HIV: CINCO PESSOAS JÁ ENTRARAM EM REMISSÃO; O QUÃO PERTO ESTAMOS DE UMA CURA GLOBAL?

 

Vírus do HIV se replicando (em rosa) a partir de uma célula infectada (em verde).
Vírus do HIV se replicando (em rosa) a partir de uma célula infectada (em verde). NIAD

HIV: cinco pessoas já entraram em remissão; o quão perto estamos de uma cura global?

Estratégias para eliminar a infecção em estudos têm avançado e são promessas no combate ao vírus para os próximos anos

Por Bernardo Yoneshigue — Rio de Janeiro

25/02/2023 04h30  Atualizado há 4 dias

Na última semana, pesquisadores da Alemanha anunciaram o caso de um paciente que está há cinco anos sem o uso de medicamentos para o HIV e sem sinal de retorno do vírus, um quadro de remissão em que o indivíduo foi considerado curado da infecção. Não é a primeira vez que o feito é atingido, outros quatro relatos semelhantes foram anunciados desde 2009, mostrando que a ciência consegue de fato eliminar o patógeno de um ser humano.

A conquista era algo impensável nos anos 80, quando o vírus começou a ganhar o noticiário pela sua alta letalidade e disseminação fora de controle. Hoje, o cenário mudou muito para as 38,4 milhões de pessoas vivendo com o patógeno – 960 mil delas no Brasil — segundo estimativas mais recentes do programa das Nações Unidas para Aids (Unaids). Mas afinal, o quão próximos de um tratamento acessível para curar o HIV?

Os cinco casos de sucesso até agora compartilham algo em comum: foram beneficiados de um procedimento destinado a outra doença, um câncer, porém pensado também para ajudar no combate ao HIV. Todos precisaram de um transplante de medula óssea e, ao selecionar o doador, os cientistas buscaram alguém com uma mutação genética que levava a não expressão de um receptor chamado CCR5.

Esse receptor é uma proteína que fica na superfície das células do sistema imunológico chamadas linfócitos T CD4, que são os principais alvos do HIV. Ele atua como uma espécie de fechadura por onde o vírus entra na célula. Porém, com a mutação e a ausência do receptor, a célula se torna resistente à infecção, interrompendo a replicação do vírus no organismo e eventualmente o eliminando.

— É importante saber que existe a possibilidade de cura, isso gera uma esperança. Pode ser que isso direcione algum dia para uma cura com modificações genéticas da célula para que ela tenha essa característica de não expressar a proteína CCR5. Porém o transplante não é algo possível de se reproduzir em larga escala, é muito arriscado, com mortalidade alta, de 15%. Então só tem sentido realizá-lo quando de fato há uma doença associada, como a leucemia — explica José Valdez Ramalho Madruga, infectologista e coordenador do Comitê de HIV/Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e pesquisador do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids de São Paulo.

O infectologista Ricardo Sobhie Diaz, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que pesquisa possíveis curas para o HIV, acrescenta que outras tentativas de remissão pelo transplante já falharam, ou seja, também não é um procedimento com 100% de eficácia. Ainda assim, defende que são feitos importantes, especialmente por terem sido em pessoas com quadros diversos de infecção.

— O mais legal é que os cinco casos foram de diferentes idades, resistências ao vírus, estágios da infecção e gêneros. Então essa diversidade ajuda a entendermos as possibilidades de cura. Agora precisamos encontrar um caminho escalonável para isso. É muito importante continuarmos na busca de uma cura porque, mesmo com o tratamento, o vírus não é algo positivo no corpo da pessoa. E com a cura, e outras ferramentas, seria possível erradicar o HIV — diz Diaz.

Outras formas de cura estão em estudos

A principal dificuldade em encontrar uma terapia que elimine a infecção pelo HIV por completo é devido a algo chamado de persistência viral, que impede os medicamentos atuais de destruírem todas as partes do vírus que circulam pelo organismo.

— Mesmo com o tratamento atual, o vírus permanece em partes do corpo em estado de latência, como uma espécie de dormência. Então toda vez que você remove a terapia antirretroviral, mais cedo ou mais tarde esses vírus que estão dormindo acordam e voltam a se replicar, e a infecção reaparece. Mas existem estratégias que buscam chegar até esses reservatórios — diz o imunologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jorge Andrade Pinto.

Os especialistas explicam que esse processo de os vírus “acordarem” acontece naturalmente, porém que demoraria cerca de 80 anos para todos despertarem, e os antivirais conseguirem eliminá-los por completo. Por isso uma das técnicas em estudo busca acelerar esse mecanismo.

— Uma que tem sido mais estudada é a reversão dessa latência com drogas que forçam esses vírus a sair do estado de dormência e reaparecer. E aí é possível matá-los com os antirretrovirais. Outra forma é silenciar de maneira permanente os vírus que estão latentes com anticorpos e agentes antivirais, para que eles nunca acordem. Uma terceira são as vacinas terapêuticas, que é uma área promissora em que você estimula o sistema imune a reconhecer e atacar as células infectadas — resume Pinto.

Diaz, da Unifesp, é um dos cientistas que buscam desenvolver uma técnica para alcançar os vírus latentes nos reservatórios e eliminar de vez o HIV com terapias replicáveis em larga escala. Ele chegou a conseguir o feito em testes, porém seis meses depois houve indícios de retorno do patógeno, o que levou os pesquisadores a orientarem a volta do tratamento. Porém, o estudo deve ser retomado em breve.

— No nosso estudo, observamos que unir intervenções diferentes para ultrapassar as diversas barreiras para a cura têm mais sucesso. Então fizemos uma super combinação de medicamentos antirretrovirais e juntamos com outros que acordam o vírus em latência e que matam a célula em que ele está. Além disso, fizemos uma vacina terapêutica personalizada para estimular a produção de anticorpos que alcancem esses reservatórios. Na hora que juntamos tudo, vimos que de forma significativa diminuímos o material do vírus no corpo. Em breve, vamos retomar o estudo, depois de alguns clareamentos com a Anvisa, para continuar com os testes — conta o especialista.

Ele avalia que as pesquisas sobre o tema estão bem avançadas, e que em cerca de cinco anos já deve haver novidades nesse cenário. Diaz explica que uma das questões relacionadas ao tempo é a necessidade de esperar ao menos dois anos depois da intervenção para averiguar se o vírus voltou a se multiplicar sem o tratamento diário, ou se de fato foi alcançada uma cura.

— É muito importante que continue a ter investimentos nessas pesquisas para encontrar uma cura. O HIV é uma pandemia há 40 anos e, apesar dos avanços serem grandes, são insuficientes para declararmos uma vitória contra o vírus — pontua Pinto, da UFMG.

Mesmo sem cura, cenário é outro

Ainda que uma cura universal e acessível esteja um pouco distante, o cenário hoje para as pessoas que vivem com HIV é completamente diferente daquele dos anos 80 e 90, quando o vírus foi inicialmente detectado em humanos e seu diagnóstico era quase uma sentença de morte.

Segundo os dados da Unaids, em 2021, eram 38,4 milhões de pessoas vivendo com o vírus, porém foram registradas apenas 650 mil mortes relacionadas à Aids – síndrome grave desenvolvida quando o paciente não adere ao tratamento antirretroviral para controlar o HIV. Embora seja um número alto, é uma queda considerável em comparação com os 2 milhões de óbitos registrados a cada ano no início do século.

— Tivemos avanços significativos nessa última década. Um aspecto importante é a forma de uso dos medicamentos. Há 40 anos eram 10, 12 comprimidos por dia. Atualmente, com um comprimido diário você consegue um bom controle da infecção — diz o imunologista da universidade mineira.

No Brasil, em 1996, chegaram a ser registradas quase 30 mil mortes associadas ao HIV, de acordo com a Unaids. Porém nos últimos anos, esse número permanece abaixo de 15 mil óbitos ao ano.

— Os antirretrovirais são bem toleráveis e oferecem boa qualidade de vida. Só que tem que tomar o medicamento de forma diária continuamente, não pode interromper. Por isso, os laboratórios estão trabalhando muito para simplificá-lo testando versões de longa duração, injetáveis de forma intramuscular de dois em dois meses, outro de forma subcutânea duas vezes ao ano. Existem outras vias de administração, como por meio de implantes, por adesivo com microagulhas que liberam o medicamento gradualmente. O futuro é promissor — avalia José Valdez Madruga, da SBI.

Além disso, ele reforça que a terapia feita corretamente é também uma estratégia de redução da transmissão, uma vez que os medicamentos conseguem tornar o vírus indetectável. Nesse estágio, já é um consenso na comunidade científica que ele se torna também intransmissível.

— O conceito de indetectável igual a intransmissível é bem estabelecido na literatura, baseado em quatro estudos grandes sobre mais de 160 mil relações sexuais desprotegidas que comprovaram que pacientes em tratamento com carga viral indetectável não transmitem o HIV. É um dado muito importante, porque sabemos que isso favorece a adesão ao tratamento. Mas infelizmente nem todos os médicos esclarecem isso para os seus pacientes — afirma o infectologista.

Prevenção ainda é chave

Embora os medicamentos tenham avançado, e a perspectiva de cura esteja mais próxima, os modos de prevenção continuam a ser indispensáveis. E são importantes especialmente no contexto em que, na contramão dos casos de Aids, que estão em queda graças ao tratamento, as infecções por HIV estão em alta no Brasil.

Os dados brasileiros mostram que do final dos anos 90 para 2021, o número de novas contaminações saltou de 40 mil para 50 mil ao ano, em média. É também o contrário da tendência mundial, que no mesmo período saiu de mais de três milhões de diagnósticos anualmente para aproximadamente 1,5 milhão.

Mortes por Aids caem no Brasil, mas transmissão do HIV permanece elevada

Além disso, o Boletim Epidemiológico sobre HIV/Aids do Ministério da Saúde de 2022 aponta que, nos últimos 10 anos, o número de infecções que evoluíram para Aids aumentou 20% entre jovens homens de 14 a 29 anos, único grupo em que houve um crescimento no país.

Para evitar a contaminação, além da camisinha, há outras estratégias disponíveis nos postos de saúde do país desde 2017, a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP). A PrEP consiste em comprimidos diários que combinam dois antirretrovirais que bloqueiam os caminhos que o HIV utiliza para infectar o indivíduo. Com isso, o risco de contaminação é reduzido em caso de eventual exposição.

O esquema é indicado a homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, trabalhadores do sexo e outras pessoas consideradas de maior risco. Já a PEP é para ser utilizada após eventual exposição por aqueles que não fazem uso da PrEP. Ela deve ser iniciada em até 72 horas, porém de preferência nas primeiras duas horas após a relação sexual. São também comprimidos diários que precisam ser tomados por 28 dias após ao sexo.

Há ainda a expectativa de que a ciência consiga desenvolver uma vacina eficaz para a prevenção do HIV. No entanto, recentemente um amplo estudo mundial que se encontrava na última fase de testes, o Mosaico, mostrou que a candidata mais promissora era ineficaz. Mas Pinto, que coordenava o ensaio clínico na UFMG, explica que há outras plataformas em desenvolvimento.

— É o caso das vacinas baseadas em RNA mensageiro, tecnologia das doses da Covid-19, que mostraram sua extrema eficácia e segurança na pandemia, e têm demonstrado grande potencial em estudos para outros agentes. Ela abre uma avenida nova a ser explorada, mas com o HIV ainda é bem inicial. O problema é que o vírus tem uma mutação muito acelerada, então você precisa induzir uma resposta imune muito ampla para dar conta da sua diversidade genética. E tem a persistência viral que também é um grande desafio, porque o vírus se aloja dentro da célula e escapa da imunidade — diz o imunologista.


Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2023/02/hiv-cinco-pessoas-ja-entraram-em-remissao-o-quao-perto-estamos-de-uma-cura-global.ghtml


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