UM ANO DE GUERRA NA UCRÂNIA: RÚSSIA EVITA COLAPSO ECONÔMICO, MAS NÃO O RACHA NA SOCIEDADE

 

Símbolo da abertura dos anos 1990, o primeiro McDonald’s da Rússia deu lugar à cópia 'Delicioso & Ponto” (Vkusno & Tochka, em russo), em um sinal do impacto da guerra para a população de Moscou
Símbolo da abertura dos anos 1990, o primeiro McDonald’s da Rússia deu lugar à cópia 'Delicioso & Ponto” (Vkusno & Tochka, em russo), em um sinal do impacto da guerra para a população de Moscou Marcelo Ninio

Um ano de guerra na Ucrânia: Rússia evita colapso econômico, mas não o racha na sociedade

Russos se dividem entre resiliência para buscar alternativas às carências geradas pelas sanções e a sensação de isolamento sem prazo para acabar

Por Marcelo Ninio; Especial Para O Globo — Moscou

19/02/2023 04h30  Atualizado há 5 horas


Foi uma das imagens mais simbólicas do fim da União Soviética: em 1990 uma multidão enfrentou longas filas para conhecer o sabor do capitalismo ocidental, no primeiro McDonald’s inaugurado em território russo. Localizado a poucos quarteirões da Praça Vermelha, ele continua um sucesso de público, mas desde junho do ano passado com novo dono e outro nome: “Delicioso & Ponto” (Vkusno & Tochka, em russo).


O cardápio é quase uma cópia do original, só que rebatizado. O Big Mac, por exemplo, virou “Grande Duplo Especial”. Os refrigerantes foram substituídos por versões locais. Um ano após a ordem do Kremlin de invadir a Ucrânia, que levou a rede americana de fast food e outras empresas do Ocidente a se retirarem da Rússia, a lanchonete carrega um outro tipo de simbolismo, resumindo em parte o impacto que a guerra teve na população.

Por um lado, agilidade e resiliência para buscar alternativas às carências geradas pelas sanções impostas pelo Ocidente. De outro, uma incômoda sensação de isolamento sem prazo para acabar — o que para muitos russos traz de volta lembranças indesejáveis dos tempos da antiga União Soviética.

Pega de surpresa com a invasão da Ucrânia — iniciada em 24 de fevereiro de 2022 —, a maioria não consegue enxergar uma solução para a crise no horizonte. Forçados a conviver com a ideia de um conflito duradouro, muitos consideram sem volta o rompimento com o Ocidente, mostra a primeira reportagem da série do GLOBO sobre o primeiro ano do conflito na Ucrânia, que ainda parece longe do fim.

A frustração é maior para a parcela da população que se beneficiou da integração da Rússia à economia mundial, a classe média emergente que agora teme um processo de desglobalização do país. Habituada a viajar de três a quatro vezes por ano para a Europa, a diretora jurídica de uma grande empresa de logística está assombrada com a possibilidade de que sua filha de quatro anos jamais venha a conhecer o continente. Além da dificuldade de obter vistos e de encontrar voos desde que a União Europeia fechou seu espaço aéreo, há o medo de sofrer ataques numa Europa contaminada pela russofobia, diz a advogada de 40 anos, que pediu para não ter a identidade revelada.

Mas não houve só surpresas negativas. Ao contrário do que muitos esperavam, a economia russa não entrou em colapso sob o peso das sanções. A inflação, embora tenha aumentado, foi mantida sob controle. O PIB contraiu cerca de 2,5% em 2022, um declínio muito menos drástico do que os 10% previstos. Com o campo de batalha a centenas de quilômetros de distância, os moscovitas seguem a vida sem maiores sobressaltos econômicos, ao menos por enquanto. Bares e restaurantes estão cheios, não há sinal de desabastecimento nos mercados e a agenda cultural continua farta, embora carente de atrações do exterior.

Por trás da aparência de normalidade, porém, o clima social mudou. A guerra dividiu famílias e separou amigos. A perseguição oficial se intensificou contra vozes contrárias ao governo e tornou quase impossível o trabalho de jornalistas independentes. Muitos deixaram a Rússia, parte de um êxodo em massa para escapar da repressão, do isolamento e do serviço militar. Não há estatísticas oficiais, mas estima-se em mais de um milhão de autoexilados — número relativamente pequeno para uma população de 145 milhões, mas ainda assim significativo pelo perfil de classe média e com alto nível de instrução dos que partiram, como profissionais de tecnologia.

Esta semana uma corte da Sibéria condenou uma repórter a seis anos de prisão por divulgar informações sobre um ataque russo que teria deixado centenas de mortos na Ucrânia — Moscou negou responsabilidade na ação. Maria Ponomarenko foi a primeira jornalista a ser punida sob as novas leis de censura baixadas no país logo após a invasão. Entre outras medidas, elas proíbem o uso público da palavra guerra para descrever o que o governo chama de operação militar especial.

O aperto é implacável e não se limita a profissionais da imprensa: dias antes da sentença de Ponomarenko, um homem foi condenado a pagar multa de 500 mil rublos (R$ 35 mil) por se referir à ação como “operação militar especial”. O uso de aspas, alegou a corte, foi uma tentativa de depreciar a ação russa. Com o aumento da repressão, tornaram-se raros os protestos contra a guerra como os ocorridos no início da invasão. Um outro motivo para o encolhimento da resistência pública ao governo é que muitos dos opositores deixaram o país, diz Fyodor Lukyanov, editor-chefe da revista “Russia in Global Affairs”.

— A atmosfera está estranha. Não há nacionalismo exacerbado, tampouco forte resistência. Na revolução bolchevique, milhões foram mortos e perseguidos para estabilizar o país. Putin nem teve que fazer isso. As pessoas saíram voluntariamente — diz Lukyanov.

Segundo o Centro Levada, principal instituto de pesquisas da Rússia, a taxa de aprovação do presidente Vladimir Putin mantém-se na estratosfera, em torno de 80%. O problema é que o risco de ir contra o governo torna questionável a sinceridade dos consultados. A realidade está mais próxima de uma divisão meio a meio, arriscam analistas. Além disso, com a supressão de veículos de imprensa independentes, uma grande parcela da população — sobretudo fora dos grandes centros urbanos — informa-se apenas por meio da mídia estatal e sua máquina de propaganda.

— Para muitos russos é difícil separar o governo do país — diz um opositor.

Mas há também um considerável nível de apoio genuíno a Putin, alimentado pelo patriotismo promovido pelo Kremlin em sua justificativa de que a guerra não é só contra a Ucrânia e sim uma resposta ao cerco do Ocidente. Para o moscovita Igor Sereda, 27, representante na Rússia de uma fábrica chinesa de maquinário agrícola, quem deixou o país foram os “fracos” e os que não entendem o que está em jogo. Em sua visão, a luta na Ucrânia é pela independência da Rússia e pelo direito do país de ser tratado com igualdade.

— Corríamos o risco de virar só um posto de gasolina da Europa — diz Sereda.

Sommeliers de Coca-Cola

Diante do boicote ocidental, o jeito foi acelerar o processo de substituição de importações, que Putin já havia lançado bem antes da crise, para suprir a ausência dos importados. Um caso curioso foi a saída do país da Coca-Cola, que ampliou a oferta de refrigerantes do mesmo sabor produzidos na Rússia. Apreciadores da bebida viraram sommeliers de Coca-Cola, à procura da variante mais próxima da original.

Também intensificou-se a busca por fornecedores alternativos, o que abriu oportunidades para países como o Brasil. Na falta de gorgonzola original da Itália, por exemplo, a Rússia tem importado uma versão do queijo produzida pela indústria de lácteos paulista Tirolez. Segundo Paulo Hegg, gerente de exportação da empresa, no último ano o mercado russo foi o destino de 60% do gorgonzola que produzem, o equivalente a 1,2 tonelada por ano.

Principal ponto turístico de Moscou, a Praça Vermelha quase não tinha visitantes estrangeiros no último fim de semana. Os poucos que apareceram eram da Índia e da Turquia, países que não aderiram às sanções. Em 2022, a chegada de turistas de outros países foi de apenas 4% do volume registrado em 2019, segundo a Associação de Operadores de Turismo da Rússia.

A fuga de estrangeiros contribuiu para ofuscar o lado cosmopolita da cidade. Marcas de luxo como Gucci, Cartier, Hugo Boss e Fendi fecharam suas lojas no emblemático shopping GUM, na Praça Vermelha. Mesmo fechadas, algumas mantêm as vitrines decoradas, sinalizando a possibilidade de reabertura. Um aviso colado nas portas insinua a esperança de volta à normalidade que poucos em Moscou compartilham: “Caro visitante! A loja está fechada por razões técnicas. Pedimos desculpas pela inconveniência temporária”.

Fonte:https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/02/um-ano-de-guerra-na-ucrania-russia-evita-colapso-economico-mas-nao-o-racha-na-sociedade.ghtml?utm_source=globo.com&utm_medium=oglobo

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