FÉ X CIÊNCIA: MÉDICOS RELATAM COMO A RELIGIOSIDADE MELHORA O TRATAMENTO DO PACIENTE E O PRÓPIO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO
As duas maneiras de pensar o mundo começaram a se reaproximar mais recentemente. Em um dos acontecimentos mais emblemáticos no catolicismo, o Papa Francisco, logo no segundo ano do pontificado, derrubou barreiras ao reconhecer hipóteses defendidas pela ciência, como a da própria evolução.
“O Big Bang, que hoje é considerado a origem do mundo, não contradiz a intervenção criativa de Deus, pelo contrário, a requer. A evolução na natureza não se opõe à noção de Criação, porque a evolução pressupõe a criação dos seres que evoluem”, afirmou Francisco durante uma sessão plenária da Pontifícia Academia das Ciências.
Por parte dos crentes da ciência, a reconciliação ganhou força pela medicina, com chegada dos aparelhos de ressonância magnética funcionais, que mostraram por meio de exames cerebrais, a influência da fé no bem-estar e no tratamento de doenças.
Para o dia de Natal de 2024, trazemos depoimentos de três médicos de hospitais de ponta de São Paulo sobre o papel da fé no exercício de suas profissões, seja no amparo ao paciente, seja na eficácia das terapias aplicadas. Os relatos tocantes da endocrinologista Claudia Cozer, do neurocirurgião Francisco Sampaio Júnior, do Hospital Sírio-Libanês e do cirurgião Sidney Klajner, do Hospital Albert Einstein, comprovam que os dois mundos podem andar juntos e muito bem.
‘Sem fé, eu não seria um bom médico’
Sidney Klajner, cirurgião do aparelho digestivo
Vim de uma família judaica, mas a influência do judaísmo na minha vida vai além da religiosidade. Tem a ver com formação. Não sou de rezar todos os dias de manhã, à tarde e à noite como fazem os religiosos. Sem deixar de estar no judaísmo, mantenho uma conversa íntima com Deus, muitas vezes do meu jeito, agradecendo antes de dormir e pedindo pelos outros. E isso teve um papel fundamental para encontrar forças onde não existia na minha profissão, desde o início.
A faculdade de Medicina é um lugar que endurece a casca. Você lida com situações de sofrimento humano e isso impacta fortemente. Imagine a minha situação, entrei para o curso aos 17 anos e até então tinha estudado apenas em uma única escola durante toda vida. Foi fundamental me apoiar na fé e acreditar que as coisas iam dar certo. Cheguei a pensar em deixar de seguir a cirurgia, mas segui em frente. Minha avó sempre falava que o fardo nunca é mais pesado do que aquele que você pode carregar. Isso é a fé.
No dia a dia da minha profissão, ela é fundamental em vários aspectos, como quando lido com a morte de um paciente. Não apenas no momento em si, mas também em ocasiões de decisão. Tomar uma decisão nem sempre é seguir só o que está escrito nos livros, mas seguir uma intuição. E intuição para mim é uma tradução de uma mensagem que se recebe de algo maior. Algumas vezes, se eu insistir em usar tudo o que dita a ciência, vou prolongar uma situação que não é mais boa para o paciente, para a família. Hoje muitas vezes a medicina presta um desserviço no momento em que ela prolonga uma vida de extremo sofrimento. A fé que eu tenho em relação à cura de um paciente é tão grande quanto à nossa impotência muitas vezes de trazer a cura.
A fé também impacta fortemente o próprio doente. Isso está comprovado por inúmeros estudos com ressonância magnética funcional. Mas talvez nunca vamos conseguir explicar exatamente como isso acontece em nível celular.
Estou agora com um paciente jovem com câncer no intestino grosso, com metástase. Fiquei mais de meia hora com ele no quarto do hospital conversando sobre o diagnóstico. Se eu fosse só passar as informações científicas do caso, não levaria mais de 3 minutos. É o entendimento de que há algo maior a oferecer do que o tratamento. O prognóstico não é bom, mas ele tem uma chance. E eu tenho que passar essa chance para ele aliada aos melhores recursos da medicina. Mas não dá para acreditar só na ciência. Já vi casos em que ela foi jogada no lixo perto do que aconteceu. Curas de onde não se sabe de onde vêm. Eu seria um médico pior sem a fé.
'A fé ocupa as lacunas e limitações da prática médica'
Claudia Cozer, endocrinologista
Certas coisas na vida chegam até nós através da transmissão — conhecimentos que aprendemos, hábitos que adquirimos, interesses que conhecemos e, no meu caso, também a fé que mantenho comigo. Em 1991, mudei-me para São Paulo para fazer residência médica. Não apenas era a primeira vez que morava em outra cidade, que me via sozinha. As novas circunstâncias me colocaram diante de uma sensação de vazio difícil de apaziguar. Foi nesse momento, numa grande metrópole, que descobri um dos grandes sentidos da fé para mim — acolhimento.
Antes de prosseguir, considero de suma importância frisar que o foco deste texto não é a religião, mas a religiosidade. Independente da religião de cada um, os espaços de prática da fé são ambientes conhecidamente de acolhimento, não de julgamento, de conectar-se com os outros e estar em comunidade. Seja na igreja, no terreiro, no centro espírita, na mesquita ou em qualquer outro templo. Em minha trajetória, esse espaço foi a Igreja. A familiaridade das preces, dos rituais, a sensação de acolhimento, os ensinamentos que ouvi desde a infância me traziam segurança e força para seguir com minhas ambições e sonhos.
Mas afinal, o que isso sobre o qual discorri tem a ver com medicina? Foi no contato com a religiosidade que pude aprender a importância do acolhimento em momentos de desamparo. A importância de ouvir o outro e acolhê-lo sem julgamentos, independente do passado que teve e dos erros que cometeu.
Vale ressaltar que muitos diagnósticos trazem consigo estigmas, são diagnósticos que podem muitas vezes suscitar vergonhas e inseguranças do paciente. Não cabe a mim como profissional julgar a forma como a pessoa viveu a vida, como se cuidou ou deixou de se cuidar, meu comprometimento é sempre com a saúde e qualidade de vida. Essa preocupação com o ser humano, em sua totalidade, foi algo que me foi transmitido pela minha fé.
Outro importante papel da fé na prática médica diz respeito às lacunas e limitações da própria prática. Receber um diagnóstico nem sempre é fácil, por vezes não apenas suscita uma série de questionamentos como “Por que isso está acontecendo comigo?” Ou “O que será minha vida daqui pra frente?”, como também exige uma série de mudanças e apostas (em tratamentos, procedimentos cirúrgicos, internações, etc).
A medicina é uma prática incrível, mas tem seus limites, nem sempre ela é capaz de fornecer sentido para o aparecimento de um quadro, ou dar explicações e garantias absolutas. Na minha prática diária, lido com medos, insatisfações, inseguranças, ansiedades e tristezas. Vivencio perdas, angústias e muita luta pela sobrevivência. Nessas horas, a religiosidade entra como uma ferramenta extremamente significativa. Isso porque a fé é capaz de nos dar forças para não ceder aos momentos de dor e fraqueza, a persistir frente às adversidades ou ao fracasso de uma terapêutica, assim como também lidar com as perdas quando nada mais pode ser feito.
'Há resultados que não são inerentes apenas da nossa competência'
Francisco Sampaio Júnior, neurocirurgião
Desde muito pequeno fui tocado a acreditar que a fé move montanhas e que a certeza de que havia algo superior guiando e iluminando nossos passos aqui na terra era inexorável. Ao sair de casa, numa pequena cidade do Piauí, aos 13 anos de idade, para estudar na capital, minha mãe prontamente me apresentou o que dali para frente seria o meu guia e proteção. Era um quadro com o Salmo 23 e um rosário que passei a usar por toda minha vida desde então.
Na faculdade de Medicina ganhei o apelido carinhoso de ‘Chico rezador’, devido as orações frequentes realizadas nos momentos que antecediam as provas e dificuldades. Surtiram efeito, posso garantir.
Não poderia ser diferente na medicina, pois com o passar dos anos e cada vez mais, fui percebendo que existem resultados que não são inerentes apenas da nossa competência. E é esse o motivo pelo qual antes de cada cirurgia faço uma oração e peço a Deus para que me ilumine e me ajude naquele ato, mentalizo cada possível complicação e peço proteção para que não aconteça. Isso me enche de luz, segurança, me dá a certeza que não estou sozinho e que amparado por uma força superior, conseguiremos juntos, eu minha equipe e meu paciente, atingir o objetivo desejado. Vejam como é a força da fé.
O poder da oração e da fé já foi motivo de estudos científicos que comprovaram o aumento do fluxo sanguíneo no lobo frontal do cérebro, resultando na maior capacidade de raciocínio, tomada de decisão, além de produzir endorfinas que são substâncias endógenas que promovem sensação de bem-estar e controlam a dor.
Por diversas vezes, em situações difíceis durante as cirurgias, quando me encontro sem saída para a resolução da situação, paro, faço uma oração, peço a Deus proteção a mim e ao meu paciente e para que me ajude a concluir o nosso objetivo: proteger a saúde e a vida daquele que está sob meus cuidados. Quando retorno ao ato cirúrgico, as coisas fluem com uma facilidade inacreditável. Como não acreditar?
Ao desejar, mentalizar e emitir vibrações em prol da melhora do paciente, somos envolvidos numa esfera de energia que transcende a materialidade deste mundo e nos permite alcançar um estágio superior a este que vivemos, mesmo que seja por momentos.
Em outras situações, recebo sinais previamente, às vezes em sonho, sobre as possíveis dificuldades e complicações que por ventura encontrarei durante a cirurgia que ainda será realizada e como poderia resolvê-las, já programando na minha cabeça antecipadamente as possíveis soluções. Em outros casos tenho a sensação que somente minhas orações não serão suficientes, então apelo para minha esposa, filhos, pai, mãe, irmãs, e amigos que considero pessoas iluminadas e de muita fé, a fim de que uma corrente de orações seja formada e assim sinto a energia que facilita todo esse processo que envolve minhas cirurgias e procedimentos.
Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/12/25/fe-x-ciencia-medicos-relatam-como-a-religiosidade-melhora-o-tratamento-do-paciente-e-o-proprio-exercicio-da-profissao.ghtml?
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