MDMA: MULHERES SÃO MAIS SUSCEPTÍVEIS AOS EFEITOS COLATERAIS DA DROGA. POR QUE?

 

Como age o MDMA no corpo de mulheres e pessoas com útero? Especialistas explicam
Como age o MDMA no corpo de mulheres e pessoas com útero? Especialistas explicam Getty Images

MDMA: mulheres são mais suscetíveis aos efeitos colaterais da droga. Por quê?

Estudos científicos apontam que as mulheres e pessoas com útero sentem mais intensamente os efeitos – bons e ruins – do MDMA e do ecstasy. Marie Claire ouviu especialistas que indicam por que esse grupo precisa ter mais cautela e qual é o protocolo de redução de danos que que torna o uso dessas substâncias mais seguro

Por Camila Cetrone

18/02/2023 05h00  Atualizado há 5 horas


A publicitária Mariana*, de 27 anos, estava a caminho de uma festa de Réveillon em 2018 quando topou usar MDMA. Estava com um grupo de amigos em Pipa, praia badalada no Rio Grande do Norte. Colocou o dedo no saquinho com um grama de pó branco, que custou R$ 100, e o levou até a boca ainda na van, às nove da noite. "Até às três da manhã eu estava bem, animada, muito enérgica", lembra em relato a Marie Claire. A partir das 3h30, a brisa leve mudou o rumo e se tornou uma bad trip.

Começou a sentir a temperatura do corpo oscilar, como se estivesse com febre. “Estávamos na praia de manhã, um super sol, e eu suando de calor. Só que ao mesmo tempo senti muito frio”, diz. Também teve taquicardia e a pupila muito dilatada. A tensão maxilar foi tanta que ela morde a própria boca.


Sobre os efeitos que sentiu, ela justifica: “Acho que a quantidade foi um pouco exagerada”. Segundo especialistas, uma “dose exagerada” pode corresponder a aproximadamente 300 mg da droga.

O MDMA, uma das substâncias que compõem o ecstasy, se tornou um hype do Carnaval de rua, mas há anos já é queridinho de quem frequenta festivais de música, festas eletrônicas e raves. O frisson em torno da droga é explicado pelas sensações que ela desperta: riso frouxo, libido nas alturas, amenização da ansiedade, sensibilidade à flor da pele e a intensificação da empatia são algumas das mais relatadas. O combo do prazer alçou o MDMA à grande popularidade, além de dar à substância o sugestivo apelido de “droga do amor”.

Tais efeitos são comprovadamente ainda mais intensos em mulheres, cis e trans, e outras pessoas com útero (como mulheres trans e indivíduos intersexo e não binários). Bem por isso, essa população precisa ter ainda mais cautela ao usar o sintético. O motivo? Há ao menos 20 anos, a ciência observa que os organismos de homens e mulheres cisgênero respondem de maneiras diferentes aos estímulos do MDMA e do ecstasy.

Se para elas o prazer é mais intenso, também há evidências clínicas de terem mais chance de sentir efeitos colaterais – seja por fatores hormonais, psicológicos ou culturais, que analisaremos mais adiante nesta reportagem.

Fábio Carezzato, psiquiatra colaborador no programa da Mulher Dependente Química (PROMUD) do Instituto de Psiquiatria (IPq), do Hospital das Clínicas de São Paulo, explica que os casos de mortes ou problemas graves associados ao MDMA (quando há redução de danos ou a substância é confiável) são muito raros – mesmo agora que seu consumo cresceu significativamente.

Um estudo publicado em 2021 pela Universidade de Campinas (Unicamp) com a Universidade Thomas Jefferson, da Filadélfia, e o Centro de Convivência É de Lei (organização que promove a redução de riscos sociais e de saúde associados ao uso de drogas) constatou que, entre 2018 e 2020, o MDMA foi a substância psicoativa mais usada em festas e festivais de música eletrônica no Brasil. A droga foi identificada no fluido oral de 88% dos 462 participantes da pesquisa.

Os índices relativamente mais baixos de gravidade e morte não querem dizer que a substância deva ser usada sem cautela. Pelo contrário. Seu uso precisa ser feito com atenção, já que entre os efeitos indesejados da droga estão o aumento de temperatura corporal e da frequência cardíaca, náusea, vômitos, tensão maxilar e dores musculares, por exemplo.

No Brasil, por ser uma droga proibida, há ainda mais riscos. Fabricadas em laboratórios clandestinos, as drogas que têm o MDMA na base podem ser adulteradas ou conter uma composição maior de outras substâncias do que o MD em si. Cafeína, paracetamol, metilona e metanfetamina são alguns desses agentes. Também existe a possibilidade de que o produto que chega ao consumidor como MD, bala ou cristal sequer tenha MDMA em sua composição

Matuzza Sankofa, coordenadora de Redução de Danos do Centro de Convivência É de Lei e diretora da Casa Chama (espaço de apoio a pessoas LGBTQIAP+ em São Paulo), diz que há riscos para todos, independentemente de gênero, caso o uso seja feito sem cuidados. Mas confirma: pessoas com útero em idade reprodutiva e mulheres trans que realizam terapia hormonal devem intensificar o protocolo de redução de danos antes de botar o dedo no ziplock.

Os efeitos do MDMA e ecstasy no corpo de mulheres e pessoas com útero

Carezzato afirma que há dois riscos principais que merecem a atenção das mulheres e pessoas com útero. O primeiro está relacionado ao estrogênio, hormônio que desenvolve as características femininas. Assim como o ecstasy, o estrogênio faz com que o organismo retenha líquido.

"Ao ingerir MDMA, a pessoa que tem estrogênio terá duas substâncias trabalhando dentro do organismo fazendo com que ela retenha líquido. No caso do ecstasy, o agravante é que ele aumenta a necessidade de ingestão de líquido. Então, o organismo não dá conta de absorver tudo”, explica Sankofa.

Segundo Carezzato, essa condição pode causar hiponatremia. Trata-se de uma concentração menor de sódio no sangue que faz com que a água saia pelos vasos sanguíneos e vá parar nas células, um percurso perigoso porque pode causar edemas (ou seja, inchaços cerebrais).

“O estrogênio aumenta a liberação de vasopressina, um hormônio antidiurético ao qual as mulheres são mais sensíveis. Isso porque elas têm mais receptores de vasopressina nos rins”, diz o psiquiatra.

Sankofa acrescenta que as mulheres trans que fazem terapia hormonal também precisam ser consideradas, já que fazem aplicação de estrogênio como processo de feminilização -- algumas o fazem esse tratamento sem acompanhamento médico, o que poderia colocá-las no mesmo grupo de risco.

Carezzato afirma que é preciso que essa possibilidade seja investigada pela ciência. "Como não é apenas a presença do estrogênio, mas uma série de interações com receptores, não é possível fazer essa suposição de maneira simples", aponta.

O segundo fator de risco, mais geral, envolve as condições ambientais e comportamentais relacionadas aos efeitos do MD no organismo. “Se for usado em locais quentes, com pouca ventilação e movimentação excessiva, pode fazer com que o corpo chegue a temperaturas altas que podem prejudicar a saúde”, explica o psiquiatra.

Nessas condições, abusar da substância pode causar hipertermia; ou seja, afetar a regulação da temperatura corporal. Daí vem a importância de se manter hidratada enquanto a trip não te abandona.

A onda é mais forte para elas

Existente há mais de um século, MDMA se tornou febre em raves no fim dos anos 1980 — Foto: Getty Images

Existente há mais de um século, MDMA se tornou febre em raves no fim dos anos 1980 — Foto: Getty Images

O MDMA foi sintetizado pela primeira vez em 1912 junto de outras substâncias da família de anfetaminas psicodélicas. No entanto, levou ao menos 50 anos até que suas propriedades alucinógenas e psicoterapêuticas começassem a ser exploradas.

Com o surgimento e boom das raves e festas de música eletrônica no fim da década de 1980, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, o uso recreativo se popularizou dentro desse universo. A droga virou febre por seu efeito de amplificação sensorial que, ao mesmo tempo, estimula e tranquiliza.

Segundo a psiquiatra Camila Magalhães Silveira, pesquisadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica da Universidade de São Paulo (USP), desde então se observava, ainda fora dos laboratórios científicos, que o organismo das mulheres respondia de maneira diferente ao dos homens. Então, existiam alertas para mulheres e equipes de redução de danos sobre a necessidade de mais cuidado e, principalmente, mais hidratação.

Os primeiros estudos científicos para investigar essa diferença passaram a ser organizados e divulgados entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000. Naquele primeiro momento, as análises se voltavam para o contexto europeu e estadunidense.

O estudo Diferenças de gênero nos efeitos subjetivos do MDMA, conduzido pelo suíço Liechti Matthias Emanuel e publicado em 2021, foi um dos primeiros a esmiuçar o assunto e constatar que a sensibilidade era maior para as mulheres – bem como a intensidade dos efeitos indesejados a longo prazo.

Um dos primeiros estudos a mapear essa distinção, publicado em 2001, já apontava para essa intensificação e ainda para efeitos colaterais de longos períodos, como crises de ansiedade, insônia, depressão e oscilações de humor. A experiência de Mariana foi marcada por alguns desses traços: "No dia seguinte chorei muito, tive ansiedade e não conseguia dormir à noite”, lembra sobre a ressaca que teve no dia seguinte.

Silveira explica que a tese que diferencia o efeito da droga nos corpos de mulheres e homens veio com mais força após uma pesquisa clínica feita em laboratório, divulgada em 2017 pela revista científica Pharmacology Biochemistry and Behavior.

A hipótese foi testada em ratos e comprovou que as fêmeas demonstraram um estímulo cerebral muito maior à substância, bem como uma produção mais elevada de serotonina e dopamina, os hormônios relacionados ao prazer.

Outro estudo espanhol de 2018, Principais determinantes interindividuais na farmacodinâmica do MDMA, também aponta essa maior suscetibilidade, atribuindo-a a uma combinação de fatores ligados a diferenças biológicas e psicossociais. Mas a pesquisa reconhece que há “lacuna de conhecimento significativa” que devem ser preenchidas.

De acordo com a psiquiatra, a ciência não deu continuidade aos estudos relacionados ao MDMA e às mulheres para apurar os riscos. O foco da investigação, ela explica, foi transferido a outro recorte: as drogas como intensificadoras do prazer. “Os estudos migraram para contextos da comunidade LGBTQIAP+, do chemsex [uso de drogas psicoativas durante o sexo] e do uso de substâncias em festas eletrônicas, por exemplo. O contexto é a tentativa de compreender melhor o que faz a sociedade querer potencializar tanto o prazer.”

Por outro lado, as mulheres podem se beneficiar dos estudos clínicos que buscam usar as propriedades da droga para tratamentos psicológicos e psiquiátricos.

Em 2021, por exemplo, um estudo clínico comandado no Brasil pelo psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira testou o MDMA no tratamento de vítimas de abuso sexual com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Houve redução de até 30% do quadro, além de menor avaliação da depressão e maior taxa de funcionalidade e recuperação de TEPT. Sem graves efeitos adversos, pode vir a ser um tratamento viável no país.

Mulheres são as que mais buscam atendimento emergencial

Entre as taxas consideradas relevantes para analisar os riscos de MDMA em mulheres e pessoas com útero está o índice maior de busca por atendimento de emergência em relação aos homens. Esse alerta já foi feito em 2005 em um relatório do Centro de Monitoramento de Drogas da Europa, que indicou que, apesar dos baixos níveis de riscos do MDMA, elas são as que mais recorrem ao pronto socorro.

Em 2021, o questionário online Global Drug Survey, que analisa o uso de drogas em escala mundial, confirma a tese: o levantamento analisou que mulheres com menos de 25 anos tinham 1,7% mais chances de recorrerem ao pronto socorro do que homens da mesma faixa etária (1%). Em 2021, essa taxa caiu para 0,6%, mas continuou acima da proporção dos homens, de 0,5%.

Silveira analisa que as mulheres têm mais medo de se sentirem vulneráveis aos efeitos indesejados ou mais intensos das drogas, como taquicardia, dores musculares, falta de sono e apetite e perda de controle do próprio corpo.

Esse último efeito foi sentido pela advogada Lorena*, de 35 anos, após ela usar doses muito altas de MDMA. “Na experiência mais forte que tive e que me deu medo, comecei a não sentir mais minhas pernas e não conseguia andar direito, nem falar ou me expressar”, relata.

A psiquiatra afirma ainda que essa conduta pode ser explicada não apenas pelos possíveis riscos, mas devido a exigências culturais que impõem que as mulheres tenham mais controle sobre seus corpos – uma regra facultativa para os homens. “A substância não é o maior risco se comparado às questões sociais que a gente vive no Brasil, um país machista e transfóbico”, complementa Sankofa.

Afinal, como se permitir perder o controle em um contexto em que um corpo vulnerável pode se tornar um corpo violado?

“Esse é um assunto multidisciplinar que envolve discutir a legalização das drogas, mas também a discussão sobre as violências às quais as mulheres e pessoas LGBTQIAP+ estão vulneráveis. Precisamos avançar para que nós, mulheridades, possamos fazer esse uso sem nos colocar em riscos sociais”, afirma.

Protocolo de redução de danos do MDMA e ecstasy

Antes de usar qualquer droga psicoativa, Matuzza Sankofa orienta que se busque o máximo de informações possíveis sobre os efeitos da substância que se deseja usar e quais tipos de cuidado devem ser adotados para garantir que a brisa seja curtida de maneira segura, sem imprevistos indesejáveis.

A coordenadora de redução de danos do Centro de Convivência É de Lei reforça ainda a importância de estar em um ambiente seguro, ao lado de pessoas que sejam de confiança.

No caso do MDMA, trata-se de uma droga que inibe o apetite, aumenta a necessidade de hidratação e pode ocasionar a perda de sais minerais. Os efeitos podem demorar entre 20 e 90 minutos para serem sentidos, e podem durar entre três e seis horas. Portanto:

  • se alimente antes do uso;
  • cuidado com o calor e com o excesso de exercício físico;
  • beba 250 ml de água por hora (corresponde a dois copos);
  • não beba grandes quantidades de água uma vez; dê pequenos goles;
  • considere consumir isotônicos para repor os sais minerais;
  • se estiver em ambientes com muita exposição à luz, use óculos escuros para proteger as pupilas, que podem apresentar muita dilatação;
  • no caso de pessoas com útero, evite fazer uso durante o período menstrual;
  • espere até cinco semanas para voltar a usar MDMA e ecstasy para garantir a recuperação completa do organismo;
  • se for usar em um período menor, use em dias intercalados e faça longos períodos de repouso;

Quando optar pelo uso do MDMA ou ecstasy, não o misture com qualquer outra substância. A combinação com álcool pode ser perigosa por aumentar a desidratação e sobrecarregar os rins e fígados. A combinação também aumenta a temperatura corporal.

Combinada com estimulantes, há a possibilidade de aumento da pressão arterial, riscos cardíacos e derrame. Evite usar a droga se fizer uso de algum medicamento controlado.

Sobre a dosagem ideal, Sankofa afirma que, no caso de pílulas (a famosa bala), o ideal é usar metade. O uso em forma de cristal tem a dosagem mais difícil, mas pode ser repartido em partes iguais. No caso do pó de MDMA, antes do uso, faça um fracionamento em microdoses por saquinho – em torno de 5 mg a 10 mg, que corresponde a 5% da quantidade de uma dosagem recreativa. Nunca repita as dosagens em até 90 minutos.

“A regra mais importante de todas é que menos é mais. Doses moderadas em usos espaçados favorecem um efeito positivo e reduzem risco e prejuízo ao longo prazo”, avisa.

*Os nomes foram omitidos para proteger a identidade das personagens


Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/comportamento/noticia/2023/02/mdma-ecstasy-efeitos-colaterais-reducao-de-danos-mulheres-pessoas-com-utero.ghtml

 

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