MULHERES BRASILEIRAS ESTÃO BEBENDO CADA VEZ MAIS CEDO.POR QUE?

 

Se por um lado é possível relacionar o novo cenário à emancipação feminina pelo mundo – antes mais estigmatizadas ao beber –, por outro, especialistas da saúde pública alertam: elas são muito mais afetadas pelos malefícios do álcool
Se por um lado é possível relacionar o novo cenário à emancipação feminina pelo mundo – antes mais estigmatizadas ao beber –, por outro, especialistas da saúde pública alertam: elas são muito mais afetadas pelos malefícios do álcool Getty Images

Mulheres brasileiras estão bebendo mais e cada vez mais cedo. Por quê?

Marie Claire levantou as razões e os cenários que levaram a uma mudança de paradigma no consumo de álcool entre mulheres. Se por um lado é possível relacionar o novo cenário à emancipação feminina pelo mundo – antes mais estigmatizadas ao beber –, por outro, especialistas da saúde pública alertam: elas são muito mais afetadas pelos malefícios do álcool

Por Por Manuela Azenha

17/02/2023 06h01  Atualizado há um dia


Bianca Baptista, 50 anos, está há 608 dias e 12 horas sem beber. O principal gatilho para ela é o calor, e a bebida preferida, uma cerveja estupidamente gelada. Com a chegada do verão, dá para imaginar a dificuldade quando barraquinhas de chopp tomam conta das ruas de Gramado, Rio Grande do Sul, cidade onde vive.

“Tenho tido tanta vontade de chutar o balde”, confessa Bianca, que trabalha como cozinheira em um bistrô. “Em abril completo dois anos em sobriedade. Foi providencial ser entrevistada agora. Me dá mais força de continuar sóbria e conseguir ser exemplo a outras mulheres. Cada dia é uma luta”, continua.

studos apontam que há pelo menos duas décadas mulheres consomem cada vez mais álcool e começam cada vez mais cedo, enquanto o padrão masculino – tradicionalmente mais elevado, se mantém estável. De modo geral, entre os jovens o consumo já é equivalente, e, ao que tudo indica, a histórica diferença entre o número de homens e mulheres que bebem deixará de existir.

No Brasil, 25% dos homens e 12,7% das mulheres, acima de 18 anos, relataram consumo abusivo de álcool (quatro ou mais doses em uma única ocasião, pelo menos uma vez no último mês), segundo levantamento do Ministério da Saúde. Mas o índice feminino tem crescido em média 4,2% por ano na última década, de acordo com relatório do CISA (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool).

Filha de pais alcoólatras (ou “alcoolistas”, como preferem os especialistas), Bianca começou a beber aos 15 anos. Viu a mãe ser internada três vezes por causa do álcool. Quando ela tinha 16, o pai morreu de cirrose. Em 2015, após 30 anos bebendo, Bianca viveu um dos piores episódios de embriaguez. Ao chegar em casa depois de um churrasco, se desequilibrou nas escadas e caiu 17 degraus. Sofreu um afundamento no crânio e perdeu o olfato.

Como trabalha no ramo da gastronomia, passou a cozinhar contando com a intuição e o eventual auxílio de algum colega. Mesmo após a queda, continuou bebendo, e só conseguiu parar em 2021, ao cruzar na rua com a “madrinha” de AA de sua mãe.

“Entendi aquilo como um sinal e todos os dias desde então ela me escreve uma mensagem de força. Terminei com meu então namorado, de quem gosto até hoje, porque não podia estar com alguém que bebia, e mudei de cidade para começar uma vida nova, sem família e nem amigos”, conta Bianca, às lágrimas.

São os riscos do consumo abusivo, mais do que do alcoolismo em si, que preocupam especialistas da saúde públicaAinda que bebam em menor quantidade do que os homens, as mulheres são as mais propensas a desenvolver problemas de saúde em decorrência do álcool, como câncer de mama, cirrose, problemas cardíacos, impactos neurológicos e mesmo a dependência química.

Isso acontece porque o organismo delas absorve mais o álcool, por possuir menos água e produzir em menor quantidade enzimas que metabolizam a toxicidade etílica. De 2019 a 2020, ano em que começou a pandemia, houve um aumento de 23% de mortes totalmente atribuíveis ao álcool entre as brasileiras.

Um estudo global, publicado na revista científica BMJ Open, de 2016, aponta que no início do século 20, homens apresentavam risco 3,6 vezes maior de sofrer consequências negativas relacionadas ao consumo nocivo de álcool, como doenças e lesões. Esse número diminuiu para 1,3 vez no início do século 21.

Pesquisas sobre o tema são escassas no Brasil, mas estudiosos apontam diversos fatores que levam ao aumento do consumo feminino. Em primeiro lugar, a mudança e a emancipação do papel social feminino, e a maior aceitação do beber entre mulheres. Com a presença delas cada vez maior no mercado profissional, vem ainda o acúmulo das jornadas de trabalho dentro e fora de casa, aumento da pressão e nível de estresse, e o medo de perder o emprego em tempos de crise econômica ou sanitária, dentre outros sofrimentos. A bebida entra como uma tentativa de suportar um quadro estruturalmente problemático.

A mudança na publicidade reflete essa transformação da mulher como consumidora de álcool. Ou seria a inversão da publicidade no que diz respeito ao lugar feminino com esse consumo que tem influenciado os novos hábitos delas? Quem não se lembra que até poucos anos atrás as propagandas de cerveja traziam mulheres de biquíni tão objetificadas quanto o próprio produto?

“O mercado publicitário monitora grupos com espaço para crescimento de consumo, como o de mulheres, para a criação de anúncios e de novos produtos. Agora os anúncios estão nas redes sociais, são direcionados e se utilizam de datas específicas e conquistas das mulheres para dizer: ‘Vai lá beber com suas amigas’”, afirma Ilana Pinsky, psicóloga e pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

Dentre as adolescentes, o consumo já superou o dos meninos (30,1% x 26%), de acordo com a PeNSE (Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar), de 2019. Houve também um aumento da experimentação de álcool entre meninas de 13 a 17 anos, cuja diferença em relação aos garotos cresceu (36,8% das meninas x 32,3% dos meninos).

O álcool é a droga de escolha na adolescência, afirma Camila Magalhães, pesquisadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. O aumento do consumo nessa idade estaria associado a diversos fatores: mudanças drásticas no corpo, emocional e estilo de vida, a puberdade precoce e a imaturidade para lidar com bombardeio digital ao qual as meninas são especialmente submetidas por meio das redes sociais.

Outra preocupação é com o uso do álcool por gestantes, o que pode comprometer a saúde tanto das grávidas como do bebê. No Brasil, estima-se que 15% das gestantes consomem bebidas alcoólicas e mais brasileiras em idade fértil estão bebendo, segundo o relatório do CISA.

'Mulher alcoolista é um tabu'

Bianca frequenta reuniões virtuais da associação Alcoolismo Feminino (AF) há dois anos, antes disso participava do Alcoólatras Anônimos (AA), também de modo online. Assim como ela, muitas mulheres optaram pelo tratamento à distância. Nas reuniões virtuais do AA, elas já são 40% dos participantes – taxa superior aos encontros presenciais, nos quais compõem apenas 5%, segundo o coordenador de relações públicas do AA do Brasil, que preferiu não ser identificado. “Isso nos leva a crer que as mulheres se sentem mais confortáveis em pedir ajuda de forma virtual”, analisa o coordenador.

Quando comecei a frequentar reuniões do AA, era a única mulher e me sentia constrangida em falar'
— Graziela Santoro, fundadora da associação Alcoolismo Feminino

Pensando na falta de serviços voltados a mulheres dependentes, a publicitária e ex-usuária Graziela Santoro fundou a associação Alcoolismo Feminino, há três anos. “Quando comecei a frequentar reuniões do AA, era a única mulher e me sentia constrangida em falar sobre as experiências de violência física e sexual que sofri alcoolizada, por exemplo”, relata Graziela, que está sóbria há 14 anos. Conta que dos 29 aos 38 anos não se lembra de quase nada de sua vida a não ser beber.

“Há temas próprios das mulheres dependentes, como a maternidade. Conflitos que envolvem tanto a relação com as próprias mães, muitas vezes dependentes também, quanto com os filhos”, pontua Graziela.

“Uma das minhas lembranças mais dolorosas é de um dia que saí de casa para beber e tranquei minhas duas filhas pequenas sozinhas em casa, de 3 e 6 anos. Elas batiam na porta e gritavam: ‘Mãe, não vai embora’. Mas fui e só voltei na manhã seguinte’”, conta. Há outra particularidade nas pacientes femininas: grande parte realizou cirurgias bariátricas e, após o procedimento, trocou a compulsão alimentar pelo álcool. Na AF chegam a ser 30% das atendidas.

A psicóloga Silvia Brasiliano, coordenadora do PROMUD (Programa da Mulher Dependente Química), do Hospital das Clínicas, em São Paulo, destaca que houve uma mudança de perfil nas mulheres que o serviço atende. “Há 25 anos, apareciam mulheres com uns 50 anos, que não trabalhavam e estavam deprimidas porque os filhos tinham saído de casa e elas ficavam sem função. Bebiam escondidas. Hoje em dia, muitas bebem em bares. Encontramos mulheres jovens, na casa dos 30, que já são alcoolistas, e mais velhas, que, por exemplo, começaram a frequentar bar e fumar crack com 50 anos”, explica.

Mulher alcoolista é um tabu. Enquanto homens costumam ser vistos como ‘coitadinhos que precisam de ajuda’, mulheres na mesma condição são frequentemente estigmatizadas sob rótulos de ‘péssimas mães’ "
— Marcelo Ribeiro, diretor do CRATOD de São Paulo

Existe uma diferença gritante entre a forma como homens e mulheres dependentes são tratados, aponta o psiquiatra Marcelo Ribeiro, diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (CRATOD), da Secretaria Estadual de São Paulo. “Mulher alcoolista é um tabu. Enquanto homens costumam ser vistos como ‘coitadinhos que precisam de ajuda’, mulheres na mesma condição são frequentemente estigmatizadas sob rótulos de ‘péssimas mães’ ou ‘pessoas de caráter duvidoso’, e muitas vezes abandonadas pela própria família.”


Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/comportamento/noticia/2023/02/mulheres-brasileiras-estao-bebendo-mais-e-cada-vez-mais-cedo-por-que.ghtml



Comentários