MEDICINA FETAL: AVANÇOS PERMITEM DIAGNOSTICAR E TRATAR BEBÊS NO ÚTERO

 

Bebês prematuros na Maternidade São Luiz Star, em São Paulo. Foto: Edilson Dantas / O Globo
Bebês prematuros na Maternidade São Luiz Star, em São Paulo. Foto: Edilson Dantas / O Globo Edilson Dantas / O Globo

Medicina fetal: avanços permitem diagnosticar e tratar bebês no útero

Problemas que colocam a vida do feto em risco ou prejudicam sua qualidade de vida podem ser tratados precocemente com intervenções que variam desde o uso de medicamentos até cirurgias

Por Giulia Vidale — São Paulo

13/01/2023 04h30  Atualizado há um mês

A medicina alcançou feitos que há algumas décadas pareciam impossíveis. Um deles é a possibilidade de não apenas identificar, mas também tratar alterações enquanto o bebê ainda está no útero da mãe. Isso é importante porque muitas dessas disfunções, se não tratadas, podem levar ao parto prematuro, deixar sequelas ou até mesmo causar a morte da criança.

Além disso, também há uma mudança de paradigmas. Segundo Rita Sanchez, coordenadora do setor de medicina fetal do Hospital Israelita Albert Einstein, por muito tempo, um bebê só se tornava um paciente para a medicina após seu nascimento. Hoje, existe uma subespecialidade da ginecologia e obstetrícia toda dedicada para seu acompanhamento desde antes da gravidez: a medicina fetal.

Essa especialidade é conhecida pelas imagens de incríveis cirurgias realizadas via endoscopia ou com incisões que abrem a barriga da mãe, mas antes do parto em si. No entanto, o cuidado vai muito além disso.

— Apesar da cereja do bolo da medicina fetal ser a cirurgia, ela na verdade começa antes da gravidez. Precisamos orientar a mãe para que ela comece a gravidez mais saudável e com menos fatores de risco para o bebê desenvolver uma doença. Durante a gestação, tanto a mãe quanto o bebê são acompanhados para rastrear, diagnosticar e tratar problemas fetais e maternos, como risco de parto prematuro e hipertensão — explica o médico Fábio Peralta, um dos maiores especialistas no assunto, responsável pelo serviço de medicina fetal e de cirurgia fetal da Maternidade São Luiz Star, que possui o centro mais avançado do país no diagnóstico e no tratamento intra útero.

Embora seja uma área relativamente nova na medicina, também é uma das que evolui mais rapidamente, em especial graças ao advento e sofisticação da ultrassonografia. Essas imagens não só satisfazem a curiosidade das mães, pais e avós, mas permitem que os médicos identifiquem alterações que só apareciam após o parto.

— Hoje, meu equipamento de ultrassonografia permite ver coisas que, com o anterior, não era possível. Isso possibilita o diagnóstico de doenças que a gente nem sabia que existiam — diz o médico Fábio Peralta, responsável pelo serviço de medicina fetal e de cirurgia fetal da Maternidade São Luiz Star e um dos maiores especialistas sobre o assunto.

A imediata consequência dessa identificação foi o desenvolvimento de tratamento para essas condições.

— A evolução dessas tecnologias de imagem permitiu o desenvolvimento e o aprimoramento de tratamentos e exames complementares, que ajudam a avaliar se é necessário fazer uma intervenção precoce ou não — complementa Sanchez.

O ideal seria fazer quatro ultrassonografias durante a gravidez para um bom acompanhamento pré-natal. O primeiro, indicado em torno da 7ª ou 8ª semana de gravidez, ajuda a determinar mais precisamente a data inicial da gestação, o que permite acompanhar com mais precisão se o bebê está crescendo e se desenvolvendo conforma o esperado. Ele também é importante para verificar se a gravidez está se desenvolvendo dentro do útero ou nas tubas uterinas, o que constitui um quadro grave que exige intervenção cirúrgica na maioria das vezes.

Mas, o exame mais importante realizado no primeiro trimestre da gravidez é o ultrassom morfológico. Indicado entre a 11ª e a 14ª semana, ele tem esse nome porque analisa diferentes estruturas do bebê e permite suspeitar do risco de alterações genéticas, como síndrome de Down, de problemas maternos como o pré-eclâmpsia ou parto prematuro e diagnosticar algumas malformações que exigem intervenção precoce. O índice de acerto na identificação de alterações é de cerca de 70%. Por isso, é necessário a realização de exames complementares para fazer o diagnóstico definitivo.

Se nada de errado for identificado, o que ocorre na maioria das gestações, o segundo ultrassom morfológico deve ser realizado entre a 18ª e a 24ª semana. Como nesse estágio o feto já está bem desenvolvido, a confiabilidade chega a 90%, segundo informações do Colégio Brasileiro de Radiologia. Um quarto ultrassom é recomendado entre 28 e 32 semanas para acompanhar o crescimento do bebê e o funcionamento e a localização da placenta.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 6% dos bebês em todo o mundo nascem com uma anomalia congênita, resultando na morte de 240.000 recém-nascidos por ano. Os problemas de saúde mais frequentes nos fetos que permitem uma intervenção dentro do útero são: mielomeningocele ou espinha bífida, transfusão feto fetal, hérnia diafragmática congênita, obstruções da bexiga e cardiopatias congênitas. Segundo Peralta, a maioria das cirurgias para essas condições é realizada entre a 19ª e a 26ª semana de gestação.

Entre essas alterações, a mielomeningocele é mais comum, com incidência de um caso para cada mil. A condição é caracterizada pelo não fechamento total da coluna do feto durante o desenvolvimento, deixando a medula espinhal exposta e sequelas neurológicas. Evidências mostram que a operação dobra o número de bebês que conseguem andar e reduz o risco de hidrocefalia, uma das consequências da condição.

A segunda alteração mais comum é a transfusão feto fetal, que ocorre em 10 a 15% das gestações de gêmeos idênticos. Um dos bebês “rouba” o sangue do outro. Há 95% de risco de perda gestacional ou danos neurológicos. A intervenção cirúrgica minimamente invasiva, feita por via endoscópica, utiliza um laser para cauterizar os vasos e interromper a circulação anormal entre os fetos e aumenta a sobrevida para 80%.

Na hérnia diafragmática congênita, há um orifício no diafragma que causa o deslocamento dos órgãos abdominais, como fígado, estômago e intestino para a região onde deveriam ficar os pulmões. Em casos muito graves, a chance de sobrevida é menor do que 10%. A intervenção é feita ocluindo-se temporariamente a traqueia do feto com um pequeno balão de silicone, o que faz com que os pulmões se expandam, aumentando a sobrevida para aproximadamente 50%.

Em um em cada 4 mil fetos, há obstrução da bexiga. O problema pode comprometer a função renal e afetar o líquido amniótico, o que prejudica o desenvolvimento dos pulmões. A desobstrução é minimamente invasiva. Alguns bebês também têm alterações estruturais cardíacas específicas, que se não forem corrigidas antes do nascimento, exigem a realização de transplante. O tratamento intraútero desobstrui a valva e evita a necessidade de cirurgias mais complexas após o nascimento.

Todas essas alterações são gravíssimas e embora as intervenções dentro do útero melhorem o prognóstico, esses bebês ainda são considerados de alto risco e precisam de um suporte altamente especializado ao nascer.

— Todos os bebês submetidos à cirurgia fetal vão para uma UTI neonatal porque eles precisam de um monitoramento mais rigoroso. Além disso, e algumas condições como problemas cardíacos e hérnia diafragmática exigem intervenções complementares após o nascimento — explica Peralta.

O Brasil é referência na área de medicina fetal. São cerca de 15 a 20 centros no país que realizam esses procedimentos. Há também inúmeras pesquisas em andamento tanto para o desenvolvimento de novos tratamentos como hidrocefalia fetal, quanto para o aprimoramento de terapias já existentes, de forma a aumentar a chance de sobrevida, diminuir os riscos do procedimento e melhorar a qualidade de vida.

O Hospital Israelita Albert Einstein, por exemplo, está usando a medicina de precisão para prever com mais precisão algumas condições da medicina fetal, como a restrição de crescimento uterino, quando o bebê está abaixo do tamanho ideal para a idade gestacional, e pré-eclâmpsia, quando a mãe desenvolve uma hipertensão específica da gravidez, o que coloca ela e o bebê em risco.

— As técnicas estão evoluindo para cada vez mais você ter menos lesão do útero materno e conseguir corrigir o feto — avalia Sanchez.

O maior desafio no país é ampliar o acesso a esses tratamentos. No Sistema Único de Saúde (SUS) não são todas as gestantes que tem acesso ao ultrassom morfológico no pré-natal. Além disso, nenhum dos procedimentos fetais tem cobertura pelos planos de saúde ou pelo Sistema Nacional de Saúde (SUS). A única maneira de ter acesso a eles é por meio do custeio integral ou por programas de filantropia, que são realizados no país. Mas há um movimento de especialistas para mudar esse cenário e regularizá-los junto ao sistema de saúde brasileiro.


Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2023/01/medicina-fetal-avancos-permitem-diagnosticar-e-tratar-bebes-no-utero.ghtml


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