DISCRIMINAÇÃO DO PORTE DE MACONHA: O QUE PENSAM OS MÉDICOS

 

Cultivo de maconha em um clube de cannabis em Montevidéu, Uruguai
Cultivo de maconha em um clube de cannabis em Montevidéu, Uruguai Etan Abramovich / AFP

Descriminalização do porte de maconha: o que pensam os médicos

Supremo retomará julgamento iniciado em 2015 que pode permitir porte para consumo próprio; especialistas avaliam repercussões na saúde pública

Por Bernardo Yoneshigue — Rio de Janeiro

28/05/2023 04h30  Atualizado há 16 horas


Nesta semana, o consumo e o combate às drogas, e seus impactos na saúde, voltaram ao debate depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) colocou na pauta a retomada de um julgamento iniciado ainda em 2015, em que analisa a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Na prática, se ele for declarado inconstitucional, o porte da maconha para consumo próprio, e possivelmente de outras drogas, deixará de ser motivo para enfrentar um processo penal no Brasil.

Embora não fale sobre legalização, já que a venda continua proibida, a possível descriminalização do porte garantiria que os usuários não sejam detidos. Hoje, a lei já prevê que apenas o tráfico seja passível de prisão, mas a indefinição de uma quantidade específica que faça a distinção entre uso e venda torna esse critério subjetivo e definido por juízes e policiais.

O entendimento sobre qual seria a melhor solução pelo Supremo em relação às repercussões sanitárias – como na busca pela redução do consumo e no acesso ao tratamento por dependentes –, porém, não é um consenso entre os médicos. O GLOBO ouviu quatro especialistas que apontaram os principais argumentos envolvidos na discussão.

Uma das principais divergências é se essa alteração aumentaria, ou não, o uso da maconha e outras drogas no Brasil. Enquanto de um lado há quem defenda que a decisão seria uma sinalização de que o entorpecente não é tão prejudicial à saúde, outros apontam que o consumo já acontece de qualquer maneira

— No meu modo de ver, Estados Unidos e Canadá têm políticas desastrosas de descriminalização que são responsáveis pelo aumento do consumo. Além disso, nunca foi feita uma prevenção efetiva no Brasil, e com uma mudança você impede qualquer ação futura. Porque seria uma sinalização de que se pode usar a droga em qualquer lugar — defende o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, diretor da Unidade de Pesquisa de Álcool e Drogas (Uniad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), de onde também é professor.


Por outro lado, o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, também professor da Unifesp e ex-consultor do Ministério da Saúde e da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, vê o cenário de forma diferente.

— Prevenção é falar sobre o assunto, não proibir. Hoje, não se fala sobre riscos e redução de danos para evitar dependência em maconha, mas com o álcool, que é legal, nós orientamos limites, por exemplo. Acaba que o jovem que consome a maconha vai usar de qualquer forma e receber informações das fontes erradas, como do tráfico. E existem estudos mostrando que a proibição não apenas não age, como piora, porque desperta a curiosidade do jovem — diz.

Outra questão de discordância é em relação ao acesso a tratamento pelos dependentes da droga. Silveira acredita que a forma como a lei é interpretada hoje pode trazer entraves, que seriam, em parte, solucionados com uma descriminalização.

— Não à toa maioria dos países desenvolvidos já discutiram esse aspecto da descriminalização há 40, 50 anos atrás. Se o indivíduo é um dependente, ele tem uma doença classificada no Código Internacional de Doenças (CID). Você vai criminalizar alguém porque ele tem um diagnóstico? Na hora que você muda essa visão, o indivíduo passa a ter mais acolhimento para buscar ajuda — afirma.

Já Laranjeira acredita que a legislação atual não oferece tais entraves para o acesso a terapias. Ele defende que o problema hoje no Brasil é a ausência de uma oferta suficiente de serviços de tratamento adequados para os dependentes.

— A lei diz o que tem que ser feito, mas não organiza. Acho que é preciso ver as experiências de sucesso de fora e criar um sistema mais estruturado. Mesmo aqui na cidade de São Paulo, há pouco tratamento. Temos um novo serviço na Cracolândia que só com um local que oferece o serviço 24 horas já encaminhamos mil pessoas nos últimos 45 dias. E é simplesmente um local mais organizado, então falta essa oferta — diz o psiquiatra.

Eliminação da tuberculose

Outro ponto que engloba as repercussões do debate na saúde pública é o encarceramento. Embora a lei de 17 anos atrás buscasse evitar a detenção de usuários, a ausência de delimitações levou a um aumento da população carcerária, apontam estudos.

Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) mostram que havia 297 mil pessoas privadas de liberdade no país em 2005, total que saltou 160% para 773 mil na última edição da pesquisa, em 2019. Destes, mais de um quarto são por delitos ligados à lei de drogas.

O professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fiocruz, Julio Croda, que trabalha com o sistema prisional, aponta que uma consequência desse aumento é a incidência de tuberculose no país. Um estudo de pesquisadores da Universidade de Yale, do qual ele participou, mostra que os casos dobraram nas prisões entre 2009 e 2017, e que um detento tem hoje 23 vezes mais risco de contrair a infecção do que a população geral.

— Temos observado nos últimos dez anos esse aumento da circulação da tuberculose. A proporção de pessoas diagnosticadas entre os detentos hoje é maior do que entre aqueles que vivem com HIV/Aids. Isso é consequência de um encarceramento excessivo pela política de drogas e, se não lidarmos com essa alta taxa nas prisões, não vamos conseguir atingir a meta de eliminar a doença no Brasil — afirma.

Um estudo do Ipea, divulgado pelo GLOBO, mostrou que, caso uma descriminalização englobasse o porte de até 25g de maconha, como funciona a legislação em Portugal, ao menos 27% de todos os condenados pelo crime do tráfico de drogas poderiam ser absolvidos por serem enquadrados como usuários.

Riscos da maconha e outros impactos

Ludhmila Hajjar, clínica geral, intensivista e professora de cardiologia da Universidade de São Paulo (USP), concorda que o debate sobre uso de drogas deve ser feito no campo da saúde pública, e não no âmbito criminal. Porém, ressalta que, independentemente da decisão do Supremo, é necessário que o país tenha mais esforços em combater o consumo de maconha.

— Eu como médica não recomendo que a população fume maconha, pois sabemos que o uso crônico está associado a maior ocorrência de infarto agudo do miocárdio e de derrame cerebral. Assim como espero cada vez mais que as pessoas se conscientizem do risco do cigarro comum, do cigarro eletrônico, das bebidas e do uso indiscriminado de psicotrópicos — diz a médica.

Entre os jovens, há ainda uma preocupação maior com os impactos neurológicos, já que o cérebro completa o seu processo de formação apenas aos 25 anos. Um trabalho recente de pesquisadores do Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos EUA (Nida) mostrou que a maconha pode estar ligada a até 30% dos casos de esquizofrenia nos homens de 21 a 30 anos.

Por outro lado, uma possível descriminalização poderia elevar o acesso aos usos positivos da cannabis com fins medicinais, diz Silveira. Embora os produtos do tipo sejam permitidos no Brasil pela Anvisa, ainda há pouca informação sobre na população geral, o que leva a um maior receio para pacientes que precisam andar com os medicamentos.

— Também existe a questão de novos fármacos. Existem muitos estudos mostrando as dificuldades que nós pesquisadores tivemos no início dessa guerra às drogas, nos anos 70, 90, para fazer pesquisa por conta do estigma. Eu só consegui fazer pesquisa em larga escala com psicodélicos (hoje muito estudados para transtornos mentais) mais tarde — diz o psiquiatra.

Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2023/05/descriminalizacao-do-porte-de-maconha-o-que-pensam-os-medicos.ghtml

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