QUEM É BRUNA KALIL OTHERO, ESCRITORA QUE DIZ QUE O BRASIL É PORNOCHANCHADA E ANITTA É INTELECTUAL

 Bruna Kalil Othero a caráter: “A primeira coisa que governos autoritários fazem é atacar a liberdade sexual, a pulsão de vida do povo”


Quem é Bruna Kalil Othero, escritora que diz que o Brasil é pornochanchada e Anitta é intelectual

Em 'O presidente pornô', autora mineira erotiza a história da República para pensar identidade nacional

Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

19/07/2023 04h30  Atualizado 19/07/2023

A escritora Bruna Kalil Othero, de 27 anos, já apareceu nua num jornal de Belo Horizonte imitando “Abaporu”, de Tarsila do Amaral. Foi chamada de “neta de Hilda Hilst” pela professora Eurídice Figueiredo, da UFF, por sua escrita libertina. E é pesquisadora da Universidade de Indiana, nos EUA, onde investiga como figuras como um poeta negro do XVIII, a escritora Pagu (1910-1962) e a cantora Anitta pensam a identidade nacional.


Agora, Bruna dá à luz um projeto em que aproveita todos os seus interesses: a irreverência modernista, a safadeza de Hilst e as tentativas de descobrir o que é este país: uma pornochanchada sobre a República brasileira. Seu primeiro romance, “O presidente pornô”, será lançado nesta quinta-feira (20), às 19h, na Janela Livraria, no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio.

Anárquico e antropofágico, o romance mistura diversas linguagens (verso, prosa, teatro) e influências que vão de Machado de Assis a Carolina Maria de Jesus, passando pela funkeira Mulher Pepita.

Gay assumido e sem medo de comprar brigas: Escritor Lúcio Cardoso é redescoberto e tem diários reeditados

No livro, “O presidente pornô” é uma peça teatral assistida, num futuro distante, pelo imperador e pela imperatriz do Plazil, país que um dia foi uma república. Conta a história de Bráulio Garrazazuis Bestianelli, “segundo-sarnento” do “Exércuto” que assume a presidência do país fictício (sim, o livro é cheio de trocadilhos que arrancariam um discreto sorriso de Oswald de Andrade).

No primeiro ato, acompanhamos a campanha presidencial vencida por Bráulio com o slogan “esverde e amarele, vote Bestianelli” e um discurso liberal na economia e conservador nos costumes (embora ele desse vazão a suas taras, com homens e mulheres, entre quatro paredes).

O segundo ato recorda os anos de formação do futuro presidente. O terceiro, por fim, retrata o mandato de Bráulio, que endurece o regime para esmagar uma revolução que pretendia popularizar comportamentos sexuais reprovados pelos plazileiros “pautriotas”.

Liberdade, liberdade

A narrativa combina trechos do diário e dos poemas inéditos de Bráulio, reportagens de jornalões sisudos e jornalecos populares, programas de TV, marchinhas de carnaval e depoimentos de personagens como Getúlio, garoto de programa intelectual especializado em “masculinidade idosa e impotência sexual” que presta serviços em Brasília.

Em entrevista ao GLOBO, Bruna conta que decidiu transformar a história republicana motivada por eventos da história recente, como o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro. Percebeu que não dava para escrever um romance sóbrio e realista sobre o Brasil.

“O presidente pornô” se apropria e erotiza eventos de nossa história republicana brasileira, como a Intentona Comunista (1935) e o discurso do deputado Márcio Moreira Alves, em 1968, que apressou o Ato Institucional nº 5 (AI-5) ao pedir às moças que boicotassem os desfiles de Sete de Setembro e seus namorados soldados.

Bruna aprendeu que política e pornografia têm tudo a ver lendo Hilda Hilst. Em “Contos d’escárnio”, a obscena senhora H. convida: “Vamos escrever a quatro mãos uma história porneia, vamos inventar uma pornocracia, Brasil meu caro”. Bruna, que define “pornocracia” como “o governo de Eros, das pulsões do corpo”, topou o desafio.

— É impossível dissociar política e erotismo. Tanto que a primeira coisa que governos autoritários fazem é atacar a liberdade sexual, a pulsão de vida do povo. Porque eles sabem que a liberdade do corpo é liberdade da mente, é liberdade política — diz a autora do livro de poemas “Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas” (Letramento). — Desde os portugueses, a história do Brasil é uma sucessão de tentativas do poder de cercear o corpo e de revoltas do povo contra isso.

À primeira vista, o discurso do presidente do Plazil (conservador e truncado) lembra o de Bolsonaro. No entanto, Bráulio é uma espécie de colagem de todos os presidentes brasileiros desde a Deodoro da Fonseca. Além de militar, ele é “absurdamente velho”, “intensamente branco” (a rigor, o único presidente negro do Brasil foi Nilo Peçanha, 1909-1910) e “irreversivelmente calvo”. Também é poeta (como José Sarney e Michel Temer), acha que crise econômica é “marolinha” (Luiz Inácio Lula da Silva), promete dar um “ippon na inflação” (Fernando Collor de Mello), gosta do cheiro de cavalos (João Batista Figueiredo), é flagrado com uma modelo sem calcinha (Itamar Franco), foi goleiro de um time chamado Alecrim (Café Filho), perdeu o pai aos 7 anos (Epitácio Pessoa) e sofre um atentado (Bolsonaro e Prudente de Moraes).

De calça arriada

Só Dilma Rousseff não emprestou características a Bráulio. Ela ocupa um espaço nobre no livro, a dedicatória: “Às presidentas que vieram e que virão”.

— Não quis fazer uma sátira de um presidente ou de outro, mas da Presidência da República, uma instituição tradicionalmente masculina, branca, heterossexual e, com frequência, militar — explica Bruna. — Quis tirar esses caras do pedestal, baixar a calça deles e ficar rindo porque eles têm aquilo pequeno.

Bruna realmente não se incomoda em baixar as calças do Brasil. Aliás, ela afirma que a busca pela identidade nacional passa necessariamente pelas partes baixas do corpo — e não há por que se envergonhar disso. Por isso, sua pesquisa sobre o tema começa com Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), poeta afro-brasileiro que ruborizava a corte lusitana com seus versos lascivos, e chega até a coreografias sensuais e letras sugestivas de Anitta. Ela é autora de um ensaio sobre a cantora intitulado “A epistemologia da bunda”.

— Anitta é uma intelectual que não pensa só com a cabeça, mas também com o baixo-ventre. Não tem nada de negativo nisso. Hoje, ela é a artista que mais vende a identidade nacional para o exterior e para nós mesmos. Quando vai ao Coachella Festival (nos EUA) vestida de verde-amarelo e bota a favela no palco, ela está vendendo uma imagem de Brasil. Claro que podemos problematizar. O Brasil não é só o Rio. A maior parte do Brasil nem tem mar — diz a mineira.

Bruna também propaga uma concepção erotizada da identidade nacional. Em “O presidente pornô”, ela brinca com as potencialidades da ficção para pensar o que é o Brasil sem desprezar o que temos de mais “pornográfico”:

— A gente resiste, faz carnaval, bota o bloco na rua sem dinheiro mesmo, tira a roupa e se cobre de glitter. De onde vem tanto tesão pela vida?

Capa de "O presidente pornô", romance de Bruna Kalil Othero publicado pela Companhia das Letras — Foto: Reprodução
Capa de "O presidente pornô", romance de Bruna Kalil Othero publicado pela Companhia das Letras — Foto: Reprodução

Serviço:

‘O presidente pornô’

Autora: Bruna Kail Othero. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 248. Preço: R$ 74,90.


Fonte:https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2023/07/19/quem-e-bruna-kalil-othero-escritora-que-diz-que-o-brasil-e-pornochanchada-e-anitta-e-intelectual.ghtml

Comentários