HETEROPESSIMISMO: O QUE PODE EXPLICAR A FRUSTAÇÃO COM OS RELACIONAMENTOS HETEROSEXUAIS?


Heteropessimismo também passa por longo histórico social e político — Foto: Getty Images

Heteropessimismo também passa por longo histórico social e político — Foto: Getty Images


Heteropessimismo: o que pode explicar a frustração com os relacionamentos heterossexuais?

Pessoas hétero, em particular as mulheres, têm se sentido frustradas e cínicas quanto ao rumo das relações heterossexuais, chegando a abrir mão de se relacionar para não precisar se decepcionar com a postura de homens sem responsabilidade afetiva. Contudo, o descontentamento vai além do ciclo infinito de dates ruins e do comportamento tóxico dos homens. O que pode explicar o desinteresse nas relações e até mesmo a vergonha de fazer parte da cultura heterossexual?

Por Camila Cetrone, redação Marie Claire — São Paulo

12/06/2023 06h00  Atualizado há um mês

 

Quando pergunto a Gabriela*, de 25 anos, como se sente com o rumo de seus relacionamentos, a resposta vem na lata. “Estou cansada de homem.” Ela é uma mulher heterossexual que está há cinco anos solteira. Mesmo procurada por contatinhos, optou por passar seis meses sem ter encontros casuais. Só vai a um date se estiver muito a fim do cara – o que raramente acontece, dado o roteiro previsível de como a noite pode ser. "Comecei a ter paciência zero depois de uma decepção amorosa. Superei o cara, mas não superei a história. Os homens não são sinceros, não falam como se sentem e ainda te tratam como um pedaço de carne", ela desabafa. "Para mim, são todos iguais."

A lista de frustrações de Gabriela diante da postura masculina é grande, e passa por homens sem papo ou desinteressantes, que pensam que são mais do que realmente são, munidos de falta de responsabilidade afetiva e um vício inerente em ghosting (ou seja, apenas se afastar de repente em vez de terminar). É um padrão que se repete sempre para ela e muitas outras.


O descontentamento e a falta de perspectiva para se relacionar passou a dar o tom de relatos de mulheres hétero, desde as solteiras até as que estão há anos em uma relação aparentemente sólida (proponho um teste rápido: quantos “casais perfeitos” reclamando sobre si próprios pelas costas você ouviu só neste mês?). Os desabafos saem sem dificuldade das bocas das mulheres e, por vezes, terminam com um lamento: "É difícil ser hétero." Algo irremediável, visto que não temos poder de escolha sobre nossas orientações sexuais.

Pode parecer exagero, mas o descontentamento é mais do que um conflito individual. O fenômeno é tão amplo nas sociedades ocidentais que ganhou nome: heteropessimismo. O termo foi cunhado pelo escritor queer Asa Seresin, que estuda sexualidade e gênero, no cultuado artigo On Heteropessimism, publicado pela The New Inquiry em 2019.

Nas palavras de Asa Seresin, “heteropessimismo consiste nas desafiliações performativas com a heterossexualidade, geralmente expressas na forma de arrependimento, constrangimento ou desesperança sobre a experiência heterossexual”.

Esse cinismo, segundo ele, é maior entre mulheres, que sentem uma sensação de não alternativa. Geralmente, as queixas estão nos padrões de comportamento dos homens.

As mudanças nos papéis das mulheres na sociedade estão fortemente relacionadas ao uso do termo heteropessimismo, segundo a escritora, psicanalista e professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Paraná Ana Suy. Afinal, os avanços sociais e políticos conquistados por elas – que se intensificaram depois de 2010, quando a quarta onda feminista tomou as redes sociais – foram bem sucedidos em conceder (ou ao menos instigar) mais autonomia sobre seus corpos, incluindo a libertação do prazer e dos desejos.

Agora, as mulheres não precisam passar anos relegadas em silêncios a relacionamentos falidos. São incentivadas a terem voz ativa, estabelecer limites ou mesmo romper os laços, se assim desejarem – algo que foi por muito tempo exercido por homens, mas negado a elas.

"Se antes a mulher precisava estar atrelada a um homem para existir, hoje isso não é mais necessário. Houve também avanços da ciência e tecnologia relacionados à separação dos papéis de mãe e mulher. Isso reposiciona as demandas, satisfações e expectativas de um relacionamento", explica Suy.

Os homens, por outro lado, não acompanharam esses avanços. Pelo contrário: estagnaram. Para eles o heteropessimismo também existe, mas está atrelado a argumentos misóginos e à frustração diante dos avanços de direitos das mulheres. Para ter um vislumbre disso, basta voltar os olhos aos grupos masculinistas na internet: incelsMGTOW e red pills, por exemplo, se submetem a celibatos voluntários e veem mulheres como seres malignos e aproveitadores de quem se deve fugir e repugnar.

No entanto, o lado menos extremo também é verdadeiro. "Há uma certa frustração quando as mulheres se movimentam e se deparam com homens que não o fazem. Nós viemos de um longo processo de investigação sobre nós mesmas, enquanto os homens talvez estejam dando esse passo só agora. Muitos demonstram um fechamento que complica, impossibilita e inviabiliza as relações", diz Suy.

Lucia**, de 38 anos, deu de cara com esse bloqueio quando voltou a conhecer outros homens, depois de passar por uma separação. "Você os conhece, transa, passa alguns meses junto e o cara simplesmente faz ghosting. Eles têm muita dificuldade para ter conversas difíceis e incômodas. Quando não querem mais, a tendência é sair andando", relata.

Por mais que não abra mão de relacionamentos casuais, acabou criando um mecanismo de “redução de danos”: tem tentado não levar as opiniões deles sobre ela como verdades absolutas. "Já vou sabendo que ele não será o amor da minha vida, que pode não ser cuidadoso comigo e não vai falar sobre os próprios sentimentos", conta Lucia. "Acho isso tudo muito difícil.”

Esses conflitos de gênero resultam não só na desesperança, mas na preguiça da repetição de um mesmo ciclo trabalhoso: a aposta no outro, a frustração, a elaboração do luto e a nova tentativa.

Por mais que ainda acredite que seu amor virá, a coordenadora de moda em uma agência de assessoria de imprensa Renata Bastos, 41 anos, tem aberto mão de se relacionar com outros homens.

"Sou uma mulher trans que está fora do lugar que o patriarcado me colocaria – na prostituição ou em um lugar de sofrimento. A frustração começou a acontecer quando homens queriam vir 'me salvar' de alguma coisa ou quando eram preconceituosos com eles mesmos e não queriam ser vistos comigo. Se vejo uma linguagem preconceituosa ou sinto que não vou me sentir bem, prefiro ficar sozinha", diz.

Some esse desgaste ao fato de que, independentemente de para onde olharmos, veremos antigos modelos de relacionamento, a rigidez da heteronormatividade e a falácia do amor romântico serem questionados – quando não desmascarados. O ônus disso é que, atualmente, negar um date ruim para ficar em casa ou buscar outros modelos de relacionamento tem sido visto com bons olhos.

"A verdade é que estamos sem referência no campo dos relacionamentos amorosos” afirma Ana Suy. “Nós, enquanto mulheres, tínhamos referências de pais, avós e bisavós que passaram a vida inteira juntos mas, ao investigar a história, se vê os efeitos de uma sociedade bastante machista. Estamos redescobrindo e reinventando o que é o amor.”


Mas só esse descontentamento das relações interpessoais não é o suficiente para pensar o heteropessimismo. O buraco é muito mais embaixo.

Asa Seresin descreve que os rígidos padrões heteronormativos têm causado desconforto em algumas pessoas heterossexuais que tentam fugir de uma cultura intolerante, que se vê enquanto supremacia e, pior ainda, a “correta”. Não só a reconhecem assim como sentem vergonha de fazer parte dela.

Como exemplo, Seresin lembra da reação de algumas pessoas heterossexuais no Twitter quando a Parada do Orgulho Hétero em Boston, nos Estados Unidos, aconteceu em 2019 – em que centenas de manifestantes se definiram enquanto “maioria oprimida” e sequestraram o slogan Black Lives Matter para si, dizendo que “vidas hétero importam”.

“Muitos fazem questão de enfatizar que não são esse tipo de heterossexual, que têm, na verdade, vergonha de ser hétero e que, para não ser dramático, veem a heterossexualidade como uma prisão na qual estão confinados contra sua vontade.”

Após o surgimento do termo, estudiosos queer e feministas passaram a se debruçar sobre o assunto. Os estudos ainda engatinham, mas o que os pesquisadores querem que entendamos é que esses códigos da cultura heterossexual nos campos político e social extrapolam para nossas relações individuais. Também querem que entendamos que o pessimismo não é o caminho.

Uma referência na expansão dessa literatura é a plataforma The Heteropessimists, criada em 2021 por pesquisadores ingleses e australianos para divulgar suas descobertas sobre o heteropessimismo – bem como alternativas a ele.

Em um artigo inicial, de 2021, afirmam que, mesmo com o êxito maior de movimentos de mulheres e pessoas LGBTQIAPN+, a cultura heterossexual continua a propagar misoginia, a defender a hierarquia e binariedade de gênero e se atrela a outros preconceitos, como racismo, homofobia e transfobia.

A supervalorização da heterossexualidade como forma de controle é histórica e bem demarcada. A autora feminista e ativista queer Sherry Wolf já o descreveu em seu livro Sexualidade e socialismo: história, política e teoria da libertação LGBT (ed. Autonomia Literária, R$ 60, 424 págs.): a imposição da heteronormatividade em uma sociedade capitalista é um método de garantir a manutenção de uma ordem econômica, social e sexual. E é por isso que se luta com unhas e dentes para defendê-la.

A diferença é que, agora, mulheres e pessoas queer têm colocado o dedo na ferida ao escancarar que esse sistema está fadado ao fracasso, por mais que tente sempre se reconstruir e se manter forte – a identidade heterossexual é uma “repetição infinita de si mesma”, como definiu a filósofa queer Judith Butler.

Dentro deste contexto, o heteropessimismo se torna um vilão por ter um efeito anestésico e de desresponsabilização, paralisando quem o sente a tal ponto que, consequentemente, a norma vigente é mantida. O decreto se mantém: “As coisas são como são."

Gabriela diz que se identifica com a vergonha da cultura hétero, mas a reconhece como não efetiva. “Acho ridículo falar isso porque em momento algum pessoas hétero são oprimidas”, avalia. Há um ponto importante aqui: seria o desconforto das pessoas hétero por sua cultura tóxica equivalentes a anos de opressão, marginalização e criminalização que sofreram – e ainda sofrem – pessoas LGBTQIAPN+?

“Ficar desapontado de forma permanente e preventiva com a heterossexualidade é recusar a possibilidade de mudar a cultura hétero para melhor”, escreve Asa Seresin.

Em meio a um emaranhado que passa do público ao privado, qual seria a saída, então, para se alcançar uma heterossexualidade mais “saudável”? Os pesquisadores do The Heteropessimists definem que a resposta não aparecerá da noite para o dia, mas que a saída pode estar na criação de um ‘heterootimismo’. Contudo, adiantam: marchas do orgulho hétero e pensamento positivo sobre a heterossexualidade, da maneira como ela se desenha hoje, não são a saída.

“O heterootimismo não é apenas consertar relacionamentos rompidos, mas algo maior e mais expansivo em termos de pensar sobre as possibilidades da experiência cotidiana do desejo e da sexualidade de maneiras propriamente heterogêneas, não preconceituosas e expansivas.”

"Embora o conceito de heteropessimismo seja útil para aumentar a conscientização sobre um problema cultural duradouro, o pessimismo não pode ajudar a resolvê-lo. Precisamos de outras visões para a heterossexualidade que não sejam particularmente diretas", acrescentaram Jennifer HamiltonChristina KennyFelicity Joseph e Matt Allen, integrantes do projeto, em 2022 em um artigo da The Conversation republicado no Brasil pela Revista Galileu.

O que Seresin – e todas as pessoas descontentes com a heteronormatividade – acreditam ser necessária é uma revolução drástica na cultura heterossexual.

Apesar de essa revolução parecer distante e da discussão sobre heteropessimismo sequer ter chegado no campo acadêmico no Brasil, Ana Suy pensa que algumas mudanças estão no horizonte: “As mulheres não aceitam o que aceitavam antes, enquanto homens estão se reposicionando, revendo suas relações com o masculino e o feminino. Estamos em uma sociedade em transformação."

*Identificada apenas pelo primeiro nome

**O nome foi trocado a pedido da entrevistada


Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/comportamento/noticia/2023/06/heteropessimismo-frustracao-relacionamentos-heterossexuais.ghtml




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