AOS 88 ANOS, IVAN ANGELO VOLTA AO ROMANCE E ENQUADRA MÍDIA E DITADURA MILTAR PARA ILUMINAR O PRESENTE

 Após quase 30 anos longe dos romances, aos 87 anos Ivan Angelo lança 'Vida ao vivo'

Aos 88 anos, Ivan Angelo volta ao romance e enquadra mídia e ditadura militar para iluminar o presente

Em 'Vida ao vivo', autor mineiro diagnostica 'violência estrutural' que fundou o Brasil: 'A crueldade está na nossa raiz'

Por 

Ruan de Sousa Gabriel

 — São Paulo

16/02/2024 03h30  Atualizado há uma semana

O escritor Ivan Angelo admite que não é de fazer as coisas na hora. Em 2012, numa entrevista a Antônio Abujamra (1932-2015) no programa “Provocações”, na TV Cultura, contou estar escrevendo um romance que teria como personagem principal um peso-pesado da imprensa às voltas com suas memórias e um desejo sui generis: descobrir o paradeiro de uma mulher de quem nunca soube sequer o nome.


“Ele (o protagonista) ocupa o horário da novela das oito e fala: ‘Agora a novela das oito sou eu’”, adiantou a Abujamra o mineiro de Barbacena, que, embora continuasse publicando contos, crônicas e títulos infantojuvenis, não apresentava um novo romance desde “Amor?”, a confissão de um marido adúltero que venceu o prêmio Jabuti em 1996.

Tardou, mas chegou. Intitulada “Vida ao vivo”, a tal história sobre o profissional de mídia finalmente está nas livrarias.

— Na pandemia, percebi que a sociedade brasileira estava de novo vivendo um período obscurantista e retomei o romance em busca de alguma luz — diz Angelo, que recebeu o GLOBO em sua casa, em São Paulo.

“É isso que faz a literatura: iluminações”, diz o empresário Fernando Bandeira de Mello Aranha, de 77 anos, protagonista de “Vida ao vivo”.

’Prometo emoções’

A história começa em 24 de novembro de 2021. Sem combinar com ninguém de sua equipe, o dono da RNT simplesmente entra ao vivo e ocupa o horário nobre daquele dia para “contar uma história que ainda não terminou”. Ele vai tomar gosto pela coisa e continuará fazendo suas transmissões noite após noite — até bem entender.

“Prometo emoções”, diz ele, que exibe na tela uma fotografia tirada 17 anos antes. Na imagem, o magnata aparece saindo do carro, acompanhado do seu motorista e escoltado pelo segurança, enquanto uma mulher passa por eles com uma postura enigmática, como se quisesse dar um recado.

Admitindo que não sabe nada sobre a tal mulher e que pensa nela obsessivamente desde então, Fernando quer a ajuda do público para descobrir quem é a moça. Ele assume ter vacilado ao não agir naquele momento eternizado pela foto, deixando que ela fosse embora. E agora, diante de 30 milhões de testemunhas, oferece US$ 500 mil para a personagem desconhecida. Ele quer apenas que a mulher apareça e vá conversar com ele.

A estratégia talvez não dê certo, mas a ousadia do empresário repercute imensamente pelas redes sociais e em outros veículos.

Esse pontapé inicial do romance — que por si só já renderia uma novela no horário nobre — aos poucos envereda pelo mistério e pelo comentário político.

Ao longo de 18 noites, Fernando apresenta com vivacidade o programa “Vida ao vivo”, gerado diretamente de um estúdio montado em sua casa (a que chamam de convento) exclusivamente com essa intenção.

O empresário também dá detalhes de seu caso com uma atriz famosa, lamenta as tragédias de sua família (primogênito morreu de Aids, ex-mulher cometeu suicídio), acusa o caçula lhe passar Covid com o objetivo de matá-lo (e por isso mesmo o velho não sai de casa desde a data da foto) e cita autores que vão do iluminista Voltaire ao jornalista Millôr Fernandes.

Alfinetada na elite

Fernando se descreve como um “rico que sempre foi rico, que descende de ricos”.

— Eu estava cansado de personagens de classe média — conta Angelo. — Queria mostrar como pensa e age uma pessoa muito rica. Mas não um rico ignorante, que só pensa nos negócios. Um rico que lê, que tem ideias próprias. Fernando foi educado de acordo com os valores da alta classe brasileira, que tem origem na aristocracia rural. Mudaram de negócio, mas a cabeça continua a mesma.

Metade dos capítulos de “Vida ao vivo” é de monólogos, com as transcrições dos programas do empresário. a outra metade dá conta da repercussão: reportagens, textos de blogs “que não têm rabo preso”, recados enviados pelos telespectadores.

Fernando responde às mensagens do público ao vivo e, em mais de um programa, briga com fundamentalistas que o acusam de blasfêmia por citar a Bíblia sem a devida reverência.

Ivan Angelo confessa que quis mesmo espicaçar o conservadorismo religioso e diz ser um “bom leitor de Bíblia”. Ele lembra de ter ganhado uma cópia do livro sagrado do poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna quando ambos eram jovens escritores em Belo Horizonte. Filho de pastor, Sant’Anna brincou na dedicatória, desejando que as Escrituras salvassem seu “irmão de alma”.

Aos poucos, a rememoração vai esclarecendo a relação entre os três personagens da foto: o magnata, a moça misteriosa e o segurança, denunciado como um dos mais cruéis torturadores da ditadura. Logo após o restabelecimento do regime democrático no país, ele se envolveu com o garimpo ilegal e as milícias.

“Milícia é método”, diz o empresário. “Sempre houve milícia aqui, desde a colônia, com outros nomes, outra função social, mas olha os métodos: são grupos armados, conquistam poder, tomam a lei nas mãos”.

Sempre aparentando conhecimento de causa, Fernando diagnostica uma “violência estrutural” que fundou o Brasil, marcou a história e ainda dá as cartas no presente.

Ivan Angelo concorda com essa visão de mundo. Ele descreve “Vida ao vivo” como “um romance sobre a impunidade”.

— A violência não está só nos grandes momentos da nossa história, está também nos interstícios da nossa cultura. A crueldade está na nossa raiz — afirma o escritor.

Arte de captar o clima

Não é a primeira vez que Angelo enquadra a violência brasileira. Em 1976, ele publicou “A festa”, romance celebrado pela inventividade formal com que retratou a brutalidade da ditadura, que não é mencionada diretamente no livro.

— Não adiantava copiar a realidade. Um escritor deve que reagir poeticamente à realidade. Senão, escreve obviedades. Foi isso que matou parte da produção literária dos anos 1970. Permaneceu quem passou por cima da obviedade, como Rubem Fonseca. Os contos de “Feliz ano novo” não citam o governo militar, mas captam o clima daquela época — diz.

Membro da geração mineira que editou a revista Complemento, entre 1956 e 1958, Angelo migrou para São Paulo em 1965 para trabalhar no Jornal da Tarde. Viu que nem a repressão dos generais nem a “caretice da sociedade paulistana” eram capazes frear a revolução dos costumes: o Teatro Oficina escandalizava as plateias, motéis eram inaugurados por todo canto e as moças aderiam à minissaia (embora os rapazes só pudessem frequentar os cinemas do centro devidamente engravatados).

O mineiro emprestou várias de suas memórias paulistanas ao empresário de “Vida ao vivo”. No entanto, quando o quatrocentão desata a falar da São Paulo de sua juventude no programa, a audiência cai.

“Falei demais?”, questiona-se.

Na gaveta

Angelo completou 88 anos no último dia 4 e tem quatro livros prontos na gaveta: um de contos, um de crônicas, um infantil e uma coletânea de histórias policiais para jovens.

O escritor diz que também pensa em completar a trilogia iniciada com “Amor?”, iniciada há quase três décadas. Ainda falta contar as versões da mulher traída e da amante.

— “Amor?” foi escrito na forma de um diário. O segundo livro, o da esposa, eu planejava escrever como uma longa sessão de psicanálise. O terceiro, o da amante, seria uma troca cartas. Mas hoje ninguém mais escreve carta! Vou fazer um livro em forma de e-mail? Bizarro, não?

Serviço:

"Vida ao vivo"

Autor: Ivan Angelo. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 296. Preço: R$ 79,90.


Fonte:https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2024/02/16/aos-88-anos-ivan-angelo-volta-ao-romance-e-enquadra-midia-e-ditadura-militar-para-iluminar-o-presente.ghtml

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