DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA: DOS QUADRINHOS À FOTOGRAFIA, RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS INSPIRAM NOVAS GERAÇÕES DE ARTISTAS
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Dia da Consciência Negra: dos quadrinhos à fotografia, religiões afro-brasileiras inspiram novas gerações de artistas
Um desenho de Xangô, incluído na HQ, apareceu no filme “Space Jam: um novo legado”, com o astro do basquete LeBron James. Para desenhar os orixás como super-heróis, Canuto leu centenas de páginas sobre mitos africanos e conversou com pesquisadores da cultura iorubá, transladada da África Ocidental para o Brasil no século XIX por meio da escravidão. O baiano já prepara os roteiros para as próximas edições de “Contos dos orixás”.
— Meu desejo é que ele inspire outros artistas e sirva de instrumento de educação e de afirmação da cultura afro-brasileira diante de um cenário de intolerância — diz.
De certa forma, o desejo de Canuto tem se cumprido: cada vez mais artistas de várias áreas se inspiram no axé (ou seja, na força sagrada presente nas religiosidades de matriz africana). São nomes como Ayrson Heráclito, autor da obra “Buruburu”, que ilustra essa página, e pode ser vista na mostra “Yorùbáiano”, no Museu de Arte do Rio (MAR). Heráclito, que se iniciou no candomblé e nas artes ao mesmo tempo, em 1986, busca um “regime de visibilidade” que o permita fazer arte a partir do sagrado sem devassar os segredos da religião. Para pensar a constituição do “corpo afrodiaspórico” em fotografias, vídeos, instalações e performances, ele recorre a materiais relacionados à história afro-brasileira, como o açúcar, o charque e o dendê.
Na música, por exemplo, a atriz e cantora Jéssica Ellen (a Camila de “Amor de mãe”) misturou cantigas tradicionais da umbanda e melodias e letras inéditas em seu último álbum, “Macumbeira”. Neta de umbandista, Jéssica cresceu frequentando Festas de Erê (Cosme e Damião) no terreiro do avô. Em seu disco de estreia, “Sankofa”, cantou sobre se reaproximar da fé de seus ancestrais. “Macumbeira” é dedicado à umbanda do avô, mas ela planeja um disco inspirado no candomblé, fé que adotou aos 22 anos.
— Dizem que sou muito religiosa, mas não é só religião. É o resgate de uma cultura ancestral que devíamos conhecer desde a escola. As pessoas não sabem por que se come feijoada no Dia de São Jorge ou quem são as Pretas Velhas jongueiras sobre quem eu canto — diz Jéssica, que faz questão de ressignificar a palavra “macumbeira”. — Ficam me perguntando de possessão, de demônio. Isso é tão cafona. Meu amor, no candomblé nem diabo tem! Não vou convencer ninguém da minha fé, só quero respeito.
Ataques a terreiros
Somente no primeiro semestre de 2020, houve um aumento de 41,2% nos relatos de intolerância religiosa (sobretudo ataques a terreiros de candomblé e umbanda) em comparação ao mesmo período de 2019. Quando o cotejo é feito com os seis meses iniciais de 2018, o crescimento é de 136%. Esses dados estão na apresentação de “Contos de axé” (Malê), livro organizado por Marcelo Moutinho que será lançado hoje, Dia da Consciência Negra, às 15h, no Bafo da Prainha.
A antologia traz textos de escritores como Nei Lopes, Eliana Alves Cruz e Itamar Vieira Junior, cujo romance-fenômeno “Torto arado” trata do jarê, religião de matriz africana praticada na Chapada Diamantina. Cada uma das 18 histórias do livro é inspirada em um orixá diferente, como Orumilá, Iansã e Iroko.
A conexão dos mitos com a vida
Por muito tempo, Marcelo Moutinho foi só mais um carioca que admirava as religiosidades afro-brasileiras à distância e jogava flor no mar em 31 de dezembro. Há alguns anos, porém, ele se iniciou no ifá, prática divinatória baseada na comunicação com Orumilá, orixá da sabedoria e do conhecimento, e se encantou pelos itãs, as narrativas míticas da cultura iorubá. Pensou até em escrever um livro inspirado nos arquétipos dos orixás, mas preferiu organizar a antologia “Contos de axé”. O escritor afirma que seu interesse pelos orixás “está para além das questões místicas”.
— A conexão dos mitos africanos com a vida ao rés do chão é muito mais forte do que entidades de outras culturas em que a divisão bem/mal é muito marcada. Os orixás são como nós. Não são absolutamente bons nem maus. São como o rio em que você pode nadar ou se afogar — diz o escritor, que já havia incluído o conto “Oxê” (martelo de Xangô) em seu livro mais recente, “Rua de dentro” (Record).
Autor de uma história sobre Oxalá incluída na antologia, o poeta e pesquisador da cultura afro-brasileira Edimilson de Almeida Pereira afirma que sempre houve uma “relação íntima entre ancestralidades de matrizes culturais africanas, criação artística e resistência cultural”.
— Há séculos, as culturas negras são demonizadas e os afrodescendentes encontram no sagrado os mecanismos de proteção e resistência. A religiosidade pertence ao campo do simbólico, permite a metáfora e a linguagem oculta, cujo sentido só é acessível aos iniciados. Isso garante a preservação de valores e de uma visão de mundo — explica o autor de “Entre Orfe(x)u e Exu-nouveau”, livro sobre a importância do orixá para a literatura afro-brasileira. — A ancestralidade africana ainda resiste ao lado de outras práticas culturais diversas. É só ver a produção artística de jovens da periferia, afrodescendentes ou não. É um campo dinâmico, de mais atritos do que consensos, porque quando se trata de comunidades secularmente espoliadas sempre há desconfiança de apropriação.
A perseguição sofrida pelas manifestações religiosas e culturais afro-brasileiras, como funk e carnaval, é o tema do romance “ O último ancestral” (Harper Collins), de Ale Santos. O escritor, que conheceu festas como a congada, ainda criança, em Guaratinguetá, no Vale do Paraíba paulista, e depois familiarizou-se com os santos negros da Igreja Católica, com a umbanda e o candomblé. No livro, ele narra um futuro ultratecnológico e racialmente segregado no qual as religiões praticadas pelos negros foram proibidas. Santos acredita que apresentar a espiritualidade negra com linguagem pop pode sensibilizar o leitor para o tema.
Fonte:https://oglobo.globo.com/cultura/livros/dia-da-consciencia-negra-dos-quadrinhos-fotografia-religioes-afro-brasileiras-inspiram-novas-geracoes-de-artistas-25284691
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