. Oposicionistas apontam para um grupo chamado de “A Gangue dos Cinco”, que venceu a maior parte dos contratos de infraestrutura, ajudando a manter a estabilidade do governo.
Perseguição
Antes de assumir o posto pela segunda vez, Trump prometeu se vingar de seus algozes. Pessoas ligadas às investigações sobre ele receberam ultimatos para deixar o cargo ou foram demitidas. Credenciais de segurança foram retiradas, e a indicação de Kash Patel para o FBI, a polícia federal americana, traz riscos à imprensa: em 2023, ele comparou jornalistas a conspiradores, e prometeu “ir atrás de todos”.
— Os processos corroboram para seus apoiadores a narrativa de que ele é uma liderança perseguida — opinou Oliveira. — Então, sua base também vai esperar que seu líder, que foi, para ela, injustamente perseguido ao longo dos últimos anos, exerça essa vingança.
Exemplos de repressão e silenciamento, são numerosos. Na Índia, o premier Narendra Modi foi acusado pela Human Rights Watch de usar leis de segurança contra algozes— em 2023, o editor de um site crítico foi preso, e 46 jornalistas tiveram as casas revistadas.
No ano passado, o Comitê de Proteção de Jornalistas afirmou que o presidente Nayib Bukele, de El Salvador, usou o governo para entrar com ações na Justiça contra profissionais e veículos, o que levou alguns à autocensura.
Crise democrática
Para Poggio, a liberdade de expressão como pilar constitucional nos EUA, além do papel dos tribunais, pode atrapalhar uma perseguição ao estilo de Bukele Modi, ou uma repressão total, como a praticada por Nicolás Maduro na Venezuela, que desde a última eleição prendeu centenas de pessoas.
— Essa associação entre o poder econômico e o poder político forma um aglomerado muito poderoso, capaz de eventualmente levar a certos setores a se autocensurarem, mas não necessariamente ele tem esse poder hoje — opina. — A não ser que haja um processo ainda muito mais grave do que o que já observamos de deterioração da qualidade das instituições americanas.
Trump não apenas reproduz políticas, mas também inspira líderes alinhados. O discurso anti-imigração, fortalecido em seu primeiro mandato, embasou a extrema direita, que também apoia sua visão protecionista. A saída de órgãos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Conselho de Direitos Humanos da ONU foi seguida, respectivamente, por Argentina e Israel, que veem o republicano como aliado.
Mas apesar de posturas como as do argentino Javier Milei, que tentou torpedear o comunicado final da reunião do G20 no Brasil, no ano passado, e que ameaça deixar o Acordo de Paris, tal qual Trump, não há muitas vozes anti-multilateralismo. Ao menos agora.
— A questão é se Trump tem ou não o desejo de criar uma nova ordem mundial — aponta Oliveira.
Fonte:https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2025/02/16/roteiro-do-governo-trump-20-segue-cartilha-de-autocratas-mas-tambem-inspira-aliados-no-exterior.ghtml
Comentários
Postar um comentário