'TEMOS QUE CONVIDAR AS PESSOAS A PENSAR CRITICAMENTE SEUS SINTOMAS E CUIDAREM DA PRÓPIA ALMA' DIZ PSICANALISTA CRISTIAN DUNKER EM ENTREVISTA
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Christian Dunker: 'Temos que convidar as pessoas a pensar criticamente seus sintomas e cuidarem da própria alma'
No ano passado, o Ministério da Educação aprovou a criação do primeiro bacharelado em psicanálise do país, a ser oferecido em modalidade remota pela Uninter, universidade privada com sede em Curitiba. Seus proponentes afirmam que o bacharelado será mais acessível do que os cursos de formação oferecidos pelas sociedades psicanalíticas e resultará na democratização de um saber e de uma prática tidos como extremamente elitizados. No entanto, boa parte da comunidade psicanalítica, inclusive profissionais que defendem que os divãs acolham a população de baixa renda, rejeita a proposta. Para Christian Dunker , professor do Instituto de Psicologia da USP, o argumento de que um curso universitário privado democratizaria a psicanálise é “hipócrita” e confunde cidadania com consumo.
Dunker defende que a psicanálise é, sim, democrática. Em seu novo livro, “Lacan e a democracia”, publicado pela Boitempo, ele propõe um diálogo entre a psicanálise e a teoria social . Dono do canal “Falando Nisso” no YouTube, que acumula mais de 324 mil inscritos, ele afirma que as teses psicanalíticas podem alargar nosso conceito de democracia, fazer a crítica do neoliberalismo e ajudar no combate ao negacionismo .
Em entrevista ao GLOBO, Dunker falou sobre a popularização da psicanálise nas redes sociais , explicou o posicionamento político de Freud e comentou o envelhecimento da “lógica de condomínio” , analisada por ele no livro “Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros”, lançado em 2015, também pela Boitempo.
A psicanálise tem fama de elitista. Ela é democrática?
A psicanálise nos ajuda a pensar a democracia como um conceito a ser aprimorado. A democracia é um processo que envolve tratamento de conflitos por meio da palavra. A psicanálise sempre debateu com a tradição teórico-crítica do Ocidente. Não podemos nos esquecer, por exemplo, do freudomarxismo e de pensadores como Slavoj Žižek (filósofo esloveno) e Alain Badiou (francês) , que recorrem às ideias de Lacan para avançar seu pensamento político. Além disso, o laço social dos psicanalistas não é regulado pelo Estado, mas difusamente, pela própria comunidade. O ingresso nas associações psicanalíticas se dá pelo estudo livre e esclarecido. É um laço mais democrático, mais horizontal. É uma democracia mais direta, que confia na palavra oral.
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Há quem afirme que um curso de graduação em psicanálise contribuiria para a democratização de um saber e uma prática circunscritos às elites. Qual a sua posição?
Esse argumento é equivocado, porque identifica democracia e ensino de massas. Na prática, o curso seria equivalente a uma autorização para a prática da psicanálise. Democracia é inscrição institucional no Estado? É hipócrita dizer que um curso de graduação aumentaria o acesso à psicanálise. Aumentaria para os que podem pagar. E nós sabemos como funciona boa parte das faculdades particulares que enriqueceram no Brasil em anos recentes. Então, se a psicanálise deixar de ser uma prática artesanal e entrar para o mercado, para a linha de produção em série, ela será mais democrática? Esse conceito de democracia não se baseia em cidadania, mas em consumo.
No livro, você coloca a psicanálise para dialogar com a tradição teórica de esquerda. A psicanálise pode ser direita?
Pode. Em vários países, a maioria dos psicanalistas são conservadores. Mas é importante diferenciar conservadores de fascistas, ainda que no Brasil vejamos um acasalamento dos dois grupos. Há ainda uma certa visão equivocada, que rejeita que psicanalistas participem do debate público e diz que isso seria uma perversão, atrapalharia os tratamentos e doutrinaria os pacientes. O próprio Freud tinha uma relação distante com a política e também com o judaísmo. Era liberal e ateu. Mas também tolerava a esquerda psicanalítica, escreveu “O mal-estar na civilização” e voltou a se declarar judeu quando o nazismo começou a avançar. Determinadas configurações sociais convocaram sua politização.
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A prestigiosa revista científica Lancet convocou os psicanalistas para ajudar na batalha contra os negacionistas. A psicanálise tematizou a “denegação”. Como ela pode ajudar no combate ao negacionismo?
Primeiro, diagnosticando os diferentes tipos de negacionismo. Há o negacionismo delirante. Há o negacionismo profissional, cínico, que instrumentaliza politicamente ódio. E há o negacionismo que é crítica malfeita. Temos que olhar a formação do negacionista e nos perguntar por que ele apareceu como ator político justamente agora. A inclusão de mais gente no debate público fez muitos negacionistas perceberem que estavam fora da conversa. Como o Tio do Pavê, que ninguém escutava, que ficava lá no canto do churrasco. Agora, ele quer que sua posição seja reconhecida. Quer debater a Terra plana com os cientistas. O pedido dele não é mal-intencionado, mas lhe falta formação. A Universidade virou as costas para a sociedade, não mediou processos de inclusão, não divulgou a ciência. O resultado é que tem gente gritando por reconhecimento e atrapalhando a conversa.
No livro, você diz que a “negação como crítica malfeita” é “revolta e indeterminada” e precisa ser “escutada e reconhecida”. Como fazer isso sem legitimar discursos negacionistas?
Tem que fazer o meio de campo. Quer participar do debate? Que tal começar no sub-17 para depois ir para a primeira divisão? Se a pessoa quer discutir vacinas, em vez de dizer “quem é você na fila do pão?”, que tal oferecer a ela um curso de biologia? O único lugar que essas pessoas encontram para discutir são os grupos de WhatsApp. Faltam clubes de ciência, discussões nas escolas que envolvam também os pais. Nas cidades médias e pequenas no Brasil, não há livrarias . Só tem bar. É isto que nós estamos enfrentando: conversa de bar! No Brasil, a distribuição do capital simbólico, cognitivo, é tão desigual quanto a do capital econômico.
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Nos últimos anos, psicanalistas têm participado cada vez mais do debate público e acumulam milhares de seguidores nas redes sociais. A que você atribui a popularização da psicanálise?
Isso tem a ver com algumas peculiaridades do Brasil, onde há muitos analistas e a formação é acessível. Vai fazer um curso de psicanálise na Alemanha, na Suíça ou nos Estados Unidos para ver quanto custa! Ao longo das décadas, formamos uma quantidade expressiva de clínicos com bagagem ética e habilidade para escutar. O estudo prolongado, a vida institucional nas escolas de psicanálise e o contato com o sofrimento resultam em formação política. Se você vai a cidades como Pelotas e Goiânia, ou na Praça Roosevelt, em São Paulo, encontra psicanalistas escutando pacientes na rua e de graça. E não são só os psicanalistas jovens que fazem isso, não.
Que cuidados os psicanalistas devem ter ao participar do debate público e das redes sociais?
Há uma posição de que os psicanalistas seriam capazes de fazer um raio-X da alma humana. Isso é coisa de charlatão. Nós somos treinados para analisar discursos. O psicanalista que participa do debate público deve pensar: “o que estou fazendo com a minha fala?” O objetivo não deve ser se enaltecer ou criar superávit narcísico para o próprio consultório. Nosso discurso deve ser centrífugo, não centrípeto. Deve baixar e não levantar muros. Também não adianta dizer que se a pessoa aceitar Lacan no coração tudo vai melhorar. Temos que convidar as pessoas a pensar criticamente seus sintomas e cuidarem da própria alma.
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Em “Mal-estar, sofrimento e sintoma”, você analisou a lógica de condomínio que rege a vida social brasileira. A pandemia obrigou as pessoas a voltar para seus condomínios. No entanto, em “Lacan e a democracia”, você afirma que a lógica de condomínio envelheceu.
O condomínio virou sonho de consumo nos anos 1970. Nas manifestações de 2013, vimos que os jovens já não queriam se afundar num casamento com uma dívida de 30 anos. Queriam viajar, andar de bicicleta nas ruas, ver todo o tipo de casal andando de mãos dadas na rua. Mostraram que a lógica de condomínio havia envelhecido. O bolsonarismo retomou, de forma caricata e anacrônica, os condomínios. Como proteger as famílias dos comunistas e das mamadeiras de piroca? Com armas e muros. A direita brasileira embarcou nisso. Agora, é só política, mas o julgamento virá. Como dizia Freud : tudo se esclarecerá no decorrer nos acontecimentos. Posso estar errado, mas tenho minhas apostas.
Quais são as suas apostas?
Vamos precisar de um Tribunal de Nuremberg (julgamento que condenou os crimes nazistas) . Vamos ter que identificar nossos colaboracionistas. Colocar pessoas na cadeia e fazê-las abrir a carteira é só o começo da conversa. O Brasil adora punição. Esquerda e direita têm pacto com a cultura da culpa. Precisamos de um julgamento transformativo, que traga reparação. Quem pisou na bola vai ter que ajudar a reconstruir tudo, tijolo por tijolo. Vai ser duro.
Serviço:
“Lacan e a democracia: clínica e crítica em tempos sombrios”
Autor: Christian Dunker. Editora: Boitempo. Páginas: 310. Preço: R$ 85.
Fonte:https://oglobo.globo.com/cultura/livros/christian-dunker-temos-que-convidar-as-pessoas-pensar-criticamente-seus-sintomas-cuidarem-da-propria-alma-25400722
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